Intelectuais se reuniam à noite no ‘Estado’ para discutir questões culturais e como mudar o País pelo ensino
Já preso, em 1932, logo após vencida a Revolução Constitucionalista pelas tropas federais, Julio de Mesquita Filho escreve a sua esposa, Marina, pedindo que na visita do dia seguinte lhe levasse exemplar do livro de Émile Durkheim Éducation et Sociologie e o de seu discípulo, Célestin Bouglé, Les Idées Égalitaires – Étude sociologique. Na cadeia e no exílio, o jornalista, formado pela Faculdade de Direito e autodidata em Sociologia, estudava e preparava sua maior obra – a universidade. Nas leituras sociológicas procurava compreender o Brasil e a função social que nele teria uma universidade como a que imaginava, projeto intelectual e político que expôs em vários discursos de paraninfo de turmas formadas pela USP.
Julio de Mesquita Filho falava por uma geração cujo inconformismo ganharia sentido nas Revoluções de 1930 e 1932. Na redação de O Estado de S. Paulo reuniam-se à noite intelectuais que eram colaboradores do jornal, entre eles Fernando de Azevedo e Paulo Duarte, dois ativos participantes de um projeto de universidade. Lá se discutiam questões como a carência de civilidade, cujas marcas estavam em todas as nossas insuficiências – do atraso social ao atraso político do voto de cabresto.
Já em 1925 o jornal promovera um inquérito sobre a educação, conduzido por Fernando de Azevedo, que com Mesquita discutia o assunto desde 1923. O inquérito gerou uma análise, publicada em 1926, que mostrava um dos aspectos mais calamitosos do atraso brasileiro, a pobreza da escola secundária. Foi ele a base das conversas cultas na redação, que culminariam na ideia de Julio de Mesquita Filho e de seu grupo de criar a Universidade de São Paulo.
Início. Aula inaugural do curso de Geografia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (ACERVO/ESTADÃO)
Tanto a Revolução de 1930 quanto a de 1932 encerravam contradições. A derrota na Revolução Constitucionalista não foi derrota no pleno sentido da palavra. Mostrou a Getúlio Vargas o caminho da composição com São Paulo e suas forças políticas e sociais emergentes, o que se deu, também, do lado da elite paulista. Já antes, cafeicultores e banqueiros, representados por José Maria Whitaker, ministro da Fazenda do Governo Provisório, executaram a política de queima dos estoques de café, que manteve o fluxo de renda da cafeicultura e impediu sua ruína completa. Os industriais, na figura emblemática de Roberto Simonsen, que havia apoiado a Revolução Constitucionalista, foram beneficiados pela política industrialista de Vargas. Por meio deles, a Revolução de 30 mudava o eixo econômico do País, deslocando-o da agricultura latifundista de exportação para a moderna economia industrial voltada para o mercado interno.
Volta a SP. Antropólogo Claude Lévi-Strauss reencontra a USP em outubro de 1985 (ANDRÉ DOUEK/ESTADÃO)
É significativo que Armando de Salles Oliveira, engenheiro formado pela Escola Politécnica e um dos sócios e diretor de O Estado de S. Paulo, tenha sido nomeado interventor, em outubro de 1933, e em seguida eleito governador. Ao retornar do exílio, sendo cunhado do interventor, Julio de Mesquita Filho reanimou no grupo do Estadão o debate sobre a criação da uma universidade. Que se tratava de projeto amadurecido desde o inquérito sobre a educação, na redação, na prisão e no exílio, mostra-o a rapidez com que a proposta foi implementada: a Universidade de São Paulo foi criada em 25 de janeiro de 1934, aniversário da fundação de São Paulo.
A comissão para isso organizada designou Teodoro Ramos, professor de Matemática da Escola Politécnica e membro da Igreja Positivista do Brasil, para ir à Europa recrutar docentes do que viria a ser a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, o núcleo central da USP e a síntese do seu espírito. Na França, George Dumas, amigo de Mesquita, que estivera no Brasil nos anos 1920 e era protestante, já começara a reunir os professores da nova universidade. Ramos levava instruções para evitar clericais, fascistas e nazistas. Também recrutou docentes na Itália e na Alemanha e alguns na Espanha e em Portugal. A USP deveria ser uma universidade pública, gratuita e laica, pluralista e democrática no ensino e na pesquisa.
Seria uma verdadeira universidade, pautada pela pesquisa desinteressada para diferenciar-se das escolas tradicionais a ela agregadas, dedicadas ao conhecimento aplicado. Seus docentes seriam docentes em tempo integral, com bons salários, agrupados numa Cidade Universitária. Uma de suas metas seria a de formar professores para o ensino secundário, cujas cadeiras eram ocupadas, até então, por advogados, médicos e engenheiros que faziam bico como docentes de disciplinas para as quais não tinham preparo especializado e atualizado. Professores primários da rede pública, se aprovados no vestibular da Faculdade de Filosofia, poderiam solicitar comissionamento, recebendo os vencimentos unicamente para estudar. Formados, iriam para o ensino secundário. Uma antecipação criativa das políticas de bolsas de estudos para formação de pessoal de nível superior.
Ideal. A criação da USP era parte de um projeto revolucionário. O fato de que Julio de Mesquita Filho perfilhasse um ideário liberal e antioligárquico e reunisse a herança de uma história familiar de vinculação aos movimentos insurgentes de republicanização da República, que se iniciam com a Dissidência Republicana de 1901 e culminam na Revolução Constitucionalista de 1932, situa a USP no elenco de acontecimentos de construção de uma sociedade moderna e democrática no Brasil. A USP seria um dos meios decisivos da modernização das mentalidades pela revolução no ensino, a fundamentação erudita e científica dos propósitos de transformação social e de incorporação à condição de cidadãos da massa de desvalidos que fizera da sociedade brasileira uma sociedade retrógrada e sem futuro. A USP era proposta como o episódio conclusivo do nosso republicanismo e o instrumento decisivo da Revolução Brasileira.