Eram 3h30 de 26 de agosto de 1914, em Rozelieures, na região de Lorena, fronteira com a Alemanha, quando Joseph Caillat, soldado do 54.º batalhão de artilharia do exército da França, escreveu: “Nós marchamos para a frente, os alemães recuaram. Atravessamos o terreno em que combatemos ontem, crivado de obuses, um triste cenário a observar. Há mortos a cada passo e mal podemos passar por eles sem passar sobre eles, alguns deitados, outros de joelhos, outros sentados e outros que estavam comendo. Os feridos são muitos e, quando vemos que estão quase mortos, nós acabamos o sofrimento a tiros de revólveres”.
Quando Caillat escreveu aquela que seria uma de suas primeiras cartas do front a seus familiares, a Europa estava em guerra havia exatos 32 dias – e acreditava-se que não por muito mais tempo. Correspondências como a desse soldado de 2.ª classe que morreria de pneumonia em 1º de julho de 1917 começavam então a trazer à luz para a sociedade a gravidade do conflito, que em seus quatro anos, três meses e 14 dias mobilizaria mais de 60 milhões de combatentes e deixaria quase 9 milhões de civis e militares mortos, além de 20 milhões de feridos, em um dos piores momentos da história da humanidade.
É consenso entre historiadores que a 1.ª Guerra Mundial mudou a geopolítica e as sociedades que dela participaram para sempre, alterando de forma radical o mapa-múndi – uma transformação que ainda reverbera em nossos dias. Os 1.567 dias de carnificina marcaram a queda da era dos grandes impérios – alemão, austro-húngaro, russo, turco –, resultaram em um genocídio – na Armênia – e em uma revolução – na Rússia –, devastaram cidades, regiões e países e abalaram por décadas a Europa, abrindo as portas, após o Tratado de Versalhes, para a emergência de Adolf Hitler e do nazismo, para a 2.ª Guerra Mundial, para o holocausto e para o mundo tal como o conhecemos hoje. "O tratado de paz de fato impôs condições muito duras à Alemanha, que foram vividas de forma realmente humilhante pelos alemães", disse Karine McGrath, diretora dos Arquivos do Palácio de Versalhes.
O Estado esteve em locais emblemáticos do conflito, como a célebre Ponte Latina, em Sarajevo, e os campos de batalha de Ypres, na Bélgica, e Verdun, na França, percorreu centenas de quilômetros em fronts, visitou ruínas e sítios de guerra, mergulhou em arquivos públicos e particulares, pesquisou documentos, fotos e imagens, entrevistou descendentes de soldados e vítimas, ouviu historiadores e militares na França, nos Estados Unidos, no Reino Unido e no Brasil.Foram sete meses de pesquisa, além de consultas a quase duas dezenas de publicações inglesas, francesas, italianas, alemãs, espanholas, americanas e brasileiras mantidas no Acervo Estado. Tudo em um esforço para compreender por que a Grande Guerra é ainda hoje, 100 anos mais tarde, uma ferida em cicatrização.
Não havia representantes do governo da Sérvia nem das mais importantes autoridades da comunidade sérvia da Bósnia-Herzegovina na noite de gala de 28 de junho de 2014 no Vijecnica, a reconstruída biblioteca nacional do país. Naquela noite, um concerto da Orquestra Filarmônica de Viena, da Áustria, realizado no prédio-símbolo de Sarajevo lembrava os 100 anos do atentado que matou o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco Ferdinando.
Do lado de fora, algumas dezenas de militantes carregavam faixas de protesto e cobriam seus rostos com uma máscara: a do jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip.
Para os que estavam no interior do edifício de linhas neo-islâmicas devastado pelo fogo no cerco à cidade, em 1992, e agora reconstruído, Princip foi um assassino. Para aqueles que protestavam no lado externo, ele foi um herói. Em síntese, assim se divide a Bósnia-Herzegovina sobre o evento político usado como pretexto pelo Império Austro-Húngaro, com apoio do Império Alemão, para lançar a 1.ª Guerra Mundial. Um século após o célebre atentado de Sarajevo, a memória do assassinato de Francisco Ferdinando e de sua mulher, Sofia, é alvo de paixões e de discórdia política.
A controvérsia em torno do papel do jovem tuberculoso Gavrilo Princip no ataque faz parte de um pedaço da história mais viva do que o próprio conflito de 1914-1918 no imaginário dos Bálcãs. Recém-saída de mais uma guerra sanguinária, a península ainda sofre as consequências da implosão da Iugoslávia e da 3.ª Guerra dos Bálcãs, entre 1991 e 2001, e com a profunda divisão dos povos da região. O resultado é que sérvios, de um lado, e bósnios e croatas, de outro, têm visões opostas também sobre o ataque cometido por nacionalistas do movimento Mlada Bosna, Jovem Bósnia, em 1914.
A organização defendia a ideia da Grande Sérvia e a criação da Iugoslávia e se opunha à ocupação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria, que invadiu o território em 1878 e o anexou em 1908. A iniciativa de Viena de absorver parte da Península Balcânica contrariava as disposições do Tratado de Berlim, que reconhecia a posse da região pelo Império Otomano, e serviu para acirrar o nacionalismo sérvio dentro e fora das fronteiras da Bósnia, estimulado pelo apoio do Império Russo e de seu czar, Nicolau II.
Casado com uma checa, Sofia, Ferdinando era considerado um sucessor progressista do imperador Francisco-José, então com 84 anos. Nos meios políticos de Viena, imaginava-se que o arquiduque, uma vez no trono, poderia ampliar a autonomia, a liberdade e os direitos dos eslavos do império, mais numerosos do que os austríacos e os húngaros. Esse suposto perfil reformador – que jamais se confirmaria, em função do assassinato – causava desconfiança na corte e na elite do próprio império, ciosas de manter o status, mas sobretudo entre os movimentos nacionalistas da Sérvia, que almejavam comandar a grande unificação dos “eslavos do Sul” em um país unido – a “Eslávia do Sul”, ou Iugoslávia.
Foi nesse contexto que movimentos como Jovem Bósnia e Mão Negra, um grupo secreto suspeito de ter ligações com o exército e o governo da Sérvia, conspiraram para o assassinato do arquiduque a tiros de revólver, pelas mãos de Princip, após um primeiro atentado a bomba fracassado no mesmo dia, ambos nas imediações de Vijecnica, que Ferdinando havia visitado instantes antes.
Cem anos depois, a memória do crime que segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm marcou o início do “breve século 20” ainda paira sobre Sarajevo. “Estamos em uma profunda crise econômica e a maioria da população de Sarajevo não está interessada na 1.ª Guerra Mundial”, explica a historiadora Vera Katz, pesquisadora do Instituto de História da Universidade de Sarajevo. “Mas entre acadêmicos estamos muito divididos. Temos três divisões claras: sérvios, bósnios e croatas. Isso faz com que tenhamos diferentes interpretações sobre o papel de Gavrilo Princip na 1.ª Guerra Mundial. Entre historiadores sérvios, ele continua a ser um herói nacional.”
A controvérsia nos meios acadêmicos é tão forte que pesquisadores sérvios boicotaram uma conferência internacional que reuniu entre 18 e 21 de junho historiadores do mundo todo em torno do tema A Grande Guerra: Abordagens Regionais e Contextos Globais. Uma conferência em separado será realizada em setembro, em Belgrado, na Sérvia. Para intelectuais como Miljan Maksimovic, historiador bósnio de origem sérvia, as elites políticas bósnias e europeias tentam revisar a história, apagando os traços do povo sérvio na cultura local e impondo o fardo da culpa pela Grande Guerra à Sérvia. “O absurdo é que bósnios muçulmanos também impuseram grande resistência às tropas invasoras austro-húngaras em 1878, mas dizem o contrário hoje”, afirmou Maksimovic à agência russa Ria Novosti. “O fato é que essas iniciativas não contribuem à reconciliação global, mas aprofundam a divisão.”
Um dos grandes pontos de insatisfação da população de Sarajevo Leste e da República Srpska (República Sérvia da Bósnia, uma das duas que compõem a Bósnia-Herzegovina), onde se concentra a população sérvia, é que uma versão da história sobre o atentado de Sarajevo e sobre Gavrilo Princip, um “herói nacional”, está preponderando para o mundo. Para eles, austro-húngaros eram os invasores a serem combatidos.
O que se vê hoje na Bósnia-Herzegovina, porém, é uma revisão desse papel e uma tentativa de apagar da memória o culto a Princip. Em Sarajevo, a passagem sobre o Rio Miljacka em frente à qual Francisco Ferdinando foi assassinado, que durante a existência da Iugoslávia de Alexandre I e de Tito se chamou Ponte Gavrilo Princip, voltou a ser denominada Ponte Latina. Uma placa com os dizeres “Que a paz reine sobre a Terra” hoje esconde a anterior, que descrevia o jovem como “um combatente da liberdade” e o atentado como “um protesto popular contra a tirania”. As ruas em homenagem ao herói/terrorista e ao movimento Jovem Bósnia foram rebatizadas.
