Termo ainda pouco conhecido no Brasil, o precariado já foi assunto de livro do sociólogo brasileiro Ruy Braga em 2012. Em “A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista”, lançado pela Boitempo Editorial, o professor da USP fala sobre a população brasileira que vive nas condições de trabalho mais precárias dentre os trabalhadores. Na análise do sociólogo, o precariado é esta parcela, que oscila entre a exploração econômica e o desemprego. “Ele é uma parte importante da classe trabalhadora. Era de um certo tamanho, tinha uma certa abrangência, e vai se tornando mais e mais exuberante”.
Seja provocado pelos avanços da flexibilização do trabalho ou pelo acelerado progresso tecnológico, que alterou os padrões de ocupação mundialmente, o crescimento do precariado está recebendo respostas ruins do governo e sociedade, segundo Braga. Para ele, ao invés de reformas, população deveria receber mais proteção social para enfrentar a instabilidade de empregos. Confira os principais trechos da entrevista:
O que o termo precariado significa, conforme sua análise?
O conceito sociológico de precariado data dos anos 80. É uma expressão que surge na Itália, com o setor do movimento social autonomista, que começa a fazer uma análise de trabalho atípico. Tenta entender o porquê de as novas gerações, quando entram no mercado de trabalho, não encontrarem as mesmas políticas de bem-estar, sejam públicas ou privadas, que as gerações anteriores haviam experimentado, em especial no tocante à estabilidade. As novas gerações na Itália estavam situadas num mercado de trabalho com mais instabilidade, uma trajetória sócio-ocupacional entrecortada por períodos de desemprego, mais ou menos longos, ou de subemprego.
As tecnologias disruptivas tiveram influência na aceleração deste fenômeno?
Acho que sim. A revolução tecnológica dos anos 70, 80, em especial aquilo que a gente pode identificar na vida das empresas, que substituem praticamente o tipo de trabalho em escritório, tem um impacto sobre isto em duas frentes: o primeiro, ao achatar as hierarquias das empresas, que se tornam mais horizontalizadas. Consequentemente, aqueles níveis intermediários são suprimidos pelos sistemas de informação que permitem que a informação circule, que seja organizada, classificada e acumulada sem a necessidade de intervenção direta do trabalho humano. Os sistemas de informação articulados às tecnologias de comunicação permitiram um avanço muito grande da externalização produtiva e, consequentemente, de formas contratuais, como a terceirização. Assim, há naturalmente um impacto, porque o subemprego e a precarização das relações de trabalho estão ligados a esta transformação radical das empresas. Elas se transformaram em empresas de rede, deixam de ser fordistas, piramidais, e passam a ser reticulares, espalhadas pelo território, indo a lugares onde não há ou praticamente não existe representação sindical. Neste contexto, há uma multiplicação das formas de contratação, que leva à precarização do vínculo empregatício.
Como olhar para o precariado, entre o surgimento do conceito, os tempos atuais e o futuro?
Quando sociólogos como Robert Castel falam de precariado nos anos 80, meados dos anos 90, referindo-se fundamentalmente à França, eles estão lidando com uma realidade que é a desconstrução do mundo de trabalho do tipo fordista. Nele, o pacto social incluía uma parcela bastante significativa da população economicamente ativa. No entanto, os trabalhadores eram os tradicionais - brancos, adultos, sindicalizados -, que tinham acesso aos regimes de welfare público, como aposentadoria, direitos trabalhistas assegurados, ou de welfare das empresas, negociações tripartites, que garantiam uma série de benefícios. O compromisso fordista nunca foi para todo mundo, existia uma franja que era basicamente composta por mulheres, jovens, imigrantes, trabalhadores não sindicalizados. Um forte impacto do processo de globalização econômica nesse padrão tende a fazer com que aquele núcleo protegido, que era majoritário, vá sendo aos poucos reduzido, tornando-se menos generoso em termos de proteção social. E aquela franja que era minoritária passa a ser cada vez maior. Este é o quadro europeu. No caso brasileiro, a gente tem que fazer uma série de reflexões. Aquilo que na Europa, por conta da institucionalização de direitos, de garantias, conquistas, lutas sociais, era regra, ou foi grande durante muito tempo e enfraqueceu, no caso brasileiro sempre foi a exceção. No Brasil, entre a proteção trabalhista e a realidade das empresas havia um gap muito grande. Existe uma diferença muito grande entre a lei e a realidade das relações de trabalho no País, que são muito precárias. Sempre foram. Quando a economia brasileira passa por uma transição, adentra na globalização, o precariado se desloca para o setor de serviços, com características que são muito próprias, por exemplo, uma presença esmagadora das mulheres e dos não brancos - mestiços, negros. Também há uma presença muito forte dos jovens, que são mais qualificados que a geração anterior, seja profissionalmente, seja em escolaridade.
As pessoas que fazem parte do trabalho precário se veem como uma classe específica?
