Correspondências

Nas cartas, peripécias e senso de humor


* Walnice Nogueira Galvão

Cartas de escritores costumam ser uma mina para os estudiosos, e as de Euclides não fogem à regra, embora constituam um caso particular.

Alguns autores discutem com a maior seriedade as grandes questões da arte em sua epistolografia, como fazia Flaubert, por exemplo. Outros, que levaram a arte a patamares nunca mais atingidos, nada esclarecem a respeito, para nossa decepção. É o caso de Proust, dos mais prolíficos missivistas, cujas cartas renderam 20 volumes. Por serem tantas, e seu autor um escritor notável, já suscitaram inúmeros estudos. Perfeitamente frívolas, nada abordam com seriedade, nem mesmo a literatura. Vão de bilhetes de lisonja a desculpas esfarrapadas, o que levou um estudioso a revisar a concepção corrente de que uma carta sirva para aproximar as pessoas. Como, argumenta ele, se as de Proust são concebidas para afastar as pessoas? O escritor se vale da carta para justificar sua ausência em situações em que ela é injustificável, como por exemplo o enterro de um grande amigo. E outras há em que ele está negando o acesso a sua pessoa, recorrendo a malabarismos para impedir que alguém venha visitá-lo...

Mas não podemos nos queixar, porque contamos com um epistológrafo extraordinário na pessoa de Mário de Andrade, que escrevia cartas todos os dias e não deixava ninguém sem resposta, por mais apagado que fosse o remetente e por mais distante que fosse sua localização. Mário levava a sério sua missão de propagar os princípios do modernismo. E. como tinha ideias muito consistentes sobre o que deveriam ser as artes no País, costumava divulgá-las como missivista. Suas cartas são um tesouro enquanto arquivos da criação: nelas discute sua própria inspiração, sua estética e seus métodos de elaboração artística. A publicação delas já ultrapassa de muito os 20 volumes de Proust.

As 8 mil cartas que recebeu, e zelosamente conservou, pois tinha uma noção firme de sua importância histórica, encontram-se guardadas no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, há meio século depositário do acervo de Mário. Ali recebem tratamento adequado pela especializadíssima e seriíssima equipe de pesquisadores, já tendo sido indexadas e catalogadas ao se cumprirem os 50 anos de sigilo estipulados pelo destinatário.

As cartas antigamente eram objeto de toda uma etiqueta, que se perdeu. Não eram instantâneas, ao léu de um impulso elétrico: ao contrário, exigiam reflexão e tempo de amadurecimento. O missivista se valia de um caderno grande, de rija capa preta, chamado borrador, que hoje pode ser visto em museus e que, como o nome indica, servia para se escrever o rascunho, rasurá-lo, arrepender-se, corrigir, etc. O ofício, executado com caneta e tinteiro, era sujeito a respingos e borrões. Depois, quando estivesse satisfatório, o rascunho era passado a limpo em bom papel e com letra caprichada, por isso mesmo chamada caligrafia. Se houvesse erro, havia que recomeçar. E, depois que a carta seguia pelo correio, passava-se um traço em diagonal na página do caderno, cancelando-a, e sobre esse traço registrava-se a data de envio.

Já no caso de Euclides, as cartas são preciosas porque, afora a biografia pessoal e a crônica do grupo, permitem acompanhar o caldo de cultura em que estava imerso. Ele lia os livros da moda, comentava-os com os amigos, era interessado em política e nos vaivéns dos acontecimentos. Sua opinião quase sempre era acerba, não poupando críticas aos figurões da época, sobretudo àqueles a quem responsabilizava pelo que via como um abastardamento da República, grande causa a que dedicara sua vida.

Pelas cartas podemos acompanhar as mil peripécias de uma vida aventurosa e os inúmeros lugares por onde passou no exercício de suas atividades profissionais. E, mais surpreendente, é nas cartas que podemos apreciar seu senso de humor, raro numa obra em que a gravidade dá a nota.

Em seguida, estampamos seis exemplares das cartas de Euclides.

Lorena, 22 de maio de 1902

Escobar

Desculpa-me este papel: procurei debalde a caixa de cartas, e não quero demorar por mais tempo a resposta à tua última e às impressões que me causou. - Magnífico! A comemoração do aniversário da minha ponte (ah! não estar ela num dos trechos deste incomparável Paraíba) não poderia ser melhor. Convirás em que eu nunca imaginei que lá aparecessem algumas centenas de indivíduos, que, com os foguetes, as bandeirolas velhas, o assobio dos moleques e os tabuleiros de doces, são a matéria-prima do que nesta costa d'África da América se chamam manifestações!... Não! sempre desejei aquilo: dois ou três amigos que ali chegassem e se lembrassem, durante algum tempo, de mim. Iludi-me apenas num ponto: os numerosos quatro amigos de que falei antes, reduziram-se a dois: você e o Lafaiete. Mas estes... Estou satisfeitíssimo - O Quidinho está restabelecido.

