Mobilização em torno da educação democrática e progressista envolveu vários setores da sociedade
Um dos mais significativos episódios do protagonismo do jornal O Estado de S. Paulo no que se pode chamar de a questão da educação no Brasil foi o da Campanha em Defesa da Escola Pública, de 1959 e 1960. Questão da educação porque, em função dos embates em torno do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a concepção do que deveria ser o cerne da própria educação pública veio à tona. E veio porque a tramitação do projeto deu oportunidade aos detratores da escola pública para sublinhar-lhe as deficiências, comparando-a com a escola privada supostamente de melhor qualidade e defendendo a tese de que o eixo da educação brasileira deveria ser invertido, passando o controle e o favorecimento para o ensino privado.
A principal defesa dessa inversão vinha do clero e do episcopado católico, que interferia no projeto na Câmara Federal por meio de um padre deputado e no Senado por meio de um padre senador.
Em defesa da escola privada, fora apresentado um substitutivo desfigurante ao projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que era de autoria do professor Antonio de Almeida Júnior, livre-docente da Faculdade de Direito. Ele fizera parte do grupo de educadores ligados à redação de O Estado de S. Paulo, que fundara a Universidade de São Paulo.
Tiveram os críticos da educação pública a qualificada e veemente contestação de extenso grupo de educadores, sobretudo da Universidade de São Paulo, no Manifesto dos Educadores: Mais uma vez convocados, escrito pelo professor Fernando de Azevedo e subscrito por educadores renomados.
Inspiração. Começava com uma referência ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que reunira grandes nomes da educação brasileira e propusera o que no fundo deveria ter sido o projeto de reforma educacional da Revolução de Outubro de 1930.
Fernando de Azevedo e os professores que com ele se alinharam faziam parte do chamado grupo de O Estado de S. Paulo, que se reunia em torno de Julio de Mesquita Filho. O manifesto foi publicado em janeiro de 1959 e reproduzido em vários jornais brasileiros, até mesmo no Diário do Congresso Nacional.
O Manifesto convocava a sociedade e o governo para uma tomada de posição em defesa “da educação democrática, da escola democrática e progressista que tem como postulados a liberdade de pensamento e a igualdade de oportunidades para todos”.
Mais do que uma campanha, tratou-se de um verdadeiro movimento social. O documento não deixava de reconhecer a pobreza e o desemparo da escola pública. Ela estava sendo consumida por concepções quantitativas, deserdada das qualidades que deveria e poderia ter. “Precisamos convencer-nos, de uma vez por todas, que o futuro do Brasil não está na sobra dos conluios nem no tumulto das assembleias, mas no milagre eterno da sua juventude, nas mãos de nossos filhos.”
Professores, especialmente da USP, saíram a campo para fazer conferências e debates em defesa da escola pública em todos os cantos. O envolvimento do jornal deu visibilidade à ameaça a que estava sujeita e estavam sujeitos os valores republicanos abrigados em sua redação e em sua concepção do que deveria ser a educação brasileira.
Professores, alunos e pais de alunos se mobilizaram em todas as partes em defesa da escola. Não só eles: a campanha mobilizou sindicatos operários e estudantes universitários. Convenções e congressos de diferentes categorias profissionais foram realizados.
Diversidade. A adesão da Maçonaria, dos espíritas e dos protestantes reafirmou o pluralismo republicano do movimento, indicativo da redação do jornal como uma fortaleza do republicanismo por ele defendido e sempre desfigurado pela insidiosa tendência da política brasileira de mudar o arcaico para mantê-lo, na célebre afirmação de Tancredi, em Il Gattopardo, de Lampedusa.
Mesmo em setores minoritários da Igreja Católica houve apoios à defesa da escola pública. O professor Florestan Fernandes, provavelmente o mais destacado participante da campanha, contou-me, poucos dias antes de falecer, que até mesmo recebera um convite para conversar do monsenhor Paulo Florêncio de Camargo, pároco da Igreja do Divino Espírito Santo, na Rua Frei Caneca. Insistiu com ele o eminente historiador da Igreja paulista para que perseverasse na defesa da escola pública.
O ataque à escola pública era feito em nome da defesa da liberdade de ensino. Ora, a escola pública em nada afetava a liberdade de ensino nas escolas católicas e nas escolas privadas em geral, como demonstrava o envolvimento protestante na oposição à emenda que alterava o projeto da Lei de Diretrizes e Bases. Outras questões estavam em jogo: o próprio teor do ensino, a laicidade da educação, o favorecimento material da escola privada.
Contradições. A campanha teve seu próprio feixe de contradições, diferentes grupos dela participando a partir de diferentes e até opostas concepções ideológicas. Na redação do jornal, a referência era a ideologia liberal e anticlerical. Nos sindicatos e na própria Universidade, de certo modo havia alguma influência comunista, cujos adeptos eram claramente anticlericais. De certo modo, a Igreja Católica jogava sua última cartada em defesa do seu favorecimento pelo Estado e em defesa de seu controle do elenco de valores de orientação da educação, mesmo na escola pública.