Uma Fender azul-fusquinha na mão, uma barba de três dias, um jeans velho ainda vincado pela corda do varal. Eric Clapton, que festeja seus 70 anos nesta segunda-feira, dia 30 de março, não usa muitas armas. Sua capacidade de fazer a guitarra falar é muito conhecida e o coloca no panteão mais alto do instrumento - ao lado de Jimi Hendrix, Duane Allman, Jimmy Page, Jeff Beck. Clapton parece carregar um desses dicionários Webster's inteiro em seus riffs (ou quem sabe um Houaiss, pela abrangência cultural).
Remanescente de uma época em que a indústria da música ainda não tinha se tornado cínica, as aparições de Clapton parecem atestar que a boa música pode sobreviver à infâmia, ao mercantilismo, ao teatrão, à manipulação. Ele se torna um septuagenário, mas é, como dizem os anglofalantes, "timeless" (não tem época, pertence a todas elas). Não é por acaso que toca canções dos anos 1930, 1940 e 1950 fora de seus compartimentos históricos, como fez na última vez em que esteve no Brasil, em 2011, no Estádio do Morumbi.
Eric Clapton vai comemorar seu aniversário com dois shows no Madison Square Garden de Nova York nos próximos dias 1 e 2 de maio. Ali naquele mesmo palco, ele já fez mais de 40 shows, um deles memorável – com o Cream, em 2 de novembro de 1968, dia em que ele mudou a forma como os guitarristas encaravam o seu instrumento. Entre os dias 14 e 23 do mesmo mês, Clapton volta à sua terra natal, a Inglaterra, para uma temporada no Royal Albert Hall.
Nunca um artista falou tão pouco e disse tanto. Homem de poucas palavras, fez de sua guitarra uma das vozes mais persuasivas da música. Nascido em Ripley, Inglaterra, em 30 de março de 1945, tinha 6 ou 7 anos quando descobriu que as pessoas que pensava serem seu pai e sua mãe eram na verdade sua avó e seu avô de criação. “A verdade desabou sobre mim, e quando meu tio Adrian me chamou brincando de bastardinho, ele estava dizendo a verdade”, conta o músico em suas memórias.
Clapton começou a tocar a guitarra aos 15 anos. Ficou bêbado pela primeira vez aos 16 anos, e esse hábito se tornaria tão freqüente que se tornaria a grande maldição de sua vida. Ele acrescentou depois a essa lista um coquetel infernal, que teve a heroína como combustível principal.
Traiu o amigo George Harrison ficando com sua então mulher, Patty Boyd (musa das suas canções Layla e Wonderful Tonight), enquanto o guitarrista dos Beatles estava num estúdio ao lado, e chegou a pensar em matar Mick Jagger, dos Stones, quando este ficou com sua namorada italiana. “Passei um bom tempo pensando em como destruí-lo.”
Chegou a considerar seriamente o suicídio como uma alternativa ao seu vício alcoólico. “Eu tinha delírios de grandeza. Era disso que a bebida era capaz: ela me dava uma ideia distorcida e iludida de que eu era superimportante.”
Em meados dos anos 1960, os grupos eram os veículos mais populares para a música, eram poucos os indivíduos que sobressaíam - Clapton e Hendrix foram dois dos maiores. Em 1963, ele integrava o grupo The Roosters e também tocou com Casey Jones and the Engineers. Em 1965, já estava nos Yardbirds. Com os Bluesbreakers, foi e voltou e passou por outras “agremiações” também, como Graham Bond Organisation e a banda de Manfred Mann. Em 1966, já era o créme de la crême: integrava o trio celestial Cream.
Teria ainda um período no Blind Faith, antes de juntar-se a outro monstro, Duane Allman, no Derek and the Dominos. Influenciado pelo blues americano de Robert Johnson, Guitar Slim, T-Bone Walker e B.B.King, ele criou sua própria semântica no instrumento e conta que foi a guitarra que salvou sua vida inúmeras vezes. Nos anos 1970, sedimentou um blend, uma mistura de ritmos fincada no gospel, honky tonk e reggae, e que o projetou também como um estilo mais pop, comercial. Foi o primeiro a introduzir o formato Unplugged na MTV.
Mas sua via crúcis continuava. No Natal de 1981, chegou a ser trancado pela mulher no quarto para parar de beber. Houve um período em que comprou uma mansão num paraíso tropical nas antigas terras da Indochina e ficou ali, recluso, dedicando-se quase primordialmente ao ato de encher a cara.
O momento mais trágico de sua vida foi quando teve de reconhecer o corpo do filho Conor, de 4 anos, que despencara de um edifício enquanto brincava com a babá.
Clapton tocou com Bob Dylan, Beatles e Rolling Stones. Parece misantropo, mas é pródigo em parcerias: fez discos memoráveis com J.J. Cale (The Road to Escondido) e B.B. King (Riding with the King). Com Me and Mr. Johnson, gravou 14 canções do seu ídolo máximo, Robert Johnson. Clapton não parecia que chegaria aos 70 anos, mas parece que ele suplantou não só o seu século, mas os que ainda virão.
