Na democracia, a censura sobrevive

Fim do regime militar abriu caminho para um jornalismo investigativo, mas tentativas de controle continuaram

Gabriel Manzano

O fim dos 21 anos de ditadura militar e o início da redemocratização, em março de 1985, marcaram uma virada na vida do País e da imprensa – e o Estado se destacou, desde o início, entre os que aproveitaram os novos tempos para informar melhor a sociedade.

  • Pichação em parede de Sorocaba, no interior de São Paulo, pede retomada do voto direto, em 05/04/1966 (ACERVO/ESTADÃO)

  • O presidente eleito Tancredo Neves, tendo ao lado sua esposa Risoleta Neves, discursa no plenário da Câmara dos Deputados, no Congresso Nacional, em Brasília. Eleito em 15 de janeiro de 1985, Tancredo não chegou a assumir o cargo (ALENCAR MONTEIRO/ESTADÃO)

  • Tancredo adoece. O vice presidente, José Sarney, assume a Presidência em 15/03/1985 (REGINALDO MANETE/ESTADÃO)

  • Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães mostra o projeto da nova Constituição, em 24/11/1987 (ADÃO NASCIMENTO)

  • Capa de 6 de outubro de 1988 anuncia a entrada em vigor da Constituição de 1988. Promulgada pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, a nova carta foi um instrumento legal de suma importância no processo de transição democrática do País (ACERVO/ESTADÃO)

  • Capa do 'Estado' de 22 abril de 1985 anuncia a morte de Tancredo. Ainda celebrando a retomada do regime democrático, a Nação, atônita, caiu de luto pelo homem que personificava seus anseios políticos (ACERVO/ESTADÃO)

  • Fernando Collor de Mello consulta o relógio para anotar o horário exato de sua saída da Presidência da República, em 02/10/1992. Após denúncias de corrupção, o primeiro presidente eleito pelo voto direto após a ditadura militar renunciou para evitar impeachment. O 'Estado' cobriu as denúncias do 'Caso PC' e todos os capítulos da crise política causada pelo escândalo, além da CPI, das passeatas pedindo a saída de Collor, da renúncia, do impeachment e da cassação dos direitos políticos de Collor (WILSON PEDROSA/ESTADÃO)

  • Em 10 de maio de 2005, vem a público vídeo que mostra Maurício Marinho, então diretor dos Correios, recebendo propina. O deputado Roberto Jefferson é apontado como chefe do esquema de corrupção. O 'Estado' cobre as denúncias e a CPI instaurada em 8 de junho de 2005(ACERVO/ESTADÃO)

  • Escândalo derruba o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. Abalado pelas denúncias do esquema de compra de votos conhecido como mensalão, Dirceu deixou o governo Lula em 16 de junho de 2005. O 'Estado' cobriu todos os capítulos do caso, incluindo o julgamento e a prisão dos condenados (ACERVO/ESTADÃO)

  • Após quase sete meses bombardeado com denúncias de corrupção, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) exibe sua carta de renúncia à presidência do Senado, em Brasília, DF, 04/12/2007 (Celso Júnior/ESTADÃO)

  • Após denúncias de corrupção e nepotismo, Severino Cavalcanti, presidente da Câmara, renuncia em 21/09/2005. O deputado, que perdeu o foro privilegiado, buscava escapar da cassação e da inelegibilidade (ACERVO/ESTADÃO)

  • O 'Estado' cobriu o escândalo dos 'Atos Secretos', em 2009. As denúncias revelaram casos de parentes de políticos que ganharam cargos sem que seus nomes fossem publicados em órgãos oficiais (ACERVO/ESTADÃO)

Não foi uma virada súbita. A passagem do autoritarismo à democracia se fez aos poucos, deixando para trás os anos de chumbo, a censura sistemática, a Lei de Segurança Nacional. Sem generais à vista, o País já respirava os ares da “Constituição cidadã” – que, por fim, foi promulgada em 1988. Com ela vieram os direitos individuais, como os de expressar opinião, ser informado, produzir e divulgar informação e cultura.