No centro histórico, onde a maioria é de bósnios e croatas, há um projeto de construção de uma estátua em memória do arquiduque. Na mesma região, existe um albergue chamado Franz Ferdinand. “Os proprietários queriam usar o nome famoso para atrair turistas de outros países”, explica Sedad Cholak, funcionário do hostel. “Eu diria que aqui é 50%-50%. Muitos pensam que ele foi uma boa pessoa e muitos pensam que Gavrilo Princip era uma boa pessoa, porque ele o matou. Eu não sei… Ele era um líder, a Bósnia fazia parte da Áustria-Hungria. Eu creio que ele era um bom homem.”
Em um país no qual cada parede traz as marcas da mais recente guerra fratricida e onde todos os espíritos ainda estão impregnados pelo horror do conflito dos anos 1990, essa “virada da memória” em favor do arquiduque descontenta e indigna a população sérvia da Bósnia, que vê nas iniciativas a glorificação do opressor. Por isso, há reações em curso em Istocno, periferia de Sarajevo Leste, em Visegrad, na fronteira com a Sérvia, e em Belgrado, na Sérvia, onde monumentos à memória de Princip estão em fase de projeto, já em construção ou inaugurados. “O ponto de início foi a retirada do monumento a Gravilo Princip da praça na qual ele estava em Sarajevo, o que quer dizer que não há intenção de se fazer uma boa representação sobre o início da 1.ª Guerra Mundial”, argumenta Ljubisa Cosic, prefeito de Sarajevo Leste.
Quem também não gosta de todas as homenagens a Francisco Ferdinando é Gavrilo Princip. Não se trata, claro, do herói/terrorista, mas de seu sobrinho-neto, que o Estado localizou em Sarajevo Leste. Empresário do ramo hoteleiro e proprietário de um posto de combustíveis, Bato, ou Caçula, como é chamado pelos íntimos, vive com discrição e não gosta de falar com jornalistas. Até pouco tempo atrás, portava com orgulho o nome do tio-avô, fuzilado em 1941 a mando do líder nazi-fascista Ante Pavelic, o “Führer croata”. Também participava com a família, a cada dia 28 de julho, de uma reunião em uma igreja ortodoxa do centro de Sarajevo, de onde partiam para visitar o túmulo de seu antepassado ilustre, que a escola iugoslava lhe ensinou ser um herói.
Hoje, aos 62 anos, entretanto, Bato começa a se esconder, e não apenas de jornalistas – o empresário não quis gravar entrevista para a reportagem. Gavrilo Princip, o sobrinho-neto, lembra que a casa e o vilarejo onde seu antepassado nasceu foram destruídos várias vezes ao longo do século e o risco existe. Mas, sobretudo, foge da dimensão internacional que a polêmica sobre Gavrilo Princip, o herói/terrorista, ganhou nos Bálcãs 100 anos depois do assassinato de Francisco Ferdinando.
Em um extrato de uma mensagem escrita às vésperas da eclosão da 1.ª Guerra Mundial, o imperador da Rússia, Nicolau II, rogou a seu primo e amigo, o imperador da Alemanha, Guilherme II:
À correspondência, o kaiser responderia horas depois: “Não posso considerar a marcha à frente da Áustria-Hungria como uma ‘guerra vergonhosa’. (…) A declaração do gabinete austríaco me fortifica na opinião de que a Áustria-Hungria não visa a nenhuma aquisição territorial em detrimento da Sérvia. Creio logo que é possível à Rússia perseverar, frente à guerra austro-sérvia, em seu papel de espectadora, sem empurrar a Europa à guerra mais horrível que ela jamais viveu”.
Membros da mesma família – ambos eram também primos do monarca britânico George V –, além de velhos companheiros prestes a se tornarem inimigos, Nicolau II e Guilherme II compartilhavam em junho de 1914 erros e acertos quanto à interpretação do conflito iminente. Líderes de potências econômicas e políticas concorrentes, ambos sabiam que na realidade não se trataria só de um desentendimento “austro-sérvio” e o início dos combates entre seus dois impérios também era uma questão de horas. Documentos diplomáticos e de arquivos governamentais mostram que ambos projetavam embates sanguinários, mas não acreditavam que um conflito longo estava por começar nem que os campos de batalha se espalhariam pelo mundo.
Entretanto, em um intervalo de apenas 99 dias a partir de 28 de julho, quando a Áustria-Hungria abriu as hostilidades contra a Sérvia, no marco da 1.ª Guerra Mundial, meio mundo seria tragado por uma sucessão de 19 declarações oficiais de guerra envolvendo dez países. Após a atitude de Viena, o caos político se espalharia: a Alemanha declararia guerra contra a Rússia em 1.º de agosto e à França dois dias depois; o Reino Unido se lançaria contra a Alemanha em 4 de agosto e contra a Áustria-Hungria nove dias mais tarde; entre as duas datas, a Áustria-Hungria declararia a Rússia inimiga em 5 de agosto. Em 23 de agosto, o Japão se uniria à Entente opondo-se à Alemanha, colocando a Ásia no mapa da guerra. Enfim, em 5 de novembro de 1914, França e Reino Unido declarariam guerra aos otomanos, empurrando a fronteira do conflito ao Oriente Médio.
Como a escalada da crise diplomática de 1914, a zona de guerra se alastraria pelo continente como fogo em uma carreira de pólvora até 1917, com a entrada de Estados Unidos e latino-americanos, inclusive o Brasil.
Tratava-se, então, de uma “guerra total”, industrial e globalizada. “É uma guerra que vai perdurar e vai se industrializar, em que todos os progressos técnicos, todos os recursos dos Estados-Nação potentes serão mobilizados”, diz Joseph Zimet, historiador e diretor-geral da Missão do Centenário. “É uma guerra de sociedade, toda mobilizada a seu serviço. As fábricas, as mulheres, toda a economia vai alimentar o conflito. A guerra não se ganha só nas trincheiras, ou por combates de artilharia, mas pela mobilização econômica, social e mental na retaguarda.”
Nesse conflito global, frentes de batalha se espalharam pela Europa, mas também pelos Bálcãs, pela África, por Oriente Médio, Ásia, Oceania e Atlântico Norte. Seriam ao todo 19 grandes fronts e dez batalhas em mares e oceanos até o fim da guerra. No segundo maior foco de tensão, no Leste Europeu, ofensivas como a de Tannenberg, em agosto de 1914, não apenas contêm o ímpeto do Império Russo e desestabilizam ainda mais o czarismo, como dão à Alemanha um símbolo de triunfo, sob o comando dos generais Paul von Hindenburg e Erich Ludenforff. A caminho da derrota e da revolução bolchevique, russos comemoram vitórias como a do cerco de Przemysl, que deixou 115 mil pessoas mortas ou feridas entre 24 de setembro de 1914 e 22 de março de 1915.
Entre tantos embates, porém, nenhum foi mais mortífero do que a frente ocidental, em que soldados de França, Bélgica e Reino Unido, e mais tarde de Estados Unidos, Canadá e Austrália, entre outros, defenderam Paris de uma invasão. A devastação material e humana explica por que as linhas de front se transformaram em museus a céu aberto da guerra 1914-1918. Fortes, bunkers, crateras, campos de batalha, armamentos, cemitérios, ossários, monumentos aos mortos e até florestas são cicatrizes do conflito muito visíveis ainda hoje na França e na Bélgica.
Nesse front, ocorreu a Batalha de Marne, em 1914, decisiva para assegurar o fracasso da estratégia inicial de ataque alemã, o Plano Schlieffen, e a vitória dos aliados no final do conflito. Nela, 2 milhões de homens, entre franceses, britânicos e alemães, estiveram em trincheiras e ofensivas em Ourcq, Deux Morins, Marais de Saint-Gond, Vitry e Revigny, comandados por generais que se tornariam heróis nacionais da França, a exemplo de Joseph Joffre, Joseph Gallieni e Ferdinand Foch. Em sete dias de combates entre 5 e 12 de setembro de 1914, mais de 100 mil franceses, 7 mil britânicos e 80 mil alemães morreram ou desapareceram e 250 mil outros soldados ficaram feridos.
No mesmo front ocidental, sucederam-se as Batalhas de Verdun e Somme, em 1916, que deixaram 306 mil e 442 mil mortos ou desaparecidos, respectivamente, além das de Chemin des Dames, em 1917, com mais 100 mil mortos, e a 2.ª Batalha de Marne, em 1918, que matou 280 mil soldados.
A alta mortalidade se dava por uma conjunção de fatores, entre os quais a chamada “guerra de posições”. Essa estratégia, que duraria os quatro anos no front ocidental, explica Michael Bourlet, doutor em História, escritor e pesquisador das escolas militares de Saint-Cyr Coëtquidan, na França, era a forma encontrada pelos países invadidos de frear o avanço dos inimigos, custasse o que custasse. “Em 1914, os estados-maiores fundamentavam suas estratégias em uma guerra de movimento, rápida, que chegaria ao término de uma grande batalha decisiva”, conta Bourlet. “Ambos os lados se dão conta, ao final da Batalha de Marne, em setembro de 1914, que a guerra será muito mais longa. E então os lados se deparam com uma guerra de posições.”