Este é um tópico que eu e Guy [Standing] discordamos. Eu discordo que o precariado é uma classe social de novo tipo. Para mim, o precariado, principalmente no caso brasileiro, é parte da classe trabalhadora. Uma parte importante, que era de um certo tamanho, tinha uma certa abrangência, e vai se tornando mais e mais exuberante. É uma parte precarizada da classe trabalhadora, aquela que está mais distante do acesso aos regimes de welfare, de segurança. E ele é composto pela parcela da classe trabalhadora que está sempre oscilando entre o aumento da exploração econômica, pela diminuição de salários, eliminação de benefícios, precarização do ponto de vista dos contratos, e a ameaça da exclusão social via desemprego. Esta é a parte fundamentalmente importante para entender o que é precariado num país como o Brasil. A massa da população que está entrando no mercado de trabalho não tem condições de dar um salto. Os que conseguem são minoria branca, bem qualificada, que vem de universidade pública ou das melhores universidades privadas do país, a classe média tradicional. E os que não conseguem emprego precisam sobreviver, então aumenta o subemprego, o emprego precário, aumentam as formas degradantes de trabalho, onde o precariado se acantona. E as reformas apontam para uma enorme ampliação desta massa precarizada de trabalho.
Destas pessoas do precariado, há diferenciação de nível educacional e origem econômica?
O precariado é um amálgama de diferentes grupos, porque tem uma parcela de gente jovem, que vem de muitas classes sociais. O mercado brasileiro é muito segmentado e muito segregado. Mesmo em setores tradicionai estes jovens não conseguem empregos de classe média, então eles tendem a atravessar o processo de proletarização e acabam não conseguindo reproduzir aquela que foi a trajetória sócio-ocupacional das gerações anteriores. Isto por si só já introduz um elemento que é de diversidade. E esta segregação aumenta a desigualdade. As mulheres trabalhadoras ganham muito menos que os homens trabalhadores, os negros ganham menos, e consequentemente as mulheres negras ganham menos que os homens negros. A informalidade também é central para entender o exército de microempreendedores. O pessoal da “viração”, que vende na esquina, que monta um salãozinho de beleza, e o trabalho subalterno, que é clássico de países como o nosso, que é o doméstico. Hoje com sete milhões de trabalhadores domésticos, este é o principal grupo sócio-ocupacional brasileiro.Então juntando isso tudo, temos como resultado uma ampliação do precariado que eu diria ser muito heterogênea, e composto por grupos que não se comunicam uns com os outros.
A automação e diminuição dos empregos vai atingir mais fortemente qual destes grupos?
Tem que diferenciar entre aqueles que "são setores profissionais", submetidos a esta precarização em função do vínculo empregatício, o pejotismo, da massa precarizada que se encontra na informalidade, que aí sim é o precariado no sentido mais lato. A automação afeta todo mundo, de uma maneira ou de outra. No entanto, é claro que é muito mais perverso para quem não tem qualificação, quem não consegue negociar o valor da força de trabalho, que não se organiza, que não tem condição de enfrentar o mercado porque ele está totalmente fragmentado, individualizado. Quem tem menos condições tem menor poder de barganha.
Antes, se especializar e se qualificar era um caminho para o sucesso no trabalho. Mas como o precariado exige flexibilidade e várias habilidades, qual o caminho a tomar?
Eu seria irresponsável de dizer que você tem pouca oferta de emprego qualificado, que o pessoal não deveria se qualificar. Então, individualmente, eu diria que tem de apostar na educação, na qualificação, na formação, na sofisticação de suas aptidões, tem de fortalecer a sua capacidade de enfrentar adversidade, ter uma disciplina mental. No entanto, o problema não é do indivíduo; é da estrutura, tanto a sócio-ocupacional quanto a econômica do País. O Brasil não consegue produzir emprego qualificado. O País entra em uma globalização, rifa os seus centros de pesquisa, os seus investimentos estratégicos, desarticula suas cadeias, manda importar um monte coisa do exterior sem um projeto nacional de desenvolvimento na indústria, que é um setor que realmente consegue acumular aquelas profissões intermediárias. Você desloca tudo isso para as finanças, fica complicado.
O empobrecimento das gerações mais novas tem relação direta com o aumento do precariado? Porque muito se fala que a geração dos millennials vai ser mais pobre que a dos próprios pais...
Na verdade, é um jogo de dupla face. De um lado a crise aumenta o precariado, do outro, o aumento do precariado aprofunda a crise. Então você entra em uma situação da qual é impossível sair, a não ser que haja uma clara orientação contrária - como é o caso português que destoa do restante da Europa, um governo com agenda de esquerda, que aposta na diminuição do trabalho precário, no aumento da renda. Eu fico imaginando, no caso do Brasil, a reforma trabalhista e a terceirização, como estão sendo discutidas hoje, interessam a quem? Eu sei que imediatamente interessa a todos os empresários, que veem nisso a possibilidade de explorar mais, aumentar a jornada de trabalho e diminuir o salário. No entanto, todos os empresários brasileiros exportam? E o mercado interno? Porque para um empresário que vive do mercado interno isso não interessa, porque você está eliminado renda. Aí, vai vender para quem?