Deves ter visto pelos jornais que talvez esteja, breve, em pleno mar, à cata do lugar para um presídio. Adorável comissão! Calcula lá, se podes, o enorme prazer com que vou desempenhá-la... e se pudesse escolher também os presidiários...

Adeus, meu velho Escobar. Abraça-me o Lafaiete. Recomenda-me a todos os teus. Olha um pouco o velho Mateus. E creia no

Euclides

Guarujá, 5 de setembro de 1904

Plínio,

Recebi a tua carta - mas como o Mesquita dentro de 8 ou dez dias irá definitivamente para aí - não tratei de com ele sobre o assunto de que trataste. Tenho passado muito mal! Imagine - uma nevralgia por dia! Não sei a que atribuir semelhante tortura, agravada neste momento pela necessidade urgente de recordar quase toda a astronomia. Aí está a razão por que não tenho escrito. Ainda hoje, a pedido do Mesquita, procurei traçar um ligeiro esboço da agitação da Independência - mas nada consegui escrever, sob a angústia desse parafuso sem fim que me atravessa a cabeça de lado a lado. Por outro lado uma sobrecarga intelectual assombrosa! Só respeito senos, cossenos, tangentes e tudo quanto há de seco e brutalmente insípido em matemática. Estou vendo que um dia acordo desfeito em raiz quadrada... extraída pelo célebre escangalhador das dúzias.

Afinal tudo isso passará - e como só seguirei para o Rio nos últimos dias deste mês (a nossa partida será em outubro) hei de ainda ter tempo de escrever algo para o Estado e Comércio.

Adeus. Lembranças a todos do

Euclides da Cunha

P.S. - No dia 10 ou 11 chegará aí o Oliveira Lima (se vier por terra) e como não posso ir lá agora, telegrafar-te-ei - para que recebas o distintíssimo patrício. Ele deve seguir logo para aqui, onde o espero. Desculpa-me esta maçada mas eu não poderia encontrar quem melhor, e até com vantagem, me substituísse.

Euclides

Novo Lugar (Acampamento da Comissão Administrativa brasileira), 5 de junho de

1905

Meu Pai

desejo-lhe muitas felicidades. Aqui cheguei bem - assim como os companheiros. Vimos em viagem penosíssima, de canoas, mas não tenho um só doente, um só escoriado entre a minha gente. Continuo animado, apesar do naufrágio do nosso batelão, no dia 21 de maio, que me obrigou a dividir a comissão. Sigo somente com o Arnaldo e o médico. E vamos melhor. Estamos agora em regiões povoadas por peruanos. Mas neste sentir-me fora da nossa terra tenho novo alento, maior entusiasmo e segura resolução de seguir. Conto com o êxito. No máximo em dois meses atingiremos as cabeceiras e estaremos de volta. Não posso, infelizmente, conversar mais longamente com o sr. O portador que encontrei vai muito apressado e apenas me concedeu poucos minutos para uma notícia.

Lembranças e saudades a todos.

Abençoe ao filho e amigo

Euclides

Rio, 28 de novembro de 1907

Escobar

Somente hoje retirei a tua carta registrada, com valor, ficando desapontado por ver que me mandavas uns dezessete mil réis, quase não me lembrava mais. Que diabo de preocupação é essa? Então andamos como dois massudos burgueses , a regularem contas? Felizmente, o desagradável incidente me foi compensado, porque na mesma carta me dás notícias tuas, e diz que está bom, assim como a d. Francisca e todos.

Também por aqui me anda a praga dos filhos. Nasceu mais um, no dia 16 de novembro. Chamei-o Luís, percorrendo o calendário exausto.

Estou ficando patriarca. Apesar disto, e das grandes barbas brancas ideais que me andam pelo rosto, lá vou pelo noturno, de domingo, 8 de dezembro, a S. Paulo, onde farei, no dia seguinte uma conferência sobre Castro Alves, para auxiliar a construção da herma do poeta. Andei em talas para arranjar coisa que possa agradar a estudantes. Mas conto com o insucesso. Felizmente, de qualquer modo, lucrará o poeta. Obrigado, pelo que dizes do "Peru versus Bolívia".

Ah! Realmente tem razão o João do Rio (vide Gazeta de domingo passado) ao proclamar-me o único funcionário público romântico, que ainda houve nesta terra.

Adeus. Por que não nos encontraremos em S. Paulo, no salão..., à noite?