A estratégia visa levar o inimigo à exaustão e à derrota, mas o resultado é a paralisia do conflito. A alternativa, então, foi intensificar a partir de 1915 o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas para infligir baixas em massa aos inimigos e tentar sair do impasse. Os bombardeios foram intensificados e todos os meios industriais passaram a ser empregados para matar. Assim nasceram a guerra química, o uso de tanques e os bombardeios aéreos.
Essas novas tecnologias obrigaram generais e comandantes a testar métodos em pleno conflito , enviando centenas de soldados para missões impossíveis e letais, como a conquista de trincheiras bem guarnecidas e bem armadas ou de morros e colinas, pontos privilegiados para a visibilidade da artilharia. No exército britânico, um jargão se criou entre as tropas para descrever a situação:“Leões comandados por asnos”.
Essas batalhas, que figuram no rol das mais violentas da história da humanidade, tinham em comum um elemento de base: o sofrimento humano descomunal. Um dos diagnósticos mais frequentes entre soldados era a sensação de perda da condição humana. Em 10 de julho de 1916, um ano e meio antes de sua morte no campo de batalha, o sargento francês Marc Boasson escreveu:
À sua noiva, o soldado Henri Fauconnier diria em carta datada de 17 fevereiro de 1917: “É assustador depender tanto do meio em que estamos. Mady, não é com um ser humano que você se casará”, advertiu.“Às vezes eu sou um monstro, às vezes uma planta, às vezes um mineral. Nunca um ser humano.”
A 2.ª ofensiva de Champagne programada pelo general francês Joseph Joffre para obrigar o exército alemão a recuar na região de Marne estava em seus últimos preparativos quando o subtenente Arthur Charles Leguay, de 37 anos, recrutado em Le Mans e matriculado sob o número 1.657 no 2.º Batalhão de Caçadores a Pé, desembarcou na estação de trem de Vitry-le-François em 15 de setembro de 1915. Onze dias depois, de sua trincheira, sob a luz de velas, ele escreveu à sua mulher, Madeleine: “Parece que seremos encarregados de perseguir o exército alemão e que receberemos ordem de não parar até a margem do Reno. Quer dizer que queremos o sucesso completo”, disse o poilu (membro da infantaria francesa), completando em tom otimista: “No momento em que escrevo, as baterias de artilharia pesada bombardeiam o terreno para deslocar as tropas inimigas. Todos estão sorridentes”.
O ataque ao qual Leguay se referia teve início às 4h45 de 30 de setembro de 1915. Seu objetivo era tomar o vilarejo de Ripont e posições alemãs próximas às colinas de Main de Massiges, em Champagne. Ao seu término, o balanço da operação do lado francês indicava 797 baixas, 159 mortos – incluindo 17 oficiais – e 683 feridos. Além deles, havia 182 desaparecidos, entre os quais o subtenente. A Madeleine, um de seus colegas de tropa escreveu: “Não posso dizer que ele esteja morto, mas o viram cair ferido”. Como cerca de 700 mil combatentes jamais foram encontrados na 1.ª Guerra Mundial, Leguay poderia ter sido condenado a jamais ser localizado. Em meio ao conflito, corpos desapareciam por completo, desintegrados por granadas de obus ou soterrados por explosões nos arredores. Mas sua sina foi diferente. Sua ossada acabaria encontrada por acidente em 16 de maio de 2012, 97 anos mais tarde, junto à sua trincheira, onde também estavam sua placa de identificação, os estilhaços de obuses que o mataram e seu capacete, perfurado.
Seus restos mortais e pertences testemunham o horror da guerra nas trincheiras e nas “no man’s lands” (“terras de ninguém” entre as posições inimigas) da Europa, onde 56% dos soldados acabavam mortos ou feridos, além de tantos outros doentes físicos ou mentais em razão das condições do conflito.
Enterrar os cadáveres na 1.ª Guerra Mundial não raro não era possível em um conflito marcado por trincheiras inimigas separadas em geral por 100 ou 200 metros, mas que poderiam estar frente a frente, distantes 20 metros, como ocorreu em Vimy, na França. “Às vezes, entre uma trincheira alemã e uma francesa, era possível ouvir as vozes, ouvir o ruído dos talheres durante as refeições, ouvir o soldado inimigo limpar sua arma. Havia toda uma vida que acontecia nas trincheiras”, conta Alexis Guilbert, militar de elite francês e estudioso da 1.ª Guerra Mundial. Essa vida, que também podia se passar nos quilômetros de galerias subterrâneas da região de Aisnes utilizadas pelos soldados, resumia-se a esperar o momento fatal do ataque. “Os assaltos eram extremamente letais. Quando uma seção completa saía da trincheira, alemães e franceses alinhavam suas metralhadoras e logo não havia mais nada. Regimentos inteiros desapareciam por nada.”
Dessa forma, um em cada dez combatentes morreu na 1.ª Guerra Mundial, grande parte das vezes abandonado em condições degradantes, sem oferecer às famílias condições para um sepultamento digno. No campo de batalha, não raro a única opção era cavar covas rasas e provisórias ou abandonar os cadáveres à espera de um bombardeio que também desse fim aos agonizantes, com frequência deixados à própria sorte entre as trincheiras inimigas. Não bastasse a expectativa sombria de cada soldado, os excrementos, ratos, infestações de insetos, barro, umidade, chuva e frio glacial se uniam ao pesadelo, provocando epidemias como disenteria, cólera ou tifo, doenças de pele, gangrenas nos pés e infecções das mais variadas, em uma época na qual a medicina ainda não contava com antibióticos. Ao martírio físico, somava-se uma tortura psicológica: o risco que cada militar corria de se tornar um “gueule cassé”, ou “cara quebrada” – o deformado. Para diagnosticar esse terror, os médicos da Grande Guerra chegaram a criar um diagnóstico: a “obusite”, hoje reconhecida como uma manifestação de estresse pós-traumático.
Assim eram a vida e a morte nas trincheiras e em campos de batalha de regiões como a belga Ypres ou as francesas Somme e Verdun, segundo os testemunhos dos próprios soldados, deixados em milhões de cartas trocadas entre os fronts de guerra e as famílias dos envolvidos. “Nem nos surpreendemos mais com as condições de vida artificiais, quase injustificáveis, que não se assemelham a nada de nossa vida e de nossos pensamentos de outrora”, escreveu em 1918 o tenente André Pézard, mais tarde autor de Nous Autres à Vauquois, obra na qual descreve a ofensiva que devastou a cidade de Vauquois, na França. Sob quatro horas de bombardeios, ele anotou: “Em meio a uma desordem incurável, esperamos impotentes, sem imaginar nada, sem esperança de nada, o fim de algo que nos pediram para suportar. Nós existimos, apenas isso. Não somos humanos”.
Além de cartas, imagens e fotografias – os primeiros registros modernos de um conflito armado de grande amplitude – descrevem a inutilidade dos assaltos contra as trincheiras inimigas e o absurdo de bombardeios, que chegavam a matar 90% dos homens.
Durante décadas, em todos os fronts da Europa, esforços materiais foram empreendidos para apagar os vestígios dessas trincheiras, verdadeiras cicatrizes do conflito. Hoje, entretanto, um movimento inverso está em curso. Em diferentes pontos do continente, galerias utilizadas por aliados ou pelos impérios centrais são preservadas ou mesmo reabertas, em uma forma de recriar a memória do conflito. Trincheiras intactas ou reconstituídas podem ser encontradas em antigos campos de batalha emblemáticos, como as trincheiras de Yorkshire, na Bélgica, ou de Chemin des Dames e Verdun, na França. Entre as duas frentes francesas, por exemplo, situa-se Massiges, um grupo de colinas que formava a fortaleza natural no vale do Rio Aisne. Essa região, estratégica para a artilharia de ambos os lados, dava ao exército que a dominasse uma visão panorâmica sobre cerca de 30 quilômetros de campos de batalha em diferentes direções. Perdê-la significaria para os franceses a provável conquista de Paris pelos alemães. Para defendê-la ou conquistá-la, 4 mil homens morreram por dia só entre agosto e setembro de 1914, no início do conflito. Sepultados em fossas coletivas ou em túmulos isolados, grande parte dos soldados, como Leguay, jamais foi identificada. Antes abandonada, a área da colina foi adquirida por cinco moradores do vilarejo de 50 habitantes, que reconstituíram as galerias de Massiges, transformando-as em um dos mais bem conservados sítios da guerra do país.
O resultado do trabalho é que dezenas de soldados desconhecidos, franceses e alemães, vêm sendo encontrados. Entre eles está o poilu Albert Dadure, morto em 7 de fevereiro de 1915, aos 21 anos, e localizado 97 anos depois, graças ao trabalho do arqueólogo Yves Desfossés e do antropólogo Michel Signoli, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França. “Fazer esse trabalho me fez entender que não podemos compreender essa guerra com os nossos conceitos de hoje em dia. Eram sistemas de pensamento diferentes”, entende Pierre Labate, ex-militar do programa de armas nucleares da França e hoje prefeito de Massiges e um dos proprietários da área da colina. “Quando vemos a amplitude do sacrifício… Isso seria inadmissível hoje.”
