Engenharia, livros e tragédias

Caso de traição e vingança interrompeu vida de escritor


José Maria Mayrink Escritor descobriu ideais republicanos ainda no colégio e construiu obras públicas no interior paulista; já famoso, foi morto pelo amante da mulher

O autor de Os Sertões, obra-prima da literatura brasileira sobre a Campanha de Canudos, foi um homem introspectivo e infeliz, da infância ao túmulo, por causa de uma série de tragédias que marcaram sua vida. Engenheiro, militar, funcionário público, escritor e jornalista, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em 20 de janeiro de 1866 na Fazenda Saudade, em Santa Rita do Rio Negro, hoje Euclidelândia, distrito de Cantagalo, no Estado do Rio. De origem pobre, era filho de Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e Eudóxia Alves Moreira.

Órfão da mãe aos três anos, Euclides foi criado por duas tias no interior fluminense e passou um ano morando com a avó na Bahia. A instabilidade familiar, que influenciou afetivamente sua formação, refletiu-se nos primeiros estudos. Migrou de escola para escola até se matricular no Colégio Aquino onde entrou em contato com os ideais republicanos, sob a orientação de Benjamin Constant. Em 1884, editou com colegas o periódico bimensal O Democrata e publicou seu primeiro artigo, A Viagem. No ano seguinte, cursou a Escola Politécnica, no Rio, que logo deixou, por falta de recursos.

O próximo passo foi a Escola Militar da Praia Vermelha, porta de entrada para o Exército, no qual permaneceu dois anos. Foi preso e expulso por ato de rebeldia: quebrou seu sabre, recusando-se numa cerimônia a prestar continência ao ministro da Guerra do Império, Tomás Coelho. O médico da Escola considerou Euclides doente dos nervos. Ele viajou então a São Paulo, onde foi bem recebido pelos republicanos e conheceu Julio Mesquita, diretor de A Província de São Paulo, hoje O Estado de S. Paulo. Com a Proclamação da República, em 1889, foi reintegrado ao Exército pelo novo ministro da Guerra, seu antigo mestre Benjamin Constant.

Na casa de um dos conspiradores, o major Sólon Ribeiro, que entregou ao imperador Pedro II a intimação para que ele deixasse o País, conheceu a filha dele, Anna, de 15 anos, com quem se casou dez meses depois, em 1890. Euclides tinha 24 anos. Em 1892, quando concluiu na Escola Superior de Guerra os cursos de Estado-Maior e Engenharia Militar, começou a colaborar regularmente com o Estado com o pseudônimo José Dávila ou as iniciais E.C. Na Província, escreveu em 1888 dois artigos com o pseudônimo Proudhon.

Euclides desligou-se do Exército em 1896, quando trabalhava como engenheiro na construção da Estrada de Ferro Central do Brasil, por designação do presidente Floriano Peixoto. Três anos antes, manifestou em 1893 sua insatisfação com a punição dos envolvidos na Revolta da Armada e com os rumos do novo governo. Estava fora do serviço público, em novembro de 1897, quando partiu para a Bahia, a convite de Julio Mesquita, como enviado especial para cobrir a Guerra de Canudos. Saiu convencido de que a rebelião de Antônio Conselheiro era uma ameaça para a República, mas mudou de opinião ao chegar ao sertão.

“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime”, escreveu Euclides, agora correspondente de guerra. Ele enviou para o jornal 22 reportagens. Era o embrião do livro Os Sertões, do qual o Estado adiantou algumas amostras já em 1898, sob o título Excerto de um livro inédito. “Um jagunço degolado não vale uma xícara de sangue”, observou o repórter em um de seus primeiros despachos.

A primeira edição de Os Sertões saiu em dezembro de 1902, após meses de revisões e correções. Euclides, que tivera quatro filhos com Anna (uma menina morreu de varíola, aos 4 anos), vivia em São José do Rio Pardo, no interior paulista, onde construiu uma ponte ferroviária. O livro, com tiragem provável de dois mil exemplares, esgotou-se em poucas semanas. Respeitáveis críticos da época, como Araripe Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero, receberamOs Sertões com entusiasmo. Com 633 páginas, a obra se divide em três partes – A terra, O homem, A luta. Em 1903, Euclides foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

Funcionário público em São Paulo, onde trabalhou em Lorena e outras cidades, além de São José do Rio Pardo, Euclides perdeu o emprego por causa de mais uma entre sucessivas crises do café. A convite do Itamaraty, participou de uma comissão no Alto Purus, para fixar os limites geográficos entre Brasil e Peru. Contraiu malária em Manaus e, ao retornar da Amazônia, voltou a manifestar sintomas de uma antiga tuberculose. Apesar de doente, trabalhou no gabinete do barão do Rio Branco, escreveu artigos para o Jornal do Commercio e publicou mais um livro, Contrastes e Confrontos.