Lembranças a todos. Do teu

Euclides da Cunha

Rio, 10 de janeiro de 1909

Amº. dr. Oliveira Lima

Demorei-me em escrever-lhe respondendo a sua última carta e agradecendo as delicadas lembranças do ano novo - porque andamos todos em casa, durante muitos dias, às voltas com a última presa do filhinho mais novo. A sua carta, a carteira, as rendas e os livros chegaram quando atravessávamos o período agudo da crise; e não preciso dizer-lhe quanto nos consolou, no transe, o recordarmo-nos da afeição longínqua dos bons amigos ausentes. A Saninha ficou encantada com as rendas - gentilíssima lembrança de d. Flora - e eu com a carteira (embora considerasse, melancolicamente, que só durante os breves dias da travessia de Bruxelas até aqui, aquela carteira se veria unida a rendas). Assim perpetrei o primeiro trocadilho desta vida - muito diferente da sua aí conforme verifiquei pelo invejável horário que me mandou. Por ele vi - e com verdadeira satisfação - que o meu distinto amigo tem muito tempo para o exercício da sua atividade predileta do espírito. Ao passo que eu - se tivesse tempo para pormenorizar os meus dias teria de os repartir não em horas, mas em minutos. Tão atrapalhados e cindidos de preocupações diversas, eles correm. Por exemplo: no meio dos quefazeres do ofício, tenho, agora, todos os quartos de hora entregues ao estudo da Lógica, porque me inscrevi num concurso desta cadeira, que se realizará em abril no Ginásio Nacional. Não tenho muita confiança num estudo feito sem método ou continuidade - mas não posso deixar de aproveitar a oportunidade que se me oferece de adquirir uma posição fixa independentemente da vontade de outrem. Continuo na Secretaria, pelas razões expostas em carta anterior. a este propósito agradeço-lhe muito os generosos conceitos da sua última carta.

O Vicente de Carvalho ficou satisfeitíssimo com o seu voto, reunindo-o aos que mais o nobilitam. A vitória dele é agora inevitável; já tem 21 votos ao passo que o Emílio (candidato do Graça) - mal conseguirá 10; e o gal. Dantas Barreto, 4.

Não tenho visto os amigos. A partida do Gastão agravou o meu retraimento. Oscilo, sem variantes, da Secretaria para casa, e desta para aquela.

Há cinco ou seis dias o dr. José Carlos Rodrigues, dizendo-me que lhe havia passado ao sr. um telegrama de Boas Festas - referiu-se incidentemente ao livro d. João VI noticiando-me que não demoraria em vir à publicidade. A boa nova, recebi-a com a maior satisfação; e espero ser dos primeiros a ler aquele livro.

O fim quase exclusivo desta é agradecer0lhe e a Exma. sra. d. Flora, em meu nome e no da Saninha as apreciadíssimas lembranças. Noutra carta, próxima, conversaremos mais longamente.

Creia sempre em quem é muito cordialmente seu

Euclides da Cunha

P.S. - Amanhã ou depois procurarei o Calmon e transmitir-lhe-ei o seu recado.

Rio, 5 de julho de 1909

Otaviano

A Saninha já deve ter exposto a situação dolorosa em que recebi a notícia do estado de meu pai. Estou muito e muito doente. Nada me dizem, de positivo os médicos; mas das proibições ou recomendações que me fazem deduzo outra coisa, al[em dos escarros de sangue que somente ontem cessaram - não sei se definitivamente. e como um deles - o Cunha Cruz - já me aconselhou passar férias na ilha da Madeira não será difícil concluir-se o diagnóstico.

Será verdadeiro? Não me impressiono - Já dei o que tinha de dar. Entre as minhas bem poucas preocupações resta-me esta: desejo que o meu pai venha passar os últimos dias ao meu lado. Neste sentido conversei ontem com o Arnaldo que está pronto a ir buscá-lo desde que ele esteja em condições de vir - e se resolva definitivamente a deixar essa fazenda, que nos últimos tempos só tem servido para amargurar-lhe a existência.

Peço-te, por isto, que me auxilies - senão no sentido de fazer com que ele se liberte de uma vez da ilusão da Trindade, ao menos no de convencê-lo da necessidade imperiosa que ele tem de vir passar uma grande temporada aqui, deixando lá qualquer pessoa de confiança. Infelizmente não posso ainda viajar, para ir à viva voz demonstrar a conveniência da mudança. Peço-te, porém, que lhe fales por mim.

Num bilhete a lápis que te escrevi, e a Saninha levou - creio que me referi a este ponto, e a probabilidade de vir o meu pai com ela e com o Solon. De qualquer modo, estamos entendidos; tenho o maior desejo que ele venha para a minha companhia; e não podendo ir pessoalmente buscá-lo, pedi a pessoa de toda a confiança que o fizesse - Resta-me convencê-lo da necessidade da vinda, que a meu ver deve ser definitiva.

Não tenho grandes recursos; continuo - felizmente - a ser o mesmo heróico pobretão de sempre -; mas agora, com um lugar fixo e a minha velha disposição pela luta, posso fazer a proposta que não devera fazer ontem, em que me submetia a todas as eventualidades ou hipóteses de comissões longínquas.

Lembranças a todos. Muito especialmente quero que me recomendes ao dr. Deolindo.

Um abraço do

Euclides

P.S. - Por um telegrama da Saninha vi que não chegou o dinheiro (300$00) que ela levou para a viagem por isso telegrafei pedindo-te para adiantares a quantia que ela carecer. Manda-me dizer onde poderei pagar aqui - ou se devo restituí-lo pelo correio.

*Professora emérita da USP e autora de 40 livros, dos quais 12 sobre Canudos e Euclides da Cunha

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