Para Jean-Pierre Mainsant, outro dos cinco proprietários da área, a reconstituição das trincheiras é uma homenagem às famílias do vilarejo, que ainda hoje vivem “mergulhadas na guerra”, mas também aos parentes de vítimas, identificadas ou não, que caíram nas colinas de Massiges, longe de suas casas. “Nós sempre fomos banhados na guerra de 1914. Nasci aqui, nascemos aqui. Sempre convivemos com famílias que vinham em peregrinação”, recorda-se. Além de um estímulo à memória, diz Mainsant, desenterrar o campo de batalha é uma forma de quebrar o silêncio que perdurou por décadas na vida dos sobreviventes do conflito, a exemplo de seu avô, ao lado de quem trabalhou por 50 anos como agricultor sem jamais ouvir uma palavra sobre as batalhas. “Os que viveram à guerra de 1914”, diz ele, “não falavam do assunto porque tinham vivido coisas tão inacreditáveis que não ousavam contar porque sabiam que não acreditaríamos.”
A carruagem escura que circulava por Londres acompanhada por um pequeno comboio de três ou quatro outras, quase sempre à noite, era um segredo aberto no fim do século 19. A cidade mais importante do mundo sabia: a bordo, viajava a rainha Vitória. Ia quase sempre a igrejas anglicanas, ao teatro ou a hospitais beneficentes. Também saía para cumprir funções de monarca. Vitória adotara uma vida discreta desde a morte do marido, Albert, em 1861, e também depois da perda do filho Alfred, em 1889. Todavia, a rainha era uma guerreira.
Interessada na história militar, acompanhou intensamente o conflito contra Zanzibar e a rebelião dos Bôeres, na África do Sul. Naquele dia do outono de 1900, V itória estava sendo levada para conhecer uma arma secreta.
O estaleiro Vickers, de Barron-in-Furness, no litoral norte do país, havia levado para um dique da marinha real, no Tâmisa, o primeiro protótipo do que, muito tempo depois, viria a ser o Classe B. Segundo o historiador naval irlandês J. H. Ryan, “a nave deveria provocar grande impressão: toda de metal, tinha a proa esguia, uma torre pequena e suportes para um torpedo e uma mina de contato”. Vitória tinha 90 anos. Ouviu a exposição dos engenheiros, andou ao redor do navio e sentenciou: “Que honra pode haver em atacar sem que seu inimigo possa vê-lo e enfrentá-lo?”.
Ryan diz em seu livro, Victoria in War, ainda em elaboração, que os recursos para o projeto foram reduzidos dramaticamente pelo governo. A rainha morreria no ano seguinte. O Classe B só viria a navegar anos mais tarde, pouco antes do começo da Grande Guerra. Os alemães e seus submarinos desenvolvidos ao longo de uma década devastariam os mares com as ações combinadas do pequeno U-3 e do grande U-139.
A visão mesclada das referências morais do romantismo, que terminava, e do início da era da tecnologia como referência de desenvolvimento talvez tenha sido a peculiaridade militar da 1.ª Guerra Mundial. A tropa britânica marchava para o combate vestindo grossas fardas de lã escocesa, camisa de tricoline e usando gravata. Nos pés, as botinas de couro reforçado deixavam vazar para dentro os pregos do solado depois de alguns dias de uso. Nas pernas, polainas de algodão.
O soldado, todavia, poderia estar armado com um fuzil Lewis, de 7.7 mm. Desenhado nos Estados Unidos, o Lewis foi provavelmente a primeira metralhadora leve da história. Atirava em rajadas usando um carregador rotativo. Tinha poder de fogo inédito. Os mais modernos rifles de combate da época eram semiautomáticos, acionados por ferrolho – um pequeno avanço em relação aos modelos de tiro singular.
O conflito de 1914 a 1918 é o primeiro da história no qual a engenharia de armamentos e a tecnologia militar tiveram emprego intensivo e extensivo. Se o advento do avião como vetor de ataque era previsível desde os experimentos bem-sucedidos do brasileiro Santos Dumont – por meio da agilidade de seu melhor projeto, o Demoiselle, de 1907, e dos dirigíveis usados como estação de observação –, o advento do supercanhão francês Creusot, de 134 toneladas, deslocado sobre trilhos, surpreendeu: as granadas de até 700 quilos que disparava atingiam os alvos a distâncias de 16 quilômetros com erro estimado em apenas poucos metros.
A chegada do tanque mudou o campo de batalha. A proposta de um foco móvel de fogo pesado, blindado, dotado de metralhadoras mais um ou dois canhões e capaz de avançar em terreno irregular alterava doutrinas, consolidava a tese da guerra de movimento e, mais adiante, tornaria obsoleto o conceito da cavalaria. O nome –tank, em inglês – aparecia pintado nas grandes caixas de madeira nos quais eram embalados antes de serem transportados por trem, como se fossem grandes tanques de armazenamento de líquidos.
O inventário da inovação técnica nos arsenais da Grande Guerra é imenso, diversificado, bem-sucedido e supera os limites dos tópicos populares. O sincronizador entre a hélice dos primeiros aviões de combate e as metralhadoras de bordo, cujos tiros deveriam passar entre as pás, fez do inventor, o holandês Antony Fokker, um homem rico. Os pilotos dos aviões só se comunicavam com o pessoal de terra por meio de bandeiras e luzes coloridas a curta distância. Especialistas americanos desenvolveram um sistema de radiotelégrafos capaz de orientar todo o tráfego aéreo em um raio de 200 quilômetros – as primeiras torres de controle. Em 1913, pesquisadores das marinhas americana e inglesa apresentaram um Vant – veículo aéreo não tripulado. Espécie tosca de drone, era lançado a partir de uma rampa metálica e podia percorrer 90 km em uma só direção levemente ajustada por uma bússola elétrica.
Na frente de batalha, a engenharia militar dedicou-se à construção de trincheiras que, além de algum tipo de saneamento, servissem também à instalação de cabos para comunicações e redes de energia. O benefício reduziu o índice de mortes por doenças decorrentes do ambiente insalubre das primeiras valas e inaugurou a integração de serviços de campanha. A eficiência da luta noturna cresceu com a munição traçadora que emite um pulso luminoso, indicando sua trajetória.
No oceano, imponência. O primeiro porta-aviões construído para servir de vetor de aeronaves embarcadas, o britânico HMS Furious, entrou em ação em agosto de 1917. Num longo convés de voo de respeitáveis 200 metros, abrigava 50 biplanos, armados com bombas de 50 quilos e um torpedo. As frotas navais passaram a operar em novembro de 1916 dois sistemas decisivos: o hidrofone, que aumentaria enormemente a capacidade da luta antissubmarina e, na mesma linha, as cargas de profundidade – bombas subaquáticas detonadas por sensores que mediam uma combinação de distância vertical e pressão da água.
O front das tropas francesas da 45.ª e da 87.ª divisões em Langemark-Poelkapelle, na Bélgica, vivia um intervalo sem combates por volta das 17 horas de 22 de abril de 1915. A tarde de sol primaveril e temperaturas acima do normal da véspera havia dado lugar à de um céu cinzento, cortado por um avião da força aérea francesa que fazia o trabalho mais importante: castigar com bombardeios as posições da Alemanha na região. A grande questão do dia não era sobreviver, mas reorganizar as trincheiras, caóticas, e prepará-las para a continuidade dos combates na “saliência de Ypres” – o ponto mais feroz da ofensiva alemã em território belga.
A calma só foi quebrada por uma brisa que soprava de leste e por uma fumaça estranha, esverdeada, opaca e espessa proveniente das trincheiras alemãs, que ia do solo a 10 metros de altura e se dirigia às posições francesas. “A nuvem avançava em nossa direção, empurrada pelo vento. Começamos a nos retirar, perseguidos pela fumaça”, relatou em seus registros militares o tenente Jules-Henri Guntzberger. Nesse momento de pânico crescente, Guntzberger viu seus homens caírem um a um. Alguns se levantavam, retomavam a marcha de recuo e caíam de novo, cada vez mais desesperados para chegar à segunda linha de trincheiras.“Uma vez lá, os soldados desabavam e não paravam de tossir e vomitar.”
