O segundo poder da República

Detalhes da rotina do jornal durante a censura militar vividos por um personagem central: o secretário de redação

Oliveiros S. Ferreira

Em fins de 1945, não havia o hábito de comprar jornal na banca. Quem queria estar bem informado assinava um e o recebia em casa toda manhã com o pãozinho e o leite. Três jornais disputavam a preferência da camada ilustrada da população paulista: O Estado de S. Paulo, ou Estadão, assim chamado pelo volume de anúncios e tamanho da página; a Folha de S. Paulo e o Diário de S. Paulo, matutino, e seu vespertino, o Diário da Noite.

Oliveiros FerreiraNELSON ALMEIDA/ESTADÃO

Nenhum era ponto de referência na cidade e o Estado era o mais distante do centro. Até o fim do Estado Novo, tinha dois endereços: um para redação e composição (linotipos), outro para impressão (rotativas). Modestos, ambos.

A influência política do Estado era pequena: afinal, o então interventor federal ocupara militarmente o prédio e depois forjara a transferência do jornal a amigos do poder. Era um jornal do governador. Em outubro de 1945, quando Getúlio Vargas foi deposto, tudo mudou. Livre para decidir, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu o direito dos antigos e legítimos donos da sociedade anônima que editava o Estado. Da noite para o dia, o jornal do governador passou a ser o da oposição a Vargas e aos que o seguiram até 1964. Era “um partido”. Compreendamos: não o jornal de um partido, mas “um partido” ele próprio, empenhado na ilustração e educação de seus leitores. O que o movia era um objetivo nacional, especialmente a educação. Como Getúlio Vargas era inimigo, o jornal foi apontado como sendo da UDN. E perdeu-se de vista, no estudo de sua “ideologia”, que o projeto de construir a nação já havia sido aventado desde o Império.

Apreensão. Edição confiscada pela Polícia Federal ainda na rotativa em 1968 (ACERVO/ESTADÃO)

O prédio da Major Quedinho, 28, para onde se mudaram administração, redação e oficinas em 1953, erguia-se como afirmação de vontade: saibam que aqui não é o jornal do governador, mas sim o de quem pretende com ele construir uma nação! Por sua majestade e localização, dava a todos uma ideia de segurança que era reforçada pelo fato de que a carteirinha do Estadão era como um salvo-conduto quando o policial pedia credenciais... Até a apreensão da edição de 13 de dezembro de 1968.

Em 1955, a redação fora visitada por um censor no estado de sítio decretado pelo Congresso na sequência dos golpes desferidos pelo general Henrique Lott, ministro da Guerra, a pretexto de garantir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. A passagem do censor foi tão rápida e sem efeito que será melhor sempre tê-la como “visita”. Em 1968, nenhum censor visitou o jornal: a edição de 13 de dezembro foi simplesmente apreendida.

A apreensão levou à censura. O Estadão reagiu publicando poesias e depois Os Lusíadas no lugar da matéria censurada e houve quem louvasse o empenho do jornal em difundir cultura. O Jornal da Tarde decidiu publicar receitas culinárias. Muitos leitores protestavam quando a receita não cabia inteira no espaço. Se o Estado difundia a cultura, o JT sacrificava a gastronomia... Ao menos duas edições de Os Lusíadas foram publicadas em pequenos trechos, respeitada a sequência original. Afinal, quem selecionava os versos sabia ler e escrever e orgulhava-se de difundir cultura e enganar o censor...

A crise de 1968 foi longa e grave. O bastante para que não se estranhasse que a Polícia Federal quisesse saber como seria o jornal do dia seguinte. O general Sílvio Correa de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo, telefonou por volta de meia-noite de 12 de dezembro para conhecer a manchete de primeira página. Ela falava da tensão política e da prontidão do Exército. Informado, despediu-se sem mais. O jornal fechou normalmente. Às primeiras horas do dia 13 (o AI-5 só seria baixado à noite), soubemos da apreensão determinada pessoalmente pelo general Sílvio. Estava aberto um longo período de censura.

Os censores, gente que fazia a censura de diversões públicas (teatro de revista, inclusive), instalaram-se na redação na noite de 13 de dezembro. Eram quatro ou cinco, substituídos dias depois por um só, da PF, que ficou alguns dias e se foi não sem antes esclarecer que a censura seria feita por telefone (“isso pode”, “isso não pode”) e o secretário da redação seria chamado a prestar conta na PF se a ordem não fosse obedecida.

Às vezes, sem aviso prévio, os censores vinham à redação querendo ver esta ou aquela matéria. A censura nas oficinas culminou num processo que, segundo o chefe da PF, o secretário de redação foi o elemento principal. Publicamos pequena notícia sobre a possível candidatura do general Ernesto Geisel à Presidência. O chefe da PF convocou a seu gabinete o secretário de redação e transmitiu-lhe um “apelo”: não mais publicar notícias sobre sucessão. Conhecido o apelo, o secretário disse ao chefe da PF que o transmitiria a dr. Julio de Mesquita Neto. A versão que o ministro da Justiça transmitiu, justificando a presença de censores na tipografia, difere desta.

