No espaço dos textos censurados, versos de Camões

Mordaça na redação do ‘Estado’ começou na noite de anúncio do AI-5, em 1968, e perdurou por sete anos

José Maria Mayrink

A censura no Estado começou na manhã de 13 de dezembro de 1968, 15 horas antes de o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) ser anunciado na televisão. Agentes do regime militar cercaram a sede do jornal, na Rua Major Quedinho, para impedir a divulgação do editorial Instituições em Frangalhos. Escrito por Julio de Mesquita Filho, ele criticava violentamente a atitude do presidente Arthur da Costa e Silva diante da resistência dos parlamentares, que negaram licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, que havia feito discursos contra as Forças Armadas.

Apesar do cerco policial, milhares de cópias do Estado chegaram às ruas. “Improvisamos uma canaleta e escoamos mais de 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto policiais barravam os caminhões-baú”, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, responsável por obras no prédio. Repórteres e editores do Jornal da Tarde, também proibido de circular, recorreram a esquema semelhante.

Revoltado com a apreensão, Julio de Mesquita Filho mandou avisar ao governador Roberto de Abreu Sodré que, em nenhuma hipótese, faria autocensura. Se o governo quisesse, que pusesse censores no jornal.

Na noite de 13 de dezembro, jornalistas atônitos assistiram ao anúncio do AI-5. Nessa hora, os censores se instalaram na redação e nela permaneceram até 6 de janeiro de 1969. Depois, voltaram em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censura prévia era feita por telefonemas, bilhetes e listas de assuntos proibidos. A ordem de Julio de Mesquita Neto no Estado e de Ruy Mesquita no Jornal da Tarde era trabalhar como se não houvesse restrições. “Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem”, era a orientação.

“Acho que o Estado foi o único jornal diário que sofreu censura prévia”, disse o jornalista Fernando Pedreira. “Os outros não, pois concordavam em não publicar o que militares diziam que não se devia publicar.”

Em agosto de 1972, correu boato de que o Estado publicaria manifesto militar lançando a candidatura do general Ernesto Geisel para a sucessão do general Emílio Garrastazu Médici. Era só um boato, mas o governo mandou agentes ao jornal.

O Estado e o Jornal da Tarde enfrentaram dificuldade para cobrir episódios como a morte de Carlos Marighella, a guerrilha e morte de Carlos Lamarca e os sequestros de diplomatas. Com acesso apenas às versões oficiais, repórteres tinham de se arriscar ao recorrer a outras fontes. Apuravam, mas a censura cortava. No sequestro do cônsul japonês Nobuo Okushi, em março de 1970, sequestradores deixavam cartas com exigências e avisavam o Estado sobre onde encontrá-las. O jornal entregava cópias a outros jornais e agências internacionais, mas não podia publicá-las.

Repórteres e editores receberam censores com indisfarçável hostilidade. “Strangers in the night”, cantava Gellulfo Gonçalves, o Gegê, chefe da diagramação, toda vez que eles entravam. Censores só tinham contato direto com o secretário gráfico, que, no fim do expediente, escrevia um pequeno relatório sobre o conteúdo vetado. Julio de Mesquita Neto mandou arquivar todos os relatórios.

Ele e Ruy Mesquita foram intimados várias vezes para depor na polícia ou em quartéis. Foi antológico o diálogo de Julio de Mesquita Neto com um major, em inquérito sobre notícia de tortura sofrida por um médico.

– O senhor ocupa que cargo? – perguntou o oficial.
– Eu sou diretor do jornal.
– Diretor responsável, não é?
– Não, responsável pelo meu jornal é o professor Alfredo Buzaid, ministro da Justiça. Porque responsável pelo jornal decide o que sai e o que não sai. Depois da censura, quem decide o que sai ou deixa de sair no Estado é o professor Alfredo Buzaid. Portanto, ele é o diretor responsável pelo jornal.

A renúncia do ministro da Agricultura, Cirne Lima, em 1973, por discordar da política do ministro da Fazenda, Delfim Netto, marcou o início de uma resistência ousada e criativa. Na edição de 10 de maio, o Estado publicou um anúncio da Rádio Eldorado – Agora é samba – no alto da primeira página, no espaço que seria ocupado pela foto de Cirne Lima. No texto, cartas de leitores falando de rosas e impostos. Nem todos os leitores entenderam. Muitos cumprimentaram o Estado pelo apoio à literatura e ao cultivo de flores. Um grupo de senhoras procurou o prefeito Figueiredo Ferraz para sugerir que apoiasse a suposta campanha do jornal para florir a cidade.

O Estado publicou poemas de Gonçalves Dias, Castro Alves, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e, principalmente, Luís de Camões no lugar de reportagens vetadas. Segundo a professora da USP Maria Aparecida de Aquino, foram cortados 1.136 textos de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975. “Versos de Os Lusíadas foram publicados 655 vezes desde 2 de agosto de 1973”, informa o curador do acervo do Estado, José Alfredo Vidigal Pontes.

No Jornal da Tarde, Ruy Mesquita mandou publicar pedaços de receitas de bolos e doces. Leitores telefonavam para reclamar, pois elas não davam certo.

A repressão atingiu jornalistas. Repórteres e editores do Estado e do Jornal da Tarde foram perseguidos, presos e torturados. Antônio Carlos Fon, mais tarde presidente do Sindicato dos Jornalistas em São Paulo, foi torturado no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) por causa da divulgação de denúncias sobre crimes do Esquadrão da Morte. No Recife, o então chefe da sucursal, Carlos Garcia, foi torturado em um quartel do Exército. Militares achavam que ele coordenava uma célula comunista.

Quando o jornalista Vladimir Herzog, que havia trabalhado no jornal, foi assassinado no DOI-Codi, o correspondente Luiz Paulo Costa, de São José dos Campos, também foi detido e torturado. O editorialista Marco Antônio Rocha se apresentou na Rua Tutoia, onde Herzog foi morto, porque Ruy Mesquita exigiu do ministro da Justiça a garantia de que nada lhe aconteceria.

Testemunhos desses e de outros funcionários ressaltam a conduta digna e corajosa dos Mesquita na defesa de seus colaboradores. Se divergiam de suas posições políticas, não hesitavam em lhes dar proteção. Julio de Mesquita Neto fez ecoar em fóruns do exterior, como as reuniões da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), denúncias e protestos contra a repressão.

A censura terminou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário do Estado. O redator-chefe, Oliveiros Ferreira, recebeu um telefonema da Polícia Federal informando que agentes não iriam mais à redação. Era uma deferência do general Ernesto Geisel, que, ao assumir a Presidência, havia prometido acabar com a censura.

Veja todas as páginas censuradas: https://acervo.estadao.com.br/paginas-censuradas/

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’ E AUTOR DE MORDAÇA NO ESTADÃO