O desespero e a incompreensão tomaram conta das hostes francesas. Às 17h20, na sede de comando de Elverdinghe, o coronel Henri Mordacq recebeu um telefonema do front. O relato era assustador: uma nuvem tóxica estava sufocando soldados e oficiais, que partiam em retirada, abandonando o front. Correndo em direção à posição atingida, Mordacq cruzou com combatentes que se diziam envenenados. “Por todo lado, havia pessoas fugindo, correndo como loucas, sem direção, gritando por água, cuspindo sangue, alguns atirando-se ao chão e fazendo esforços desesperados para respirar”, descreveu o coronel, em seus registros. Estima-se que 5 mil soldados franceses morreram sem que nenhum disparo de arma de fogo tivesse sido feito, a maior parte asfixiados e afogados nas secreções dos próprios brônquios. Outros 15 mil foram intoxicados, com diferentes graus de sequelas, envenenados e sofrendo hemorragias internas e externas e destruição dos tecidos pulmonares. Eles haviam sido as vítimas do primeiro ataque de grande amplitude de uma nova tecnologia criada para a 1.ª Guerra Mundial: as armas químicas.
Indignados com o ataque, França e Grã-Bretanha denunciaram a covardia da guerra empreendida pelas forças armadas da Alemanha, que violava as convenções de Haia de 1899 e 1907 proibindo o uso de gases asfixiantes ou tóxicos em artefatos bélicos. Berlim argumentou que a França fora o primeiro país a usar armas químicas – granadas de lacrimogêneo, empregadas desde agosto de 1914 – e justificou a decisão de continuar a utilizá-las alegando que os textos da convenção se referiam a armas e explosivos, mas não a contêineres com gases, como os usados em Ypres. O resultado foi o pior possível: os diferentes lados em conflito imaginaram poder derrotar assim o inimigo entrincheirado, tirando a guerra que já se estendia por nove meses do impasse.
A partir de então, os exércitos em luta se lançaram a uma corrida às armas de destruição em massa, com o objetivo de aumentar o poder devastador dos gases – o que o químico francês Victor Grignard, prêmio Nobel de Química de 1912, conseguiu ainda em 1915, com a introdução do fosgênio, mais letal, incolor e mais difícil de detectar. Um total de 36,6 mil toneladas do produto foi empregado na guerra, a metade por alemães.
Aos poucos, o arsenal químico se banalizou. Desprotegidos contra os gases, 56 mil russos morreram em ataques alemães no front leste do conflito. Mas as tropas da Entente (aliança militar entre França, Rússia e Inglaterra) também não se furtaram a usá-las, em especial as francesas, mas também americanos e britânicos, que em setembro do mesmo ano foram vítimas de seu próprio estoque de cloro na batalha de Loos.
Com a consciência do risco, tentou-se proteger os soldados. Uma das estratégias iniciais era urinar sobre lenços, usados sobre as vias respiratórias, enquanto na retaguarda iniciava-se a confecção das primeiras máscaras antigás, rudimentares. O resultado está registrado em algumas das mais assustadoras imagens da Grande Guerra: a de combatentes cobertos com máscaras de pano, cujas formas terrificantes se tornaram um dos símbolos da loucura destrutiva na Europa no início do século 20.
Meses depois do ataque de Ypres, no final de 1915, os exércitos de Alemanha, França e Reino Unido distribuíram máscaras mais eficazes a seus combatentes: a Gummimaske, a M2 e a Large box respirator representaram um avanço importante na proteção dos soldados. Graças a elas, o impacto das mortes causadas pelas armas químicas foi marginal em meio ao cataclismo da 1.ª Guerra Mundial. Dados do estado-maior do Reino Unido indicam que, após a tomada de medidas de redução do impacto do gás, apenas 3% dos soldados atingidos morriam, outros 2% se tornavam inválidos e a maioria, em torno de 70%, tinha condições de retornar aos combates em até seis semanas.
Mas o impacto psicológico das armas de destruição em massa foi destruidor entre militares e também entre civis. Anos depois do fim da guerra, pais de família que haviam sobrevivido aos conflitos padeciam de sequelas, que encurtavam suas vidas, às vezes por casos severos de asma, em outros por incidência de câncer de esôfago.
Ainda hoje a lembrança desses soldados mortos, imortalizados no quadro Gassed, do pintor americano John Singer Sargent, em 1918, é reverenciada por seus familiares, como uma forma de tributo por seu sacrifício. “Meu bisavô morreu quatro anos depois de ter sido intoxicado pelo gás”, conta Charles Saint Vanne, prefeito de Ornes, uma das cidades que desapareceram após o conflito, mas que seguem existindo em termos legais. “Os alemães haviam utilizado gás em um dos combates e ele foi uma vítima tardia, sofrendo de sequelas anos após a guerra. Zelar pela memória do conflito e de pessoas como ele é um dever de memória que tenho em relação aos meus ancestrais.”
Terras agrícolas também foram inutilizadas por substâncias usadas na guerra química. Em Verdun, na França, em meio à floresta plantada sobre os campos de batalha, há zonas de acesso proibido em que a vegetação não cresce, porque o solo ainda está contaminado. O local foi apelidado pela guarda florestal de “Praça do Gás”. Ali, após o armistício, 200 mil granadas de obus não detonadas no conflito foram inutilizadas. Em 2004, um estudo da Universidade Johannes-Gutenberg, de Mainz, da Alemanha, e do Escritório Nacional de Florestas, da França, indicou a presença intensiva de metais pesados como cobre, chumbo e zinco, que se somam a arsênico e perclorato de amônia, dois componentes dos sistemas de detonação das granadas. A concentração varia de mil a 10 mil vezes a do meio ambiente e só três vegetais resistentes conseguem sobreviver – o que explica a ausência de árvores no entorno, fechado ao público desde 2012.
Segundo organizações ambientalistas europeias, a Praça do Gás da França é apenas um dos múltiplos sítios de terras e lençóis freáticos contaminados por armas químicas na Europa. Há dois anos, populações de 500 cidades e vilarejos do norte da França foram advertidas a não consumir água em razão da elevada presença de perclorato de amônia. Os locais correspondiam a fronts da 1.ª Guerra Mundial.
Consciente do problema, desde o final da guerra, em 1918, o governo francês proibiu o cultivo em regiões que foram contaminadas, criando as “zonas vermelhas”. Nelas, estão os trechos com maior probabilidade de presença de granadas que jamais explodiram na guerra – cerca de 15% do total – e ainda não foram encontradas. Desse universo, 2% correspondem a armas químicas que continuam expostas à natureza, em especial gás mostarda, fosgênio e difosgênio. Um campo militar na cidade de Suippes, em Marne, na França, serve de depósito para 200 toneladas de granadas que ainda precisam ser destruídas, em uma usina que entrará em operação em 2016.
Graças à mobilização internacional, em 1925 foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo a utilização de gás em artefatos bélicos, assim como a produção e a estocagem de armas químicas – ameaça que no entanto ainda não acabou.
Ypres, cidade devastada pelos combates, tornou-se um dos pontos de memória mais importantes sobre o horror da destruição em massa. Prova disso foram as cerimônias realizadas na cidade em 26 de junho pelos 28 chefes de Estado e de governo da União Europeia, reunidos em cúpula na cidade. “A principal mensagem que fica dessa guerra”, diz o historiador Dominiek Dendooven, pesquisador do Flanders Fields Museum, o maior da cidade,“é a importância das decisões tomadas pelos dirigentes europeus em 1914, o sentido de responsabilidade política que deveria ter prevalecido e teria permitido evitar essa guerra”.
Todos os dias, às 20h, não importa o que aconteça, soldados do corpo de bombeiros de Ypres, na Bélgica, fecham a Avenida Frenchlann no trecho sob o Memorial de Mennenpoort, a Porte de Menin. Então os sinos soam: trata-se do “Last Post”, momento no qual os 35 mil habitantes da cidade, queiram ou não, recordam-se dos 54.896 soldados da Grã-Bretanha e de outros países da comunidade de nações britânicas mortos em batalha. Seus nomes estão gravados ali, assim como uma homenagem aos 34.984 outros cujas identidades jamais foram conhecidas.
Eles representam as centenas de milhares de combatentes que tombaram nos campos da região de Flandres na tentativa de conter o avanço das tropas da Alemanha no front oeste e a ameaça de ocupação da França na 1.ª Guerra Mundial. A cerimônia é repetida desde 2 de julho de 1928 e só foi interrompida pelo domínio da Alemanha nazista durante a 2.ª Guerra Mundial, voltando a ser realizada na noite da liberação da cidade por tropas da Polônia.
A atmosfera à noite pode ser pesada na cidade, mas essa foi a homenagem decidida por seus moradores no momento em que seus sobreviventes optaram por reconstruí-la das cinzas. Como Reims e Verdun, na França, e Przemysl, na Polônia, Ypres é uma das centenas de cidades-mártires da 1.ª Guerra Mundial na Europa. Ao longo do conflito, pequenos e grandes centros urbanos europeus foram riscados do mapa, mas não da memória. Alguns foram reconstruídos e hoje são prova da tenacidade de seus povos em apagar os traços da guerra.
Esse é o caso de Ypres. Quando projetou o monumento, o arquiteto britânico Reginald Blomfield escolheu uma das portas pelas quais os soldados que defendiam a cidade partiam para o front de Menin, onde enfrentavam as tropas alemãs. Como as demais portas, o local foi muito castigado pelos bombardeios inimigos. Mas toda a cidade sofreu: em apenas três semanas na 2.ª Batalha de Ypres, em 1917, mais de 4 milhões de obuses foram lançados na região – o suficiente para arrasar as paisagens urbana e rural de Flandres.