A narrativa tradicional do homem é muito relativa ao trabalho. Isso tende a mudar com o crescimento do precariado?
Quando não tem o trabalho, tem a falta de trabalho. E isso continua no centro da vida das pessoas, porque elas não deixam de se ocupar. A atividade assalariada pode perder a centralidade? Claro que pode, mas ainda assim as pessoas vão continuam trabalhando, em casa, na informalidade, no pequeno negócio. A narrativa vai se tornar mais trágica. No entanto, a necessidade permanece. A gente vive em uma sociedade capitalista em que é preciso vender para comprar, não tem muito o que fazer. Você tem de se vender de alguma forma, e a maneira como isso está se delineando é muito dura, muito crua, sem nenhum tipo de direito ou baixíssima intensidade de direitos, proteção social, previdenciária e trabalhista.
E o que fazer para se adaptar a esta nova realidade? A iniciativa deve vir do Estado, da iniciativa privada, dos trabalhadores?
Exatamente o contrário do que está sendo feito até agora. É preciso apostar em uma previdência social mais inclusiva, tem de cortar a taxa de juros, baratear a dívida pública, você tem de apostar na proteção do trabalhador, pois isso diminui a desigualdade e consequentemente gera emprego. Tem de diminuir a jornada de trabalho, com isso você obriga as pessoas a contratarem mais gente e portanto diminui o desemprego. Essa é uma agenda exatamente oposta a que está sendo levada adiante no Congresso. Precisa de mais proteção, mais organização, mais representação, precisa de sindicatos mais atuantes, você precisa estruturar melhor o mercado de trabalho brasileiro, porque ele precisa reter renda e a partir daí favorecer o motor do consumo.
Esses trabalhadores do precariado não estão encontrando mobilização nas formas tradicionais, sindicatos por exemplo?
É exatamente isso, os sindicatos não dão conta, estão muito longe de dar conta e em grande medida são hostis, eles não conseguem se relacionar com essas pessoas. A forma sindical é muito ultrapassada. Ela não tem condições de negociar com as empresas em nome deles [trabalhadores do precariado]. O sindicalismo é muito burocrático, principalmente em condições de aumento do desemprego.
Então o sindicato é mais voltado para o trabalhador formal.
Sim, de preferência branco, homem, na faixa etária de 40 anos. Esse é o perfil que o sindicalista gosta, que é o tipo de trabalhador em que ele se reconhece. O sindicalista também é geralmente homem com 50 anos, não tem condição de conversar com a molecada. Ele é totalmente desinformado e não entende o mundo dos jovens. Quem está conseguindo superar isso são os movimentos sociais por luta de moradia, os movimentos sociais urbanos, notoriamente os movimentos dos sem-teto, que estão conseguindo mobilizar essa massa precária. Não por um movimento de luta pelo emprego, mas sim pela questão da moradia.
O envelhecimento mundial tem algum peso para o precariado?
O País acompanha, por sorte, a tendência de envelhecimento global, mas estamos muito longe de sermos uma população idosa. Vale ponderar isso, porque tem muita ideologia por trás e interesse do governo em aprovar a reforma da Previdência, chantageando a sociedade com essa história da curva geracional. A nossa curva ainda é favorável à estruturação de um mercado, ou seja, nós temos muita gente jovem esperando para entrar no mercado de trabalho. Muita gente com pique, com vontade, com gana, com desejo de construir sua vida.
E com essa realidade do precariado, o endividamento da população aumentaria?
Sem dúvida, quanto mais precário o trabalho, mais insegura a fonte de renda, consequentemente mais endividamento a pessoa vai ter. As necessidades são mais ou menos constantes ao longo do ano. Você precisa comer, beber, se vestir e se alimentar. Isto faz com que as pessoas vivam penduradas no cheque especial, no cartão de crédito, no consignado, em alguma forma de crédito. Ficou desempregado vai gastar menos com saúde, tirar seus filhos da escola? Não é assim que funciona a vida, você vai se endividar para manter seus filhos na escola até onde der.
A renda básica universal é uma boa política para o precariado?
Essa é uma questão interessante. Eu não sou contrário ao rendimento mínimo universal. No entanto, o que isso significa ou representa? No caso brasileiro, para você aumentar aquilo que é mais próximo da renda básica universal que temos, que é o Bolsa Família, com a atual estrutura de pagamento da conta de juros do governo, você tem de tirar dinheiro de outros gastos sociais, ou investir menos na área de saúde, educação, transporte e moradia. Nessa situação, eu sou contra, porque você está trocando um investimento que é mais equalizador por um bem mais discreto em termos de combate à desigualdade e à pobreza. Agora, vamos inverter a lógica: se você amplia renda mínima universal, mexendo na conta de juros, eu sou super favorável. A taxa de juros do governo é uma maneira de tirar dinheiro do pobre e dar para o rico, tirar o dinheiro da base e colocar nas classes médias.