SP da época tinha 31 mil habitantes

Cidade que apenas começava a receber melhorias seria transformada pelo 'ouro verde' nas décadas seguintes

Roberto Pompeu de Toledo
ESPECIAL PARA O ESTADO

O endereço de A Província de São Paulo, ao ser lançada, era Rua do Palácio, 14. Por que Rua do Palácio? A que palácio se refere tal nome? Tratava-se do Palácio do Governo. Desde cem anos antes, quando o morgado de Mateus assumiu o comando da então Capitania de São Paulo, a sede do governo instalara-se no que fora o colégio dos jesuítas. Largo do Palácio é como era conhecido, ao surgimento do jornal, o local que décadas depois recuperaria o antigo nome de Pátio do Colégio. A pequena Rua do Palácio assim se chamava porque conduzia ao Largo do Palácio. Naqueles mesmos anos 1870 se instalou num prédio dessa rua a Repartição do Tesouro. Nos anos seguintes a Rua do Palácio seria transmudada, na boca do povo, em Rua do Tesouro – nome que, oficializado, chegaria aos nossos dias.

O primitivo endereço de A Província nos serve de ponto de partida para um percurso pela cidade daquele tempo. O jornal abrigava redação e oficinas numa das extremidades da rua, no ponto em que fazia esquina com a Rua do Comércio. “Do Comércio” porque num certo período hospedara as quitandeiras da cidade. No começo do século 20 essa rua mudaria o nome para Álvares Penteado, homenagem ao conde Antônio Álvares Penteado, grande cafeicultor e pioneiro da indústria. A esquina da Rua do Comércio com a do Palácio ficava no centro nervoso da urbe, bem no miolo do triângulo formado pelas Ruas de São Bento, Direita e da Imperatriz (a futura 15 de Novembro), lá onde tudo pulsava e tudo acontecia.

Pulsava e acontecia pouco, porém. O recenseamento de 1872, o primeiro de âmbito nacional, atribuiu à cidade a população de 31.385 habitantes. São Paulo não era apenas muito menor do que o Rio de Janeiro, a capital imperial (275 mil habitantes), Salvador (129 mil) e Recife (116 mil), cidades já nascidas como centros administrativos ou comerciais importantes. Era menor também do que Belém (62 mil habitantes), Niterói (47 mil), Porto Alegre (44 mil), Fortaleza (42 mil) e Cuiabá (36 mil). São Paulo mal saíra do ovo de origem, representado pela histórica colina entre os vales do Rio Tamanduateí e do Riacho Anhangabaú. Um mapa de 1881 mostra:

– um lado mais edificado, a oeste, na área de Santa Ifigênia;

– nada a leste senão umas poucas casas ao longo das Ruas do Gasômetro e do Brás (futura Avenida Rangel Pestana);

– ao norte uma ocupação que mal ultrapassava o Jardim Público (Jardim da Luz);

– ao sul esparsas edificações ao longo das Ruas da Liberdade, dos Estudantes e Conselheiro Furtado.

O denso núcleo central era constituído por ruas estreitas e tortuosas. Em abril de 1877 A Província de São Paulo mudou para o número 44 da Rua da Imperatriz. Era a rua que reunia o melhor comércio da cidade. No entanto, apresentava-se desalinhada a ponto de um prédio não acertar o passo com o próximo, salpicando-a de dentes que avançavam ou recuavam sobre seu leito. O único cruzamento com ângulos retos na colina histórica era o da Rua de São Bento com a Rua Direita, por isso chamado de “Quatro Cantos”. Não existia a Praça do Patriarca a espraiar-se na mesma área; as duas ruas cruzavam-se num espaço apertado, com casario cerrado de todos os lados. O Largo da Sé ocupava modesto recanto ao início da Rua Direita e a um passo do Largo do Palácio. Entre ele e o largo então chamado de Municipal, ou de São Gonçalo (a futura Praça João Mendes), mediavam dois extensos quarteirões. No início do século 20 esses quarteirões seriam arrasados para dar lugar à Praça da Sé, quase dez vezes maior que o largo seu antecessor.

Esse núcleo era encapsulado pelos vazios do Anhangabaú, de um lado, e da Várzea do Carmo, do outro – a área que, cortada pelo Tamanduateí, daria lugar ao Parque D. Pedro II, meio século depois. O Viaduto do Chá só seria inaugurado em 1892. Para atravessar o Vale do Anhangabaú antes disso, era preciso descer o barranco de um lado, caminhar pelo mato lá embaixo, vencer o córrego por uma das pontes que o atravessavam e galgar o barranco do outro lado. Desnecessário dizer que, sendo assim, a cidade avançava lentamente nas bandas entre o Teatro Municipal e a Praça da República dos dias de hoje. Na Várzea do Carmo, toda alagadiça, historicamente sujeita aos humores do Tamanduateí, era pior. O Tamanduateí passava rente à colina central; seu leito, antes das retificações que o empurrariam para mais adiante, corria junto à Rua 25 de Março. Às suas margens deixava vastas áreas encharcadas, a ponto de em certas épocas do ano a travessia ser impossível.

E no entanto, naqueles mesmos anos, apesar de sua modéstia e de seu atraso, São Paulo estava no ponto de largada para a corrida que a levaria da rabeira a uma posição de preeminência entre as capitais. O recenseamento de 1890 deu-lhe 64.934 habitantes e promoveu-a ao quarto lugar, atrás de Rio de Janeiro, Salvador e Recife. E no de 1900 aparece com 239.820, atrás apenas do Rio. O nome do milagre é café, o “ouro verde” que ia transformando a província na mais rica do País.

Progresso. Os anos 1870 trouxeram melhoramentos de monta à cidade. No começo da década a São Paulo Gaz Company, companhia inglesa que construíra um gasômetro na antiga Chácara da Figueira, no Brás, inaugurou o serviço de iluminação pública a gás. Em 1872 iniciou-se o serviço de bondes de burros, ou melhor, “diligências sobre trilhos”. Naquele mesmo ano de 1872 entrava em funcionamento na Rua da Constituição (a futura Florêncio de Abreu) a pioneira fábrica de tecidos de Diogo Antônio de Barros, o major Diogo. Anúncio da fábrica aparecia na quarta e última página do n.º 1 de A Província de São Paulo. Tratava-se de uma fábrica modesta, movida a vapor, mas que, nas palavras de um profético entusiasta, prenunciava “o desenvolvimento fabril nesta cidade, a única em que poderá primar, e com a qual atingirá alto grau de prosperidade”.

O profeta em questão era João Teodoro Xavier de Matos, um promotor público e professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco que entre dezembro de 1872 e março de 1875 governou A Província de São Paulo. João Teodoro devotou a maior parte de sua atenção à própria cidade de São Paulo e promoveu reformas que foram do calçamento de paralelepípedos em ruas e praças centrais – considerável progresso numa cidade em que, quando havia calçamento, era com pedras irregulares – à abertura de ruas.

Outras de suas obras foram encetadas na Várzea do Carmo, procurando torná-la menos hostil ao trato humano. Com vistas à drenagem e saneamento da área, João Teodoro promoveu correções no curso do rio e construiu terraços para conter os frequentes desmoronamentos nos barrancos que desciam da colina central. Para melhorar a comunicação com o Brás, reforçou o “aterrado” existente (via construída acima do nível do terreno, na trilha em que viria a correr a Avenida Rangel Pestana) e construiu um novo, na direção do Gasômetro. E até com vistas ao prazer da população interveio na área, implantando um parque na ilha que, graças a um canal aberto para regularizar o curso do rio, formara-se no Tamanduateí. Para surpresa dos atuais habitantes, São Paulo teve sim uma ilha, com jardins, bancos e caramanchão, bem junto ao centro, ali onde desemboca a rua que viria a ser chamada de General Carneiro (por sinal, outra obra de João Teodoro). Infelizmente, durou pouco. Mal frequentada, abandonada ao lixo e ao lodo, acabou retomada pelo charco.

Avanços. Em 1875, mesmo ano do surgimento de A Província, São Paulo ganhou melhoramento de fundamental importância a quem se propunha a publicar um jornal – as linhas de telégrafos chegaram à cidade, conectando-a a uma rede do Rio Grande do Sul a Pernambuco. Outro avanço notável ocorreria em 1881 com a entrada em operação da caixa d’água que a recém-constituída Companhia Cantareira das Águas construíra nos “altos da Consolação” – área que hoje não parece assim tão alta, junto ao cruzamento da atual Rua Piauí, onde uma caixa d’água continua a existir. A obra permitiria que aos poucos a água encanada chegasse aos domicílios. Com isso se condenava ao declínio os chafarizes nos quais até então a população se abastecera, entre os quais o mais conhecido era o chafariz do Largo da Misericórdia, construído nos tempos coloniais pelo reputado escravo Tebas. (Um anúncio da Loja do Barato, também na quarta página do primeiro número de A Província dava como endereço do estabelecimento o “Largo do Chafariz, em frente à Igreja da Misericórdia”. O chafariz era célebre a ponto de ter desbancado o nome oficial do logradouro.)

O francês Bernard Gregoire saía a cavalo pelas ruas da cidade anunciando as notícias do dia. Com barrete branco na cabeça e buzina na mão, ele carregava um maço de edições de 'A Província de São Paulo' debaixo do braço. O famoso jornaleiro foi incorporada ao ex-líbris do 'O Estado de S.Paulo'.(ACERVO/ESTADÃO)

O Teatro São José, situado na praça que viria a se chamar João Mendes e no lugar em que ficam as costas da catedral, era a principal casa de espetáculos de São Paulo. Em junho daquele ano de 1875 lotou para a apresentação de um violinista carioca de dez anos, Eugênio Maurício Dengremont. E quais eram os principais personagens da cidade? No Largo de São Francisco reinava, como favorito dos estudantes, o professor José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como José Bonifácio, o Moço. Grande orador, tinham-no como ídolo os estudantes Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Castro Alves, que pouco antes haviam passado pelos bancos da Academia.

Personagens. Era um tempo em que a campanha abolicionista fervia e o principal abolicionista em São Paulo era o notável Luís Gama, nascido na Bahia filho de escrava. Também poeta e jornalista, Gama pintava e bordava em jornais satíricos como O Diabo Coxo e Cabrião. Morava numa casa modesta no longínquo Brás e era ídolo de outra geração de estudantes de Direito, a de Raul Pompeia e Lúcio de Mendonça. Por fim, a própria A Província daria sua contribuição ao elenco de tipos da cidade com um personagem que se tornaria popular – o francês Bernard Gregoire, que em 1876 inaugurou a novidade de sair pelas ruas montado num cavalo (ou burro, segundo certas versões) apregoando e vendendo o jornal. Gregoire acabou eternizado na história de A Província, depois O Estado de S. Paulo, ao inspirar a figura que ilustra o ex-líbris do jornal.

É COLUNISTA DA REVISTA VEJA E AUTOR DE A CAPITAL DA SOLIDÃO – UMA HISTÓRIA DE SÃO PAULO DAS ORIGENS A 1900 E DE A CAPITAL DA VERTIGEM – UMA HISTÓRIA DE SÃO PAULO DE 1900 A 1954, QUE DEVE SER PUBLICADO EM BREVE