Na 1.ª Guerra, ‘Estadinho’ faz história

Edição vespertina do jornal atualizava notícias do front e trazia análises apuradas de Julio Mesquita sobre conflito

Marcelo Godoy

A história de um jornal pode ser contada pela história de suas ideias e do mundo no qual elas nasceram e se difundiram. E nada modificou mais o planeta nos 140 anos do Estado que a 1.ª Guerra Mundial. O conflito derrubou monarquias, viu nascer o comunismo e ceifou 20 milhões de vida. No Brasil, abriu caminho às revoltas tenentistas, à redescoberta da nação e ao surgimento de uma identidade cultural, superando modelos que a uniam à Europa.

A guerra também trouxe transformação ao prédio da Praça Antônio Prado, que abrigava então a redação do jornal. Criou-se a edição vespertina, o Estadinho, e apostou-se que o aumento dos leitores era a única saída possível para enfrentar a queda das receitas publicitárias e o aumento dos custos do papel provocados pelo conflito.

Soldados britânicos comemoram o fim da guerra (ACERVO/ESTADÃO)

Com seus boletins de guerra, Julio Mesquita ajudou a criar o jornalismo moderno no Brasil. Era 6 de agosto de 1914 quando publicou o primeiro dos artigos semanais que escreveria quase sem interrupção até 14 de outubro de 1918. Com base em telegramas e informações – muitas das quais contraditórias – vindos de países beligerantes, o jornalista procurava dar aos leitores uma visão clara e abrangente de um conflito que mais do que europeu era mundial. Manifestava clara simpatia pelos aliados, mas tentou mostrar que isso não significava antipatia pelas potências centrais – Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia.

Confira especial do 'Estado' sobre os 100 anos da 1.ª Guerra Mundial

Julio Mesquita escreveu: “O Estado simpatiza com os aliados, não porque antipatize com os alemães, mas porque diverge visceralmente da política autoritária e militarista que desviou a Alemanha de sua luminosa missão e produziu essa guerra odiosa. Contra essa política, sim, temos toda a má vontade, onde quer que ela se implante ou firme, na Alemanha ou em qualquer outro país, inclusive o nosso.”

A guerra que devia durar semanas se tornou rapidamente um massacre. No dia seguinte ao Natal de 1914, Julio Mesquita escreve sobre a “trágica monotonia” das batalhas que traziam “ruína e desgraça”. Oliveira Lima em suas crônicas publicadas no jornal relatava as condições desumanas dos campos de batalha e as assustadoras cifras das mortes nas batalhas. Símbolo desse período era a imutável manchete que havia dois anos o jornal trazia: A Conflagração.

A Europa se desfazia em sangue e lentamente deixava de ser a principal referência cultural para o Brasil. A civilização que se destruía nas trincheiras dava aos poucos espaço para a redescoberta da nação. Em seus editoriais, o Estado aliou-se aos defensores da modernização do País e abraçou em 1915 a causa do civismo de Olavo Bilac, que, além da defesa do serviço militar obrigatório, enxergava na modernização do Exército – e, por consequência, de sua indústria – a única garantia para a independência do Brasil.

O Estadinho publicava grande material fotográfico sobre a guerra, além de relatos do correspondente em Roma, Ancona López. Com o escritório na capital italiana, o jornal chegava aos combatentes aliados no front, principalmente aos milhares de ítalo-brasileiros que haviam se alistado para lutar pela Itália. Entre eles estava Amerigo Rottelini, filho do jornalista italiano Vitaliano Rottelini, dono do jornal Fanfulla, editado em São Paulo. Dois anos mais tarde, o Estadinho publicaria notícia da morte do tenente Amerigo quando conduzia suas tropas contra os austríacos.

Capa da edição vespertina 'Estadinho' (REPRODUÇÃO)

O historiador francês Olivier Compagnon mostra como a guerra influenciou outra empreitada de Julio Mesquita: a fundação em 25 de janeiro de 1916 da Revista do Brasil. Para Compagnon, que estudou o impacto da guerra na América Latina em O Adeus à Europa, a revista dirigida pelo jornalista foi um marco na história intelectual do País.

Ela teria participação de Graça Aranha, Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Jackson de Figueiredo. O ambiente da guerra ajudara a criar as bases para o movimento que resultaria na Semana de Arte Moderna de 1922.

Em seu primeiro número, a revista anunciava que “por trás do título e dos homens que a sustentam há uma ideia simples e imensa: o desejo, a escolha e a vontade firme de criar um núcleo de propaganda nacionalista”. Ela prosseguia: “Ainda não somos uma nação que se conhece, que se estima e que se basta, ou, para ser mais preciso, somos uma nação que ainda não tem coragem de se pensar sozinha, adiante, numa projeção rigorosa e fulgurante de sua personalidade”.

Em 1917, a urgência trazida pela guerra faria Julio Mesquita participar da Liga de Defesa Nacional de São Paulo, que pressionou o governo federal brasileiro pela declaração de guerra do País contra as Potências Centrais.

Greve geral. Em 1917, trabalhadores de São Paulo decidiram entrar em greve. O movimento recebeu apoio de um dos principais cronistas do jornal: Mario Pinto Serva. E, a pedido dos operários, Julio de Mesquita Filho foi o mediador com os patrões para o fim do movimento.

A conduta do jornal no episódio atrairia a fúria de Altino Arantes, governador paulista. Aproveitando-se da declaração de guerra do País, o estado de sítio foi decretado pelo presidente Venceslau Brás em 17 de novembro de 1917. Arantes aproveitou o decreto presidencial para calar tudo o que lhe desagradava.

A primeira mordaça da história do Estado foi de 24 de novembro de 1917 a 28 de fevereiro de 1918. O jornal enfrentou-a deixando em branco os espaços dos artigos e trechos amputados pelo gabinete de polícia. A faca dos censores mutilou oito edições do Estadinho e 14 do Estado. A ação contra o jornal foi suspensa por decisão da Justiça Federal.

Em 14 de outubro, Julio Mesquita escreveria seu último boletim sobre a guerra. “Esta seção do jornal já não tem razão de ser. Comentavam-se aqui, semanalmente, os fatos da guerra. Ora, a guerra, a bem dizer, acabou. Armistício não é paz nem ao armistício ainda chegamos. É mais provável, porém, que as nações aliadas dos Estados Unidos o não neguem e os generais que comandam exércitos em luta o não embaracem. Além disso, em tais condições a Alemanha o pediu, que não há receio de que, por sua iniciativa, o fogo devastador se reacenda.”

Estava certo. A guerra mudou o mundo, levou comunismo à União Soviética e só acabaria de fato com a nova derrota alemã, em 1945. E o jornal entraria nos turbulentos anos 1920 ao lado de setores que buscavam nova identidade para a Nação.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’