As cidades de Euclides

Em Cantagalo, terra natal, autor de Os Sertões inspira projetos


Marcio Dolzan

Pelas ruas estreitas de Cantagalo, cidade da região serrana do Rio de Janeiro, o nome Euclides da Cunha nunca passa despercebido. Filho mais ilustre do município de 20 mil habitantes, o escritor tem busto na praça central, dá nome a uma das ruas, ao principal colégio e a uma drogaria. O autor de Os Sertões também tem um museu em sua homenagem – a Casa Euclides da Cunha. E até mesmo Santa Rita do Rio Negro, nome do distrito onde nasceu, rendeu homenagem ao autor: o local hoje chama-se Euclidelândia.

O culto ao escritor é enraizado na população. Sua obra é ensinada em todas as escolas do município e trabalhada no colégio que leva seu nome desde as séries iniciais – o maternal, aliás, é conhecido como Euclidinho - até o ensino médio. “É bem legal, porque o texto euclidiano é multidisciplinar. A gente consegue trabalhar em História, Geografia, Sociologia e Português, além de educação ambiental para as crianças”, explica Rick Azevedo da Cunha, coordenador pedagógico do colégio.

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O trabalho nas escolas dá resultado, já que os alunos acabam desenvolvendo projetos por conta própria. Um exemplo é a Juventude Euclidiana, grupo que surgiu em 2011 para debater a obra de Euclides. “Um dia a gente sentou e conversou sobre como nós, jovens, poderíamos trabalhar Euclides da Cunha em Cantagalo. Chegamos à conclusão de que não haveria maneira melhor do que falar sobre ele como jovens para outros jovens”, explica o estudante de Direito Igor Ferreira, de 21 anos.

Além de palestras, o grupo já produziu um documentário e um livro. Para este ano, a intenção é lançar um novo projeto, desta vez envolvendo crianças da cidade. “A ideia é recontar a história de Canudos e toda a trajetória de Euclides. Uma criança seria a personagem principal e representaria Euclides”, explica Matheus Arruda, de 20, que também cursa Direito e integra a Juventude Euclidiana.

Euclides ainda despertou o gosto pela escrita em outros cidadãos de Cantagalo, que escrevem sobre o autor. Enquanto a professora Fabiana Corrêa produziu um livro voltado ao público infantil, o bancário Alex Vieitas tem sua obra voltada à vida e à história de Euclides. O material é distribuído gratuitamente em eventos e nas escolas.

Vieitas preside o Grupo Euclidiano de Atividades Culturais (GEAC), fundado em 1995. “Por muito tempo a gente editou um jornalzinho chamado O Euclidão. Ele tinha periodicidade bimestral e era enviado por correio para a Bahia e para São Paulo, além de ser distribuído nos colégios daqui da cidade”, explica.

VÍDEONo pequeno distrito de Euclidelândia, em Cantagalo (RJ), famácias, praças, colégios e ruas levam o nome de Euclides da Cunha. No interior de São Paulo, em São José do Rio Pardo, o escritor escreveu sua grande obra: 'Os Sertões'

Igreja onde escritor foi batizado é destaque em Euclidelândia

Euclides da Cunha nasceu em uma fazenda de café – a Fazenda da Saudade – em Santa Rita do Rio Negro, terceiro distrito de Cantagalo. A casa veio abaixo na década de 1940 e a fazenda acabou cedendo lugar a uma indústria cimenteira anos mais tarde. Mas a memória do escritor segue bem viva por lá. A começar pelo nome.

Em 1943, um decreto rebatizou o distrito de Santa Rita do Rio Negro como Euclidelândia. O centro do local é pacato, tem um comércio formado por poucas casas e a maior movimentação durante o dia é de adolescentes em bicicletas. O que acaba se impondo no centro do distrito é a singela e bem cuidada igreja de Santa Rita, onde Euclides foi batizado – e que fica bem em frente a uma praça chamada, claro, Euclides da Cunha.

O entorno de Euclidelândia é sede de três grandes grupos cimenteiros. O Mauá foi erguido nas terras que abrigaram a Fazenda da Saudade e, além da peregrinação de caminhões que entram e saem a todo momento, o local costuma receber a visita de pessoas interessadas em fazer um registro do local exato onde Euclides nasceu.

O memorial foi construído na entrada da fábrica em 1996. Ele fica no ponto exato onde havia a sede da fazenda, o que foi constatado durante escavações no local. Lá, outro busto de Euclides repousa imponente.

Encéfalo de Euclides está guardado em museu da cidade

Localizada no centro de Cantagalo, a Casa Euclides da Cunha é um museu totalmente dedicado ao autor. Além de um auditório e de uma sala de estudos, a casa conta com uma sala com objetos que pertenceram a Euclides e artefatos retirados da região de Canudos. O museu representa o culto máximo à memória do autor. Literalmente.

Desde 1983, a Casa Euclides da Cunha guarda o encéfalo do escritor. Na época, os restos mortais de Euclides, que estavam enterrados no Cemitério São João Baptista, no Rio, foram transferidos para São José do Rio Pardo, onde ele morou por três anos. “Mas o cérebro do Euclides foi trazido para cá graças a um esforço muito grande que fizemos junto à família”, conta Fany Pinheiro Teixeira Ibrahim, que dirigiu o museu por mais de três décadas.

