João Paulo Carvalho e Renato Vieira

Articuladores e discípulos do movimento pernambucano relembram o cenário desfavorável na sua origem e a repercussão pelo Brasil nos dias de hoje

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nquanto o rock brasileiro feito por brasilienses, cariocas, gaúchos e paulistas vivia sua glória nos anos 1980, Pernambuco tentava fazer algo para recolocar o Estado no mapa da música brasileira. Se na década anterior Alceu Valença, Paulo Diniz e Geraldo Azevedo conquistaram o Sul maravilha com uma obra que transitava entre o regionalismo e a psicodelia, a maré não estava para peixe para quem tentava carreira vindo do Nordeste. Exemplo disso é Baque Solto, disco lançado em 1983 por Lenine e Lula Queiroga. O álbum passou em brancas nuvens e a carreira de ambos só despontou a partir dos anos 1990.

No mesmo período, uma movimentação de jovens pernambucanos deu origem ao manifesto Caranguejos com Cérebro. “Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto”, afirmou o signatário e vocalista do Mundo Livre S/A, Fred Zero Quatro. A partir daí, o movimento manguebeat se estabeleceria como um dos grandes acontecimentos da música brasileira da década.

Os lançamentos de Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi, e Samba Esquema Noise, do Mundo Livre S/A, ocorreram há exatos 20 anos. Simbolizam o início da existência de um trabalho que reavaliava e utilizava o maracatu como base sonora acoplada a batidas eletrônicas e influências internacionais. Em uma era na qual a internet poderia parecer ficção científica, o intercâmbio de ideias e informações era fundamental.

“Uma fita cassete que chegava às nossas mãos por meio de um amigo era algo muito maravilhoso. As pessoas se encontravam na rua, trocavam informações e faziam a coisa acontecer”, lembra Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi que assumiu o posto após a morte de Science, em 1997. Ele afirma que a intenção dos ‘mangueboys’ e ‘manguegirls’ era fazer do manguebeat um polo de captação do que vinha de fora, filtrado pela estética local, e emitindo sua criação para o mundo.

O conceito foi simbolizado pela “imagem-símbolo” da antena parabólica enfiada na lama, à qual Fred se referiu no manifesto. “Não era apenas a música que fazia parte da ideia. Todo mundo gostava de quadrinhos, de cinema e cultura pop em geral”, conta Du Peixe. “E, no caso do Chico, a canção era um norte importante. Ele adorava Lupicinio Rodrigues. Risoflora (faixa de Da Lama Ao Caos) tem um pouco disso. Mas a verdade é que ninguém imaginou chegar tão longe com isso.”

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João Paulo Carvalho e Renato Vieira

 

O cenário era totalmente desfavorável, mas havia um sentimento de mudança dentro daqueles jovens pernambucanos. A proposta: desorganizar a música brasileira, misturar tendências, para só então reorganizá-la, como bem lembra a letra de Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi. Há 20 anos, Science e companhia protagonizaram uma revolução cultural que não se via no País desde os tempos da Tropicália de Gil e Caetano, ainda no final dos anos 1960.

 

“Em 1980, o artista pernambucano que a gente mais tinha notícia era Alceu Valença, mas ele estava muito distante da nossa realidade. Era uma coisa que nossos pais ouviam, não nós. Faltava alguma coisa e o movimento manguebeat chegou para preencher essa lacuna. Nação Zumbi e Mundo Livre S/A promoveram não só uma mudança sonora, mas comportamental”, afirma China, ex-vocalista da extinta Sheik Tosado, banda formada em 1996.

 

Foi nesse contexto que Chico Science & Nação Zumbi lançaram Da Lama ao Caos. Quando o disco chegou às lojas em abril de 1994, o movimento, de fato, entrou em ebulição. “Eu tinha 14 anos e estava só começando. Para mim, foi algo fantástico, pois o manguebeat mudou a forma como ouvíamos música. As letras tinham a nossa língua. A Nação Zumbi e o Mundo Livre eram do mesmo jeito que a gente falava no bairro. Isso nos instigou muito. Além disso, o movimento mangue deixou um legado para a cidade”, relata Chiquinho, tecladista do grupo Mombojó, banda do fim dos anos 2000 que também foi influenciada pelo movimento mangue.