“Britânicos como Winston Churchill, por exemplo, queriam que as ruínas fossem mantidas como estavam, como um memorial para a história da 1.ª Guerra Mundial. Mas as pessoas que viviam aqui queriam retomar suas vidas. Então houve uma grande decisão a ser tomada”, explica o historiador Pieter Trogh, pesquisador do Museu de Flanders Fields, de Ypres. “Decidiram reconstruir da mesma exata forma que a cidade tinha antes da guerra. O que você vê hoje é de alguma forma um símbolo maior de ressurreição. Duas guerras mundiais afetaram a região, mas eles quiseram dizer: você pode destruir nossa cidade, ou você quis destruí-la, mas isso não será o fim. Nós vamos retomar nossas vidas e transformá-las em um símbolo contra a guerra.”
Em Ypres, a decisão da primeira geração de habitantes pós-conflito foi de esquecê-lo, ou ao menos superá-lo, como em Reims, na França. Hoje, a capital da região da Champagne tem 180 mil habitantes e uma vida acadêmica, cultural e econômica pujante. Mas não foi sempre assim no século 20. Dominar a cidade fora um dos objetivos do exército alemão na busca da conquista de Paris. Foram 1.051 dias de bombardeios sem que as tropas inimigas tenham colocado os pés no perímetro urbano, como acontecera em Lille. O custo patrimonial da defesa de Reims, entretanto, foi colossal. O símbolo da destruição, na memória dos habitantes, é a catedral da cidade, onde antigamente eram coroados os reis da França. Hoje, a própria igreja é símbolo da reconstrução de uma cidade pulsante.
“Quando a Grande Guerra acabou, em novembro de 1918, das 14 mil casas da Reims pré-guerra, não havia mais de 60 habitáveis. A catedral estava gravemente deteriorada”, lembrou em conferência o historiador Jean-Jacques Becker, presidente e decano do Centro de Pesquisa Histórica da Grande Guerra, de Perrone, na França. “Reims foi um caso singular. Foi a única cidade da França com mais de 100 mil habitantes – 113 mil no último censo antes da guerra – destruída dessa forma pela guerra.”
Já em Verdun, outra das cidades-mártires da Europa, epicentro da guerra entre 21 de fevereiro e 9 de dezembro de 1916, a reconstrução não foi a prioridade, mas sim a memória. Nos campos de batalha da região, nada menos do que 714.231 pessoas morreram – dos quais 362 mil franceses e 337 mil alemães –, em um saldo trágico de 70 mil mortos por mês de combate. Pela região, passaram nada menos do que 70% dos poilus, os soldados da França, o que tornou a batalha um verdadeiro emblema da resistência ao inimigo. Além disso, fez com que todo o país tivesse a noção precisa da tragédia em curso nos vilarejos da região, varridos do mapa pela força destruidora da artilharia.
Foram os casos de Douaumont e Louvement, vilarejos rurais situados no que ficou conhecido como os campos de batalha de Verdun. Para lembrar suas vítimas, o governo da França considera-os desde outubro de 1919 como existentes, mas com zero habitante. São os vilarejos-fantasmas da guerra, ou as “cidades mortas pela França”.
Situado nas imediações do Forte de Douaumont, ponto estratégico pelo qual dezenas de milhares de soldados perderam a vida, Douaumont, próximo da fronteira com a Alemanha, hoje é um campo verde com uma sucessão infinita de crateras abertas pela chuva de obuses. Sobre a vegetação, restam ruínas de construções e pequenos marcos que indicam onde existiam casas e viviam seus moradores, pessoas simples como Jean-Baptiste Dupuis, Onésime Paquin ou Jules Hildebrand, pedreiros, ou Jean-Nicolas Dabit, fabricante de sabão.
A poucos quilômetros de distância, Louvement tem ainda mais restos de sua vida de 100 anos atrás. Entre o mar de crateras, há trechos de paredes inteiras desabadas durante as explosões, cacos de telhas, resquícios de fundações e encanamentos abertos. Sobre os entulhos, a natureza se reconstitui, cobrindo o cimento e a pedra com limo. No lugar de todos esses vilarejos-fantasmas, balançam hoje árvores de 20, 25 metros de altura. Elas foram plantadas pelo Escritório Nacional de Florestas (ONF) em 13,4 mil hectares de terras onde um dia viveram 6.953 proprietários e suas famílias, evacuadas durante a passagem do furacão de chumbo da Grande Guerra.
Embora sejam mais frequentes nos campos de Verdun, vilarejos-fantasmas se espalham por grande parte do Norte e Nordeste da França. Suas existências estão indicadas por placas ou pequenos monumentos, como o obelisco que indica “Aqui existiu Ailles”, única reminiscência do vilarejo desaparecido entre 1914 e 1918. Charles Saint Vanne é prefeito de uma dessas vilas extintas, a de Ornes. “Nosso vilarejo foi inteiramente destruído durante a guerra, em 1916, no mês de fevereiro”, conta. “Os habitantes foram evacuados, obedecendo à ordem de abandonar o local. Quatro casas foram reconstruídas após a guerra, mas o que resta em geral são as ruínas.”
Outros poucos vilarejos tiveram a chance de reviver. É o caso de Vauquois, em Verdun, destruído por se localizar em um morro, excelente ponto de observação militar na época, ou ainda de Craonne, no Chemin des Dames (Ouça a Chanson de Craonne), dizimada por ter tido o azar de existir em frente ao Planalto de Califórnia, justo entre as trincheiras alemãs e francesas. Ambas voltaram à vida, reconstruídas a algumas dezenas de metros das vilas originais, mas vivem sob a perpétua memória da devastação provocada pela guerra. “Nos espíritos das pessoas daqui”, explica Virginie Keiser, diretora da Citadela de Verdun, “de alguma forma a guerra ainda está acontecendo”.
Às 10h43 de 31 de julho de 1914, o embaixador da França em São Petersburgo, Maurice Paléologue, enviou um telegrama ao Conselho de Ministros da França. Em um texto seco e sucinto, o diplomata informou que o imperador da Rússia, Nicolau II, havia ordenado a mobilização das tropas de seu país, em resposta à declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, sua aliada, três dias antes. “A Rússia mobilizou suas tropas”, escreveu.
Por razões desconhecidas, a correspondência só chegaria ao Conselho de Ministros em Paris quase dez horas mais tarde, após outro despacho, dessa vez vindo de Viena, que informava sobre a mobilização das tropas da Áustria-Hungria contra a Rússia – uma reação ao primeiro ato hostil de São Petersburgo. Ao tomar conhecimento da iniciativa bélica dos austríacos, o governo francês não hesitou em afirmar em sua propaganda: a mobilização do exército da Áustria-Hungria comprovava a responsabilidade do país pelo início da guerra contra a Rússia e, por extensão, contra seus aliados do Ocidente.
A verdade, no entanto, era a inversa. A troca de telegramas, a ordem em que foram divulgados em Paris e o fato de que o texto foi falsificado a seguir – com o acréscimo da frase “A Rússia mobilizou suas tropas em decorrência de informações sobre as mobilizações austríaca e alemã” – são um dos tantos vestígios documentais do esforço de cada um dos países envolvidos em manipular a verdade e culpar o outro pelo início da 1.ª Guerra Mundial, mesmo antes de os combates eclodirem. Essa obsessão pela responsabilidade da guerra, decisiva nas negociações de paz e na redação do Tratado de Versalhes, em 1919, é ainda hoje uma veia aberta na Europa. Cem anos mais tarde, historiadores continuam a debater: afinal, de quem é a culpa pela tragédia?
A controvérsia no mundo acadêmico em torno do artigo 231 do Tratado de Versalhes, que responsabilizava a Alemanha, já alimentou mais de 25 mil livros e artigos, mas jamais foi de fato encerrada nesses 100 anos. Mais grave: por muito tempo, ela envenenou as relações internacionais, em especial na Europa. Em 2013, essa ferida aberta ganhou uma nova interpretação pela publicação do livro Os Sonâmbulos – Verão 1914: Como a Europa marchou para a guerra (The Sleepwalkers), de autoria do historiador australiano radicado na Grã-Bretanha Christopher Clark, professor da Universidade de Cambridge. Para o especialista em Prússia e Alemanha, a culpa do conflito foi, antes de mais nada, de “sonâmbulos” – uma metáfora para os líderes políticos e diplomatas incapazes de parar as engrenagens de uma guerra que se anunciava sanguinária desde o início do século.
A polêmica reaberta por Christopher Clark, entretanto, não está na responsabilização do mundo político, quase um consenso entre historiadores, mas no fato de que sua obra recoloca a Sérvia, a instabilidade dos Bálcãs e o atentado de Sarajevo de 28 de junho de 1914 no epicentro dos acontecimentos. Ao longo do século que passou, acadêmicos que se debruçaram sobre a questão viram no atentado em si, cometido pelo jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip contra o arquiduque Francisco Ferdinando, apenas um fraco pretexto na decisão da Áustria-Hungria de declarar a guerra e esmagar as ambições regionais da Sérvia.