Seu casamento começou a desmoronar ao descobrir que Anna o traía com um tenente do Exército, Dilermando de Assis, um rapaz bonito e bem mais novo do que ela. Euclides teve ciúme, mas não se separou da mulher, embora ela quisesse. Remoía o ódio e chamava o filho Luís de “espiga de milho no meio do cafezal”. O menino era louro, como Dilermando, enquanto os outros filhos eram morenos. Em 1906, enquanto o marido se tratava da malária, Anna teve mais um filho com o amante, Mauro, que viveu apenas sete dias.

Numa noite de sábado, Sólon, então com 17 anos, ouviu o pai anunciar: “Amanhã, tudo se acaba, mato-os”. Euclides pegou um revólver emprestado de um primo, alegando que era para matar um cão hidrófobo que rondava sua casa. Na manhã de domingo, 15 de agosto de 1909, pegou um trem bem cedo, levando no bolso de uma roupa surrada um talão de cheques e uma foto dele com Anna, de quando eram noivos. Parecia agitado e nervoso, ao entrar na casa de número 214 da Estrada Real de Santa Cruz, no bairro de Piedade, no Rio. Bateu palmas e foi atendido por Dinorah de Assis, irmão de Dilermando. Falou que queria ver o dono da casa e avisou que estava ali para matar ou morrer.

Euclides perguntou pela mulher e foi entrando. Disparou duas vezes contra Dilermando, que estava no quarto. Dilermando, campeão de tiro, sacou de sua arma e tentou se livrar do marido da amante. “Fuja, doutor, eu não quero lhe matar”, disse Dilermando, em suas próprias palavras, registradas num livro de autodefesa ao ser julgado. No tiroteio que se seguiu, um duelo de vida e morte, segundo o criminalista Evaristo de Moraes, advogado de Dilermando no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, em maio de 1911, Dilermando foi atingido. Embora ferido, atirou duas vezes em Euclides.

Uma bala acertou o pulmão direito de Euclides, que caiu morto. Às 12h30, o Jornal do Commercio recebeu um telegrama, de Cascadura, informando que Euclides havia sido assassinado. “Nosso colaborador ultimamente andava se queixando de moléstias, mas não notamos alteração maior na fisionomia dele”, escreveu o jornal. Um dos primeiros a chegar ao local do crime, o escritor e deputado Coelho Neto, telegrafou ao presidente da República, Nilo Peçanha, ao barão do Rio Branco e a Rui Barbosa, para dar a notícia.

O laudo da necropsia de Euclides da Cunha apontou lesões cerebrais, com sinais de um processo de demência progressiva. O corpo foi sepultado no Cemitério São João Batista, no Rio. Em 1982, seus restos mortais e os do filho Euclides da Cunha Filho, também morto por Dilermando de Assis, em julho de 1916, foram trasladados para São José do Rio Pardo.

Dilermando foi absolvido nos dois casos, chegou ao posto de general e morreu de câncer em 1951, aos 63 anos.

Filho tentou se vingar e também foi assassinado

Depois de matar Euclides da Cunha em 1909, Dilermando de Assis matou também Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, em 4 de julho de 1916. Absolvido duas vezes no processo de homicídio contra o escritor, Dilermando chegou ao Cartório do 2.º Ofício da 1.ª Vara de Órfãos do Rio de Janeiro por volta das 13 horas, para se informar sobre a decisão do juiz a respeito da tutoria de Manoel Afonso Cunha, filho de Euclides, então com 15 anos.

Dilermando lia os autos no balcão quando ouviu uma detonação atrás de si. Sentiu-se ferido, as pernas fraquejando e a vista embaçando. Voltando-se para a direita, viu um vulto de uniforme escuro e o brilho de metais. Concluiu que só podia ser Euclides da Cunha Filho, aspirante da Marinha e filho de Anna, portanto meio-irmão dos seus filhos com a amante, com quem se casara.

Procurou retirar-se, segundo o advogado de defesa Evaristo de Moraes, mas ao perceber que Quidinho continuava a atirar e que ninguém o socorria, Dilermando, tirou seu revólver do bolso e disparou. O filho de Euclides da Cunha caiu morto. Levado à Justiça, Dilermando foi outra vez absolvido.

Na edição de 8 de julho de 1916, a revista Careta investiu contra a Justiça, “cujos representantes libertaram um assassino e queriam entregar uma criança ao matador de seu pai”. A revista escreveu que “afogado em seu nobre sangue, manchando-se com o sangue de uma vingança, o digno herdeiro do ardente brio de Euclides da Cunha morreu matando, na clara idade dos 20 anos”.

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