Versão Alfredo Buzaid: Conhecido o apelo, prof. Oliveiros respondeu dizendo que a apelos não atendia e ordens não cumpria. O envio do censor, diante dessa resposta, fez-se imperativo.

Aqueles quatro ou cinco agentes vieram todas as noites até a de 3 de janeiro de 1975. Nessa, o chefe da censura telefonou para dizer que não viriam. Assim terminou a censura ao Estadão.

Apreensão. Dois episódios merecem ser narrados. A cena do primeiro mereceria ser filmada. Estamos em 1969, no salão nobre no 5.º andar do prédio da Major Quedinho, raramente usado. Convencionou-se que a ele têm acesso poucos visitantes, um reconhecimento de que se trata de assunto relevante. Nessa cena, há duas poltronas ocupadas: uma por dr. Julio; a outra pelo chefe da Polícia Federal em São Paulo, à paisana, o general Sílvio que, meses antes, determinara a apreensão da edição de 13 de dezembro de 1968 e naquele momento respondia pela censura ao jornal. Viera comunicar que a apreensão fora decisão exclusivamente sua, após ler, praticamente na rotativa, o editorial Instituições em Frangalhos. Dr. Julio põe-se de pé, sinal evidente de que a entrevista terminara. Formalmente, como era seu estilo nessas circunstâncias, diz: “Agradeço sua visita e o que me comunicou. Veja, porém, que o ato (apreensão) era tão grave que só poderia ser praticado com autorização superior”.

O general não viera fazer esclarecimentos por inspiração do anjo da guarda. Fora-lhe recomendado que assim procedesse, já que sua decisão estava sendo interpretada como de responsabilidade do Comando Militar da área e do governo federal, especificamente do presidente Costa e Silva. O oficial de informações que insistira com o general Sílvio para que falasse com dr. Julio pretendia restabelecer as relações do jornal com a Presidência. Não lhe poderia ter ocorrido que o general-chefe da Polícia Federal de um governo revolucionário se defrontaria com alguém que se considerava, por múltiplas razões, mas sobretudo mérito próprio, mais importante que o chefe da polícia de um governo que ajudara a compor.

As palavras de dr. Julio ao general indicam claramente que a apreensão da edição de 13 de dezembro foi recebida como ato de lesa-majestade. É essa impressão que a cena no salão nobre transmite: estão dois poderes ali representados e ao general à paisana só restou apertar a mão em despedida, reconhecendo implicitamente que dr. Julio tinha razão ao dizer que só alguém muito bem situado na escala de poder ousaria ofender O Estado de S. Paulo.

O bom relato obriga que se conte que não houve apenas uma apreensão. A cena, porém, não tem a grandeza da primeira: presente não mais um general, mas um coronel. Um general está no outro lado da linha telefônica. É o comandante da 2.ª Região Militar e pouco depois será ministro. O coronel é chefe de seu Estado-Maior. Acompanha-o o censor. O coronel quer ler o editorial, outra vez denominado Instituições em frangalhos. Que alguém comunicara ao censor que ofendia o presidente Geisel. Lê-o em prova de página e comunica ao comandante que não deve ser impresso. O general dá a ordem: “Apreenda!”, que me é comunicada, iniciando um diálogo de surdos: “O jornal não pode rodar”. “Tenho ordem de rodar.” “Tenho ordem para que não rode.” “Então, o senhor fale com o dr. Julio Neto, que só estará em casa daqui a meia hora” (conforme antes bem combinado entre Julio e mim). “Espero.” Ele espera, transmite a determinação do comandante e me entrega o telefone. Julio autoriza que a máquina rode exemplares com o editorial condenado para configurar o ato de força da apreensão e determina que, em seguida, o jornal rode toda a edição com outro editorial. Há confusão na transmissão de instruções; rodam-se cerca de 25 mil exemplares com o editorial censurado, muitos dos quais são apreendidos. Alguns exemplares saíram normalmente e chegaram a Ribeirão Preto e ao Comando do 3.º Exército.

O episódio serviu para provar que havia elementos do governo infiltrados no jornal, com quase certeza na tipografia. O censor soube que havia um editorial, como soubera meses antes que havia um outro, sobre política do café, substituído sem alarde. A censura, daquela vez, foi mais delicada, por telefone: “Boa noite. O senhor tem um editorial sobre a política do café? Não pode sair.” Dr. Julio estranhou: “Como souberam? Substitua pelo Nota 100”, que era sobre problema urbano, menor. Assim foi.

PROFESSOR DA USP E DA PUC-SP, FOI JORNALISTA DO ‘ESTADO’ ENTRE 1953 E 1999. DE 1967 A 1976, OCUPOU O CARGO DE SECRETÁRIO DE REDAÇÃO. EM SEGUIDA, FOI REDATOR-CHEFE E, DEPOIS, DIRETOR