Mas não faltavam desafios a quem tentasse fazer jornalismo sério e independente. A corrupção e a impunidade continuavam à vontade na nova cena política. Denunciá-las e investigar fraudes e abusos significava, às vezes, expor-se ao risco de retaliações. E elas vieram, deixando um saldo, desde os anos 1980, de 29 jornalistas mortos e centenas de outros agredidos. Além disso, a nova Constituição abriu brechas à chamada “censura judicial”, que permitia a qualquer autoridade criticada alegar o direito a privacidade e assim obter sentenças judiciais que impediam a divulgação de denúncias e processos.

Mobilização. Praça da Sé tomada por milhares de pessoas durante comício pró-diretas em janeiro de 1984 (ROLANDO DE FREITAS/ESTADÃO)

Combatividade. Esses desafios em nada alteraram a disposição e o espírito investigativo do jornal. Das fraudes envolvendo as obras da Ferrovia Norte-Sul, já no início do governo José Sarney, em 1986, às mais recentes revelações da Operação Lava Jato, o jornal fez da denúncia dessas irregularidades uma rotina.

Crimes de toda ordem – fraudes, superfaturamentos, propinas, estelionatos, lavagem de dinheiro, caixa 2, acertos entre partidos, nepotismo e assemelhados, muitos dos quais transformados em importantes furos jornalísticos, não saíram do alto das páginas e foram vigorosamente dissecados em editoriais. Muitos desses escândalos continuam na memória dos leitores: anões do Orçamento, caso Sivam, Banestado, Encol, Pasta Rosa, Dossiê Cayman, CPIs da Corrupção, dos Bingos, Precatórios, Bancoop, Cartões Corporativos, Mensalão, caso Francenildo, Atos Secretos...

A eles se somam algumas célebres operações da Polícia Federal – Anaconda, Navalha, Sanguessugas, Satiagraha e Lava Jato, para mencionar só as mais famosas. O Estado não foi o único nesse combate, mas se destacou pelo rigor com que fez, dessa causa, uma prioridade inegociável.

Muitas dessas reportagens valeram o reconhecimento de prêmios importantes. Um dos mais prestigiados do País, o Prêmio Esso, teve o Estado, ou o Jornal da Tarde, seu coirmão de semelhantes cruzadas, na lista de premiados em 42 dos seus 59 anos de existência. Desde O Problema da Segurança de Voo, Prêmio Esso regional conquistado em 1958, ao caderno Sangue Político, Prêmio Esso de Jornalismo de 2014, o jornal colecionou reportagens históricas, como o furo mundial da localização do nazista Klaus Barbie na Bolívia (1972), a revelação das mordomias de Brasília (1976), o desmentido aos generais no caso do Riocentro (1981), bastidores inéditos da Intentona de 1935 (1993) e a denúncia dos Atos Secretos do Senado (2009), para citar só alguns.

Censura. Essa combatividade teve um preço. O jornal está há 1.922 dias submetido, por decisão judicial, a uma censura ainda não revogada. Ela foi imposta em 2009 por um juiz do Tribunal de Justiça de Brasília, velho amigo do ex-senador José Sarney. Atendendo ao filho deste, o empresário Fernando Sarney, o juiz proibiu o jornal de divulgar qualquer informação sobre a Operação Faktor (antiga Boi Barrica) da Polícia Federal, que investigava irregularidades que o envolviam.

O Estado recorreu e o caso aguarda decisão – ele está no momento em mãos da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. O empresário chegou a desistir da ação, mas o jornal decidiu esperar por uma sentença final, para garantir maior segurança jurídica à imprensa em geral, em casos semelhantes.

Um segundo pedido de censura, que atinge vários órgãos de imprensa, partiu em 2001 do então governador do Rio Anthony Garotinho. Acusado de subornar um auditor fiscal, ele ajuizou no Rio uma ação que impede a divulgação das conversas em questão. O caso também aguarda decisão no STF.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’