Em 1976, bêbado e meio xarope, Clapton declarou apoio ao racista Tory Enoch Powell, durante um show em Birmingham, acrescentando que a Grã-Bretanha estaria se tornando “uma colônica negra” e que queria os “estrangeiros fora”. A bebida podia ter sido usada como desculpa para a barbárie, mas, em 2004, ele disse à revista Uncut que Powell foi “audaciosamente bravio” em sua cruzada, sem se desculpar.
Outro grupo que ficou irritado com Clapton foram as feministas. Na letra de Sick and Tired, o verso diz que ele guardará um revólver no quarto para dar um tiro na cabeça da mulher se ela o incomodar. Stacey Kabat, diretora executiva da entidade ativista Peace At Home, exigiu que o britânico suprimisse o verso. Ele se recusou, alegando que era um blues, e que “historicamente o blues sempre teve letras violentas.”
Apesar da tocante canção Wonderful Tonight, que fez para a então mulher, Pattie Boyd, os versos de Clapton parecem não ter feito eco na companheira: Pattie Boyd escreveu uma autobiografia na qual denuncia a tara de Clapton pelo controle absoluto de seus relacionamentos e revela alguns dos seus relacionamentos extra-conjugais. “Por mais que eu achasse que amasse Pattie naquela época, a verdade é que a única coisa sem a qual eu não conseguiria viver era o álcool”.
Tem uma coisa sobre Clapton que deixou muita gente com água na boca, quando ele revelou, em sua autobiografia. Na festa de casamento com Pattie, meio mundo apareceu, mesmo sem ter sido convidado: Jeff Beck, Bill Wyman, Mick Jagger, Jack Bruce. Os músicos presentes organizaram uma jam session, tocando números improvisadamente. George Harrison, Ringo Starr e Paul McCartney tocaram juntos e se divertiram muito, conta Clapton. “John depois telefonou para dizer que também teria ido lá se tivesse sabido. Jamais saberei como isso aconteceu, basta dizer que não tive muito a ver com os convites. Mas perde-se uma ótima oportunidade de reagrupar os Beatles para uma última apresentação”.
Houve uma recepção no Palácio de Buckingham, e a rainha Elizabeth II resolveu puxar papo com o cara ao seu lado. Perguntou Eric Clapton se fazia tempo que ele tocava guitarra. “Faz 45 anos”, informou o guitarrista. E o cerimonial teve de usar maquiagem para a cara de tacho da rainha da Inglaterra.
De passagem pelo Canadá, em 1998, onde divulgava seu álbum Pilgrim, o guitarrista ficou indignado com artigos publicados em revistas e jornais do país que reportavam as origens de sua família. Ele desmentiu que teria duas meias-irmãs, filhas de um canadense, Edward Fyer, que jamais conheceu. O pai de Clapton conheceu sua mãe na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial e a abandonou quando ela ficou grávida. Ele pensava que era um banqueiro conservador. Mais adiante, soube-se que fora um soldado canadense que virou pianista de um hotel inglês durante a Segunda Guerra e morreu de leucemia.
O empresário carioca Luiz Oscar Niemeyer, executivo da Planmusic, é o homem que realiza os maiores sonhos dos amantes do rock no Brasil: foi o responsável pelo primeiro show de Eric Clapton no País, além de todas as turnès de Paul McCartney. Trouxe Rolling Stones, Bob Dylan, Radiohead, Elton John, Paul Simon, Coldplay. Realizou festivais como o Hollywood Rock e foi parceiro na primeira turnê do U2.
Fã de Beatles, o carioca Luiz Oscar Niemeyer ostenta em seu escritório fotos ao lado de Paul McCartney e de Mick Jagger, no Leblon. Em quase 30 anos de show biz, Niemeyer se tornou um dos mais bem-sucedidos e confiáveis empresários do ramo, além de ter angariado amizades importantes, como as do próprio Clapton e McCartney.
Para Clapton, ele não só armou um dos grandes shows da vida do guitarrista, em 1990, mas também providenciou uma mesa de pebolim para o músico relaxar antes de tocar. “Quando a gente fica mais experiente, absorve os problemas com mais equilíbrio", conta. "Mas artista que não dá trabalho é algo que ainda não encontrei”, ele costuma brincar.
Foi Niemeyer o responsável por explicar a Paul McCartney o confisco do Plano Collor e sempre cumpre a ele cuidar para que só haja comida vegetariana no catering. “Em show de Paul, todo mundo que vai trabalhar se torna vegetariano por um tempo”, conta. O empresário toureia tudo que aparece. Ficou em pânico ao ver Kurt Cobain, do Nirvana, dependurar-se numa janela no 20º andar do Hotel Intercontinental, andar pelo parapeito, invadir o apartamento vizinho e, após uma briga, jogar todas as roupas da mulher, Courtney Love, pela janela.
Entrevista Chris Blackwell (Jotabe)
por Steve Van Zandt
(artigo publicado na revista Rolling Stone, edição especial Os 100 Maiores Artistas de Todos os Tempos)