Baseado em um trabalho de pesquisa em fontes primárias em arquivos de Paris, Londres, Viena, Berlim, Moscou, Belgrado e Haia, Clark chega à conclusão de que o fanatismo nacionalista sérvio, somado à ofensiva de potências europeias, como a Itália, contra territórios sob domínio do Império Otomano, tiveram papel crucial na eclosão do conflito. Por extensão, ao apontar o dedo sobre a Sérvia, o historiador lança luzes sobre o papel dos aliados desse país, Rússia e França à frente, minimizando a importância das ambições imperialistas da Áustria-Hungria e da Alemanha.“Clark reverte essa perspectiva e diz: 'A Sérvia organiza uma política de potência, sai vitoriosa das guerras balcânicas de 1912 e 1913 e tem um projeto político de reunificar todos os eslavos do sul, que existem entre os austro-húngaros'", explica o historiador francês Joseph Zimet, diretor da Missão do Centenário da 1.ª Guerra Mundial. “O grande problema é que a Bósnia-Herzegovina, povoada de 55% de sérvios, é anexada pela Áustria-Hungria. Christopher Clark afirma que foi a Sérvia queprovocou a 1.ª Guerra Mundial. (Para uma visão diferente sobre as causas da guerra, leia e ouça ao lado a entrevista para o 'Estado' do historiador inglês Max Hastings, autor de Catástrofe: 1914 - A Europa vai à guerra).
No passado, em especial na Europa e nos Estados Unidos, vimos muito mais interesse na 2.ª Guerra do que na 1.ª. O povo britânico sempre teve uma ideia de que essas duas guerras pertenciam a duas diferentes ordens de moral. A 2.ª tinha sido uma guerra “boa”, porque combatemos Hitler. A 1.ª tinha sido “má”, primeiro porque morreram muito mais ingleses do que na seguinte. E também porque as pessoas achavam muito mais difícil de entender por que motivo, afinal, estávamos lutando. Isso é meio enganador, pois, afinal, (na 1.ª) ninguém viu do lado alemão nenhum demônio comparável ao holocausto – e consideremos que as pessoas só chegaram a entender o holocausto depois de 1945. E desde 1945 foi por causa do holocausto que ninguém no mundo se atrevia a sugerir que fosse errado combater Hitler – ele era percebido como o demônio.
Acredito, como expliquei no meu livro sobre a 1.ª Guerra, Catástrofe: 1914 - A Europa vai à guerra, que a nossa visão é por demais simplista. Deveríamos reconhecer que foi tão necessário lutar contra a Alemanha em 1914 como foi necessário em 1939. Não estou, com isso, sugerindo que o kaiser Guilherme II e a Alemanha fossem demoníacos, comparados aos nazistas, mas porque a Alemanha estava a caminho de dominar a Europa. A Grã-Bretanha e a França defendiam a liberdade e a democracia e, portanto, era necessário enfrentá-la. E a maioria dos historiadores que eu respeito acredita que, se a Alemanha tivesse vencido a 1.ª Guerra, e se, portanto, coubesse ao kaiser Guilherme ditar a paz em Versalhes, então quaisquer que tenham sido os erros daquele tratado em 1919, os alemães teriam imposto um tratado muito pior, bem mais brutal. E que traria terríveis consequências à Europa. Há outra coisa a destacar: não discordo de ninguém quanto ao meu enorme respeito pela Alemanha de hoje. Essa Alemanha moderna é uma grande democracia, sem inclinações militaristas. Mas acho que precisamos reconhecer que ainda temos o mesmo problema – da Europa, em relação à Alemanha – que tínhamos em 1871 (quando da Guerra Franco-Prussiana).
É descobrir como o resto da Europa poderá conviver com um Estado que é incomparavelmente mais forte e eficaz que todos os demais, sem que o resto do continente se torne parte de um império germânico. Embora o problema seja, em nossos dias, expresso de uma forma diferente, é ainda um gigantesco desafio para a Europa moderna. Não estou acusando os alemães de nada nem sugerindo que eles estejam se comportando de maneira errada – não estão. Mas é um grave problema que a Alemanha seja mais forte que todo mundo no continente. É difícil para todo mundo conviver com essa realidade.
É que a maior parte da guerra, do Natal de 1914 em diante, afundou no impasse. Os exércitos, no front ocidental, praticamente não se moviam, um lado olhava o outro na trincheira logo ali adiante, ambos separados por um mar de lama. Mas antes disso, ainda em 1914, tinha sido completamente diferente, com vastos movimentos de campanha, grandes companhias avançando centenas de quilômetros. O exército francês, em especial, mergulhou nos combates parecendo as tropas de Napoleão, travando batalhas ainda napoleônicas... Não eram batalhas do século 20. E a possibilidade de a guerra de 1914 ser ganha rapidamente... logicamente, isso só poderia ocorrer se um dos lados entrasse em colapso. A França entrou em colapso em 1945, mas não em 1914. Enfim, havia essa crença de que um lado ou outro poderia chegar à vitória rapidamente. Quem sabe isso poderia ter ocorrido, refiro-me a um possível colapso francês, se a Grã-Bretanha não tivesse entrado na guerra.
Essa é outra lição, que me parece uma incrível ironia de 1914: é que eles (alemães) não entenderam, na época, que os fatores econômicos são uma força mais poderosa em assuntos mundiais do que soldados – digo em termos gerais. Essa é a maior das ironias, a meu ver: se a Alemanha não tivesse ido à guerra, nada poderia impedi-la de dominar inteiramente a Europa em questão de mais 20 anos, por meios inteiramente pacíficos, econômicos e industriais. Tudo porque a Alemanha daquele período e os generais do kaiser só contavam a força em número de soldados. Não foram capazes de entender o triunfo que a Alemanha estava conquistando por métodos absolutamente pacíficos.
A contribuição americana não foi tão importante militarmente, mas econômica e moralmente. Poderiam ter tido importância militar, e muita, se a guerra se prolongasse. O que pesou de fato foi o dinheiro americano. De 1915 em diante, os aliados foram financiados em larga escala. Sem os créditos de Washington, é difícil imaginar como França e Inglaterra levariam as coisas adiante em 1915.
(...) Os americanos cometeram um enorme erro em 1918. Foi insistir, como defendeu (o presidente) Woodrow Wilson, que a Alemanha deveria assinar um armistício, em vez de uma rendição incondicional. Com isso, deram o pretexto para que, mais tarde, os alemães dissessem que nunca foram derrotados, que não tinham perdido a guerra, que o que houve foi uma traição dos políticos em Berlim, que enfim eles traíram a Alemanha ao parar de lutar. É um argumento que me parece procedente, o de que foi um equívoco permitir aos alemães a ilusão de que não tinham sido derrotados.
Sim, e é interessante observar esse contraste. Lembro aqui um ótimo jornalista australiano, Alan Moorehead, que escreveu em 1945: “Não encontrei na Alemanha de 1945 nenhum sentimento de culpa, mas uma tremenda consciência da derrota”. Foi muito diferente de 1918. Nesse ano, a Alemanha não chegou a ser ocupada pelos aliados. E não havia nenhum grande senso de derrota, mas sim de traição. E você só vai adiante, com os alemães, se eles tivessem entendido que foram batidos. Era (em 1918) uma Alemanha praticamente intocada e, do outro lado, uma França devastada. Daí muitos alemães, naquele momento, não entenderem que tinham perdido.
Há duas grandes polêmicas sobre 1914. A primeira é sobre quem recai a responsabilidade pela guerra no continente europeu, tema a respeito do qual os historiadores discutem intensamente, ainda hoje. Eu acredito, pessoalmente, que a responsabilidade maior é dos alemães, por motivos que já expliquei no meu livro Catástrofe – 1914: A Europa vai à guerra. A Alemanha, a meu ver, era a única força que poderia parar as coisas, simplesmente dizendo à Áustria, em julho de 1914, que suspendesse a invasão da Sérvia. Se Berlim tivesse mandado um telegrama a Viena dizendo “Pare”, não teria havido guerra. Não quero dizer que não houvesse um conflito continental, mas não seria aquele iniciado em julho de 1914.
Sim. Mas muitos historiadores destacam um segundo debate, sobre se os britânicos deveriam ou não entrar no conflito. Bem, há um ou dois historiadores na Grã-Bretanha, Niall Ferguson e John Charmley, praticamente esses dois, que entendem que os britânicos deveriam manter-se neutros. Todos os historiadores que eu respeito – Michael Howard, Margaret MacMillan, Hew Strachan – argumentam que, numa guerra continental sem a Grã-Bretanha, a Alemanha venceria. E, em seguida, seria loucura imaginar que os alemães ficariam quietinhos em seu mundinho europeu, vendo a Grã-Bretanha controlando o mundo financeiro, as rotas marítimas mundiais, o seu imenso império em outros continentes. Seria preciso ter uma visão notavelmente generosa das intenções dos alemães para sustentar que deveríamos ter permanecido neutros.
Explicar a 1.ª Guerra Mundial vem sendo uma tarefa hercúlea de historiadores ao longo de décadas. Mas esse esforço resultou em alguns consensos: o início do século 20 era um tempo de corrida armamentista e militarismo exacerbado, de nacionalismos, imperialismos, disputas territoriais e jogos perigosos de alianças e inimizades internacionais entre novas e velhas potências econômicas e industriais. Guerras eram vistas não como tragédias a serem evitadas a todo custo, mas como um instrumento político legítimo de coerção a ser empregado sempre que necessário para reordenar o equilíbrio de poder no continente. Esse cenário geopolítico tenso aproximava algumas e opunha outras superpotências da época – França, Alemanha, Áustria-Hungria, Itália, Grã-Bretanha e Rússia. Em uma era marcada pelo colonialismo, o jogo de forças não se limitava à Europa, mas se estendia às colônias e aos protetorados espalhados pela África, pelo Oriente Médio e pela Ásia. Daí à guerra mundial bastou uma fagulha.
Nesse cenário, os movimentos nacionalistas da Sérvia exerceram de fato um papel desestabilizador, como admitiram as obras do jornalista Luige Albertini e de historiadores como Pierre Renouvin, Fritz Fischer, Annika Monbauer, John Röhl, Stefan Schimidt, Jean-Jacques Becker, Gerd Krumeich ou Jay Winter, especialistas em 1.ª Guerra Mundial. Desse movimento extremista, participavam grupos como Mão Negra – apoiador do Jovem Bósnia, ao qual Princip pertencia –, alguns dos quais com forte presença no interior do Estado sérvio. Para a historiadora bósnia Vera Katz, pesquisadora do Instituto de História da Universidade de Sarajevo, o atentado não passou de uma gota d’água.“As grandes potências, como Grã-Bretanha, Alemanha, Rússia, França, estavam preparadas para a guerra. Havia tantas crises no mundo, como no Marrocos, no Japão e na Rússia, questões sobre o Império Otomano, conflitos entre Rússia e otomanos… Creio que foi apenas uma faísca para o começo.”
Prova de que a região dos Bálcãs – um cruzamento entre ortodoxos, católicos e muçulmanos e entre o Ocidente e o Oriente em plena Europa – era um barril de pólvora haviam sido a crise na Bósnia de 1908 e as guerras balcânicas entre Sérvia, Grécia, Montenegro e Bulgária contra o Império Otomano, em 1912, e entre a Bulgária e seus ex-aliados, em 1913. Ao final desses conflitos, escreve Clark, o equilíbrio geopolítico da região estava alterado, mas a Rússia desprezou as preocupações da Áustria-Hungria com a situação na península. “Para a Áustria-Hungria, as guerras dos Bálcãs modificam radicalmente a situação. Sobretudo revelam que Viena está isolada e as chancelarias estrangeiras não compreendem nada da interpretação que os austríacos fazem dos eventos.”
Segundo Clark, a aliança entre Rússia e França se aprofundou também em torno dos Bálcãs em 1912, pelas mãos do então chefe de governo francês Raymond Poincaré, que se solidarizou com o imperador russo Nicolau II ao afirmar que “toda conquista territorial efetuada pela Áustria-Hungria romperia o equilíbrio europeu e afetaria interesses vitais da França”. O aumento da sinergia militar entre russos e franceses ajuda a explicar por que em 37 dias a Europa partiu de um assassinato político de importância limitada – o de Francisco Ferdinando – a uma guerra generalizada que tomaria conta do continente.
O problema da obra de Clark, segundo seus críticos, é sobrevalorizar a importância da Sérvia e do atentado e minimizar a determinação da Alemanha para que a guerra acontecesse. Essa “determinação” se tornou uma convicção da maior parte dos especialistas no assunto em 1961, quando o historiador alemão Fritz Fischer lançou Os Objetivos de Guerra da Alemanha Imperial 1914-1918, livro em que diz haver uma filiação direta entre a guerra franco-prussiana em 1870, a 1.ª Guerra Mundial e a 2.ª Guerra Mundial, causada por uma elite industrial conservadora da Prússia com militares e meios políticos, todos com o intuito de afirmar a superpotência alemã contra seus adversários na Europa e empreender uma política imperialista agressiva na Europa do Leste, na África e no Oriente Médio.
O argumento das Teses de Fischer se baseou em documentos de Defesa e diplomacia da Alemanha que mostram a existência de planos de guerra, como o Plano Schlieffen, existente desde 1905, o Conselho de Guerra de 1912, quando se cogitou o início das hostilidades por medo do rearmamento da Rússia, ou ainda o Programa de Setembro, de 1914, no qual o governo do chanceler Theobald von Bethemann Hollweg fez projetos de anexação e de domínio de territórios da Europa e da África – a Mitteleuropa e a Mittelafrika –, atendendo às reivindicações dos diferentes grupos de interesse da sociedade alemã.“Fischer comete a meu ver um grave erro: ele estabelece essa espécie de fio que iria de Bismarck a Hitler, com Guilherme II no meio. Seria um fio lógico que levaria a Hitler. Ao afirmar isso, Fischer diz algo que eu considero completamente falso” diz o historiador Frédéric Manfrin, diretor de História da Biblioteca Nacional da França (BnF) e comissário da exposição Été 1914, em cartaz em Paris.“Já Clark tem um gosto claro pela Prússia, sobre a qual ele fez seus estudos. Ele vai longe demais na tese da inocência alemã e o papel que dá à Sérvia é bem discutível.”
A opinião de Manfrin reverbera a de outro historiador, o alemão Gerd Krumeich, professor emérito da Universidade Henrich-Heine, de Düsseldorf, autor de um livro em que reflete sobre as responsabilidades da guerra, Fogo na pólvora – Quem detonou a guerra de 1914?. Krumeich relembra uma das teses do historiador francês Pierre Renouvin, de 1932, segundo o qual não há “responsabilidade unilateral” pela guerra, mas reafirmou, em recente entrevista ao jornal Le Monde:
Em meio à polêmica centenária, uma constatação de Clark parece bem aceita por todos: “Não há arma do crime nessa história, ou na verdade há uma para cada personagem principal”, escreve ele. “Visto por esse ângulo, a detonação da guerra não foi um crime, mas uma tragédia.”
"Em 20 de agosto de 1917, combateu com coragem admirável e tomou sozinho uma trincheira, obrigando dez inimigos a entregar as armas. Ferido por três estilhaços de obus, recusou-se formalmente a ser evacuado", registram documentos da Legião Estrangeira da França a respeito do tenente Gustave Gelas. Os relatórios continuam: "Suboficial de elite, voluntário alistado para a Grande Guerra. De uma bravura à beira da temeridade, distinguiu-se em cada caso no qual participou por sua coragem e suas realizações." Gelas seria um entre milhões de bravos soldados da 1.ª Guerra Mundial se não tivesse recebido a medalha da Legião de Honra, que distingue os méritos civis e militares eminentes na França. Ele também seria só mais um entre os agraciados pela distinção não fosse uma particularidade: o bravo soldado Gelas era brasileiro.
Em 26 de outubro de 1917, o então presidente do Brasil, Venceslau Brás, assinou o decreto de declaração de guerra à Tríplice Aliança, em uma cerimônia ao lado do ex-presidente Nilo Peçanha e de Delfim Moreira, que também viria a assumir a chefia de Estado. Mas, muito antes da formalidade histórica, esse outro Brasil já estava mergulhado na 1.ª Guerra Mundial. Desde o início do conflito, brasileiros de diferentes origens se engajaram e partiram para os fronts da Europa. Eles são parte de uma narrativa quase esquecida: a de soldados brasileiros que doaram suas vidas por pátrias estrangeiras entre 1914 e 1918.
Seus traços deixados em solo europeu mostram que a 1.ª Guerra Mundial foi para os brasileiros muito mais do que a participação restrita do Exército e da Marinha nos combates.
É provável que soldados brasileiros tenham vestido uniformes da Alemanha, da Áustria-Hungria e até do Império Otomano, já que há registros da passagem de sul-americanos pelos três exércitos e colônias de imigrantes dos três países no Brasil, uma fonte de alistamentos. Mas em nenhum dos casos eles teriam sido tão numerosos quanto os que lutaram – e morreram – pela França e pela Tríplice Entente.
Por meio do trabalho de especialistas, documentos de museus e arquivos públicos e papéis militares guardados no Castelo de Vincennes, na periferia de Paris, é possível resgatar informações surpreendentes sobre parte dos 81 brasileiros engajados para lutar ao lado da Legião Estrangeira em solo francês.
O Estado teve acesso a documentos de combatentes como os oficiais Gustavo Gelas e Luciano Antonio Vital de Mello Vieira. Também encontrou dados dos aviadores Lauro de Araújo, Hector Varady, Eugenio da Silva, Virginius Lamare Brito, Olavo de