 

Ricardo Alexandre foi um dos jornalistas a cobrir nas páginas do Estado a propulsão do manguebeat. Ele lembra que a geração dos anos 1990, que também abarcava revelações como Raimundos e Skank, representava uma contraposição ao rock brasileiro da década anterior. “Havia o viés da brasilidade e era uma geração que veio mais preparada em termos musicais. Os anos 1980 deixaram uma herança para quem vinha chegando e queria espaço”, analisa Alexandre.

 

Apesar disso, os álbuns de estreia de Nação e Mundo Livre não deixavam evidente o impacto sonoro que as bandas tinham ao vivo. Ele lembra que Da Lama ao Caos, produzido pelo experiente Liminha, deixou de captar a pressão percussiva do grupo, que não usava kit de bateria. “O conceito do manguebeat ficou bem mais claro do que a música. Havia uma falta de referência, não se sabia como gravar. Liminha fez milagres na produção”, afirma o jornalista. Samba Esquema Noise – iniciativa do selo Banguela, comandado pelos Titãs e pelo produtor Carlos Eduardo Miranda – também teve problemas. O álbum de estreia do Mundo Livre demorou quatro meses para ficar pronto e logo foi retirado de catálogo.

 

Comercialmente, o manguebeat não funcionou, ainda que a indústria fonográfica estivesse em um bom momento no meio dos anos 1990, impulsionada pelo Plano Real. “Sempre pensamos bem modestamente, mesmo em relação ao Brasil, então não nos faz muita diferença entrar no mercado world music internacional ou no mainstream brasileiro”, disse Science em matéria assinada por Alexandre em 15 de agosto de 1996, depois de ele e seu grupo retornarem de uma turnê no exterior. O mercado nacional de discos estava mais interessado em ‘Tchans’ do que em música com conceito.

 

“Foi o período em que começou uma ciranda comercial que o manguebeat não queria jogar. Não era mais o cenário do rock alternativo dos anos 1990. Mas, a partir de 1997, as bandas que surgiam não conseguiam aparecer”, salienta o jornalista. Para ele, bandas como Mestre Ambrósio e Paulo Francis Vai Pro Céu não conseguiram se destacar por causa do cenário adverso.

 

Legado e influência. O dia 2 de fevereiro de 1997 ficaria marcado como o mais devastador da história do manguebeat. No final daquela tarde, o carro dirigido por Chico Science chocou-se com um poste na rodovia PE1, no trecho entre Recife e Olinda, tirando a vida do cantor e compositor, às vésperas de completar 31 anos de idade. Apesar de triste, a precoce morte de Chico Science fortaleceu o movimento.

 

Diversas bandas do cenário nacional continuam sendo influenciadas pelo legado do artista. À frente da Nação Zumbi, Chico Science liderou um movimento que permitiu o desenvolvimento de uma nova cena musical no Recife, que tem hoje representantes como Mombojó, Orquestra Contemporânea de Olinda e Siba. “A morte de Chico Science fez com que o Brasil reconhecesse o artista que ele era. Imagina o que ele estaria fazendo hoje em dia? Foi o maior marco do manguebeat. As pessoas passaram a reconhecer e aplaudir Chico”, afirma China.

 

Para Otto, ex-integrante do Mundo Livre S/A, a perda de Chico alavancou um sentimento de orgulho do Estado de Pernambuco. “Chico fez uma revolução. De repente, tínhamos ídolos e bandas que traziam público. A autoestima foi pra potência máxima. Nossas bandeiras folclóricas viraram instrumentos do pop. Arregaçamos com a casca que nos separava do Brasil. Fincamos o pé na MPB, fomos para o mundo”, relata Otto. “Nós do Mombojó continuamos sendo influenciados pelo manguebeat”, reforça Chiquinho, salientando permanecer de “cabeça aberta” para novidades.

 

Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi, não tem dúvidas de que, se Science estivesse vivo, a banda poderia ter seguido caminhos diferentes. “A morte dele quebrou algo, era uma cabeça com muitas ideias. Fizemos uma coisa juntos, durante muito tempo e, de repente, ele não estava mais com a gente”, diz. Ele considera que a essência de sua concepção permanece com a banda, que, neste ano, vê o lançamento de seu álbum mais recente em vinil, Nação Zumbi, assim como a reedição em LP de Da Lama ao Caos pela Polysom. “Ouço o disco hoje e percebo algo bem à frente do tempo. A questão dos samplers, a psicodelia jamaicana e a influência da música negra ainda estão conosco.”

DO MANGUE À GLÓRIA

Nação Zumbi

‘Da Lama ao Caos’

Polysom

(relançamento – 2014)

R$ 79,90