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Comissão da Verdade

O relatório final

AS CONCLUSÕES

AS VÍTIMAS

A GUERRILHA

REPRESSÃO INTERNACIONAL

OS BASTIDORES

Arepressão política da ditadura militar avançou as fronteiras do País. Além da conhecida Operação Condor, colaboração entre regimes autoritários da América do Sul iniciada nos anos 70, o governo brasileiro usou o aparato do Ministério das Relações Exteriores para vigiar e perseguir inimigos políticos. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade detalha a atuação de agentes e diplomatas fora do País, assim como a colaboração estrangeira com o aparelho repressor, como a da diplomacia brasileira.

 

O Itamaraty contava com duas estruturas ligadas à repressão política, uma das quais clandestinas e ainda hoje negada por veteranos da diplomacia brasileira, apesar da documentação e dos depoimentos levantados pela CNV. O Centro de Informações do Exterior (CIEx) participou da vigilância de exilados e até de aliados do regime, como o ex-ministro Delfim Netto, além de ter ajudado no sequestro de opositores fora do Brasil, antes mesmo da articulação da Operação Condor.

 

 

Trechos

 

 

 

WILSON TOSTA / Rio

Os braços repressores do Itamaraty surgiram logo após o golpe de 1964. A Divisão de Segurança e Informações surgiu em 1967, a partir da antiga Seção de Segurança Nacional criada no Ministério de Relações Exteriores nos anos 30. Segundo um diplomata, sua função era a coleta de informações, por meio de fontes e recursos legais e abertos. O “trabalho sujo” cabia ao Centro de Informações Exteriores (CIEx), de 1966, que recorria a meios clandestinos para monitorar “ações subversivas” de brasileiros fora do País.

Essa atuação no “combate à subversão” não era de todo nova no Itamaraty, como destaca o relatório da CNV. Em 1925, o ministro plenipotenciário (chefe de missão diplomática) do Brasil em Berna (Suíça), Raul Paranhos de Rio Branco, iniciou um intercâmbio com a chamada Entente Internationale Anticommuniste (EIA), organização chefiada pelo advogado suíço Théodore Aubert cujo objetivo era combater a Internacional Comunista.

 

Documentos e depoimentos obtidos pela Comissão da Verdade mostram que o CIEx existia secretamente no Itamaraty, protegido por falsos nomes. O órgão tinha uma central que se comunicava com bases no exterior (BEXes) por meio de um canal próprio e exclusivo. O mecanismo não permitia que elas se comunicassem umas com as outras.

 

O relatório indica a existência de BEXes em Assunção, Montevidéu, Santiago, Paris, Lisboa, Genebra, Praga, Moscou, Varsóvia e Berlim Oriental. Também foram encontrados “fortes indícios” de bases em La Paz, Lima, Caracas e Londres. Dissidente da comunidade de informações, o embaixador Jacques Guilbaud, em contatos informais, disse à CNV que uma das funções dos chefes das BEXes era estabelecer contatos com polícias políticas e serviços de informações locais.

 

O embaixador Guy Mendes Pinheiro de Vasconcellos foi designado para chefiar a base de Paris do CIEx pelo despacho-telegráfico secreto-exclusivo 446, de 15 de maio de 1975. Ele negou que o objetivo fosse estabelecer troca de informações entre o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e o francês Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionnage (SDECE) sobre a situação em Portugal pós-Revolução dos Cravos, como dizia a versão oficial. A verdadeira razão era a intenção do ministro Azeredo da Silveira de criar uma estrutura para vigiar o então embaixador Delfim Netto. Havia suspeitas de “negociatas”, afirmou Vasconcellos.

Antônio Delfim Netto, ao lado de militares, na época em que era Ministro da Fazenda
ESTADÃO ACERVO

 

Os órgãos de apoio à repressão dentro do Itamaraty foram precursores de ações que depois seriam coordenadas pela Operação Condor. O relatório descreve a prisão do coronel do Exército Jefferson Cardim de Alencar Osório, que comandara uma tentativa de guerrilha no sul do Brasil. Exilado em Buenos Aires, foi preso e repatriado por meio de contatos entre autoridades policiais brasileiras e argentinas. A negociação teve participação do coronel Nilo Caneppa, adido do Exército junto à embaixada brasileira. Caneppa contou, no Informe 388, de 19 de dezembro de 1970, como usou o sistema de comunicações da embaixada para conseguir que a FAB autorizasse o traslado do exilado para o Rio. O veículo seria um avião do Correio Aéreo Nacional que transportava o secretário que conduzia a mala diplomática. No Rio, Osório foi para o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), onde ficou preso até 1977.

 

Outro exemplo da ação da “diplomacia da repressão” envolveu o banido Edmur Péricles Camargo, do M3G (Marx, Mao, Marighela e Guevara) em junho de 1971. Ele foi sequestrado no voo que o levava do Chile a Montevidéu, após alerta do embaixador Mellilo Moreira de Mello em telegrama secreto-urgentíssimo ao governo brasileiro. Camargo foi capturado em uma escala no Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Relatórios do Exército mencionam a participação na ação “do agente do Itamaraty” na capital uruguaia. A CNV também encontrou indícios de vigilância diplomática contra o almirante cassado Cândido Aragão e o ex-juiz Carlos Sá.

 

Indícios de que o CIEx infiltrou agentes remunerados entre exilados brasileiros também foram encontrados pela Comissão da Verdade. Um deles é Alberto Conrado Avegno, que participou, em 1968, de reuniões na Associação de Exilados Brasileiros no Uruguai (Aebu). Segundo a CNV, o infiltrado integrou operações de informações. Elas levaram à captura do coronel cassado Jefferson Cardim de Alencar Osório e ao desaparecimento forçado do ex-major Joaquim Pires Cerveira em Buenos Aires, sequestrado por agentes brasileiros.

 

A assinatura de Avegno foi localizada pela CNV em carta ao embaixador Antônio Corrêa do Lago em 1º de junho de 1975. No texto, ele afirma: “Nestas especiais circunstâncias, sou obrigado a declinar (...) minha condição de integrar o Serviço de Informações e Segurança do Itamaraty.”. Por pelo menos nove anos, segundo a CNV, o pagamento de informantes e infiltrados pelo Itamaraty foi regra no Uruguai. Muitos eram policiais.

 

Provas dos pagamentos do CIEx foram localizadas pela CNV. São cheques nominais do Citibank, agência Park Avenue, de Nova York, para um certo “Angelo Vicente”. Foram emitidos em julho e agosto de 1979 e traziam o nome de Carlos Bildebrandt, então chefe do CIEx. Foram enviados por mala diplomática à Embaixada do Brasil em Montevidéu. Uma mensagem que os acompanhava indica, por pseudônimo, os destinatários de pagamentos: Silvio, Natércia e Zuleica. Esse último seria um dos codinomes de Avegno, diz a CNV. Outros nomes falsos que o informante usava seriam Altair, Johnson e Carlos Silveira.

Diplomatas do CIEx também tinham nomes postiços. Assim, Carlos Hildebrandt era Gualter. Claúdio Luiz dos Santos Rocha (que negou ser do órgão) era Floriano. Otávio Goulart era José; Sérgio Damasceno Vieira era Fátima; e Paulo Sérgio Nery era Felipe.

 

Delegado do Dops, Sergio Paranhos Fleury (centro)
AMANCIO CHIODI / ESTADÃO ACERVO

 

Um dos principais chefes da repressão na ditadura, o delegado Sérgio Fleury circulou por países vizinhos com conhecimento do Itamaraty. Um documento secreto da DSI de 31 de março de 1970 cita o jornal de esquerda chilena Última Hora, que afirmava que o policial brasileiro estivera em Paris e Montevidéu. No Uruguai, o delegado assessorou a criação da Brigada Repressiva Especial Uruguaia. Teria ido para Argentina e Chile. Um documento secreto do Itamaraty mostra preocupação com a “total falta de segurança dos contatos” do policial. O delegado Claudio Guerra disse à CNV que foi Fleury que sequestrou Cerveira na capital argentina e o levou para o Brasil.

 

O trabalho da CNV também destaca casos de brasileiros que desapareceram no exterior. O militante do Partido Operário Revolucionário Trotsquista (POR-T) Sérgio Fix Marques dos Santos e editor do jornal Frente Operária sumiu em Buenos Aires, em 15 de fevereiro de 1976. Também são citados os casos do músico Francisco Tenório (18 de março) e Maria Regina Marcondes Pinto (10 de abril), no mesmo ano e cidade. A CNV lembra casos de exilados do Cone Sul sequestrados no Brasil em conjunto com repressores dos países vizinhos, como os uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias, capturados com dois filhos pequenos no Rio Grande do Sul.

 

Diplomatas dos EUA, diz o relatório da CNV, frequentavam o Dops de São Paulo, órgão ao qual Fleury era vinculado, durante o período mais duro da ditadura. Livros de portaria da instituição têm registros da entrada de Claris Rowley Halliwell, Frederic Lincoln Chapin e C. Harlow Duffin. Só Haliwell, political officer do consulado americano, fez 47 visitas entre 1971 e 1974. Em1971 foram 31.