O encéfalo estava preservado em formol e a transferência para Cantagalo foi motivo de grande comemoração. “Foi uma festa lindíssima, com o povo todo acompanhando”, recorda Fany. Entre os que acompanharam a chegada estava Alex Vieitas, então com apenas 9 anos. “Foi uma festa muito grande, de repercussão nacional. Aquilo me marcou muito e foi ali que nasceu minha admiração por Euclides”.

Hoje o encéfalo de Euclides repousa numa espécie de tumba instalada bem no meio do museu. Não é possível vê-lo.


Culto a escritor marca cidade do interior paulista


José Maria Tomazela

O escritor Euclides da Cunha morou só três anos em São José do Rio Pardo, no interior paulista, mas é como se tivesse nascido e passado a vida toda ali.“Foi o tempo suficiente para ter um filho, construir uma ponte, escrever sua obra-prima e conquistar o coração da cidade”, resume a diretora de Cultura, Lúcia Helena Vito. “Euclides da Cunha é mais riopardense que qualquer outro personagem de nossa história.”

Lúcia toma conta da Casa de Euclides, que recebe pesquisadores até de outros países. O prédio, na esquina da Rua 13 de Maio com a Marechal Floriano, guarda preciosidades, como o banquinho e a mesa de madeira rústica que serviram de escrivaninha para o escritor, um exemplar da primeira edição de “Os Sertões”, de 1902, a Caderneta de Campo com anotações da campanha de Canudos e, entre documentos e objetos, 70 fotos originais do fotógrafo Flávio de Barros, que retratou o conflito.

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Cunha morou ali com a mulher Anna, que chamava de Saninha, e o filho Euclides da Cunha Filho, o Quidinho. Seu filho caçula, Manuel Afonso, nasceu no casarão. O prédio foi reformado recentemente, mas as chuvas causaram a queda do reboco do beiral, porém, nada que represente ameaça, segundo Lúcia. “A estrutura é sólida, foi construída sobre trilhos de trem.”

Quando se mudou para a cidade para reconstruir a ponte, em 1898, Euclides da Cunha havia retornado de Canudos e aceitou a missão porque tinha participado do projeto da ponte anterior, que caiu com uma enchente. A estrutura metálica, importada da Alemanha, foi montada conforme projeto do engenheiro que faz parte do acervo da Casa.

Durante a obra, Euclides instalou-se num pequeno barraco de madeira e zinco, onde, nas horas vagas, escrevia Os Sertões. A cabana resistiu à grande enchente de 1977, aos prefeitos que a achavam feia e rústica e se mantém original, protegida por uma redoma de vidro. No mesmo espaço, à beira do rio, estão a herma doada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1918, em homenagem a Euclides, que foi repórter do jornal, e o mausoléu que recebeu seus restos mortais, exumados do Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, em 1982.

Uma placa de bronze reproduz frase escrita em 1908 por Euclides da Cunha em carta dirigida ao riopardense Francisco Escobar em que mostra seu apreço pelo lugar: “Que saudades do meu escritório de zinco e sarrafos, da margem do Rio Pardo”.

O nome da figura ilustre está numa avenida, na ponte, numa escola e até numa marca de café. Lúcia conta que a cidade vai apagando aos poucos as lembranças da tragédia que marcou a vida de Euclides da Cunha. Numa época em que se defendia a honra com armas, ele foi morto pelo amante de sua mulher. “Houve tempos em que se falava disso aqui, mas o reconhecimento pela contribuição dele à cidade prevaleceu”, diz a diretora. Segundo ela, a ponte de Euclides conectou Rio Pardo com o resto do mundo, possibilitando o escoamento do café pela ferrovia até o Porto de Santos.

O vigilante Paulo Henrique Moreira, de 42 anos, morador do Vale do Redentor, região separada do centro pelo Rio Pardo, conta que a ponte foi reaberta em 2014, depois de ficar um bom tempo interditada para reforma. “Sei que o homem foi um escritor, mas o que ele fez de melhor foi essa obra. Sem a ponte não sei o que seria de nós.” Ao ser informado de que Euclides da Cunha nasceu no município de Cantagalo, Rio de Janeiro, o vigilante ficou surpreso: “Está brincando, ele não é daqui? O nome dele está em todo lugar”.

O fotógrafo João Moraes, vizinho da Casa de Euclides, conta que a confusão é frequente. “A cidade tem outros fatos históricos importantes, como ter proclamado a República três meses antes da Proclamação, mas Euclides da Cunha virou um mito. Todo ano, em agosto, a semana dele é de muita festa.” Moraes registrou em fotos a filmagem da vida de Euclides, na cidade, na década de 1980. As cenas se concentraram no casarão e na ponte e atraíam multidões, mas ele não sabe se o filme foi lançado. “Por causa do assédio, muitas cenas tiveram de ser filmadas de madrugada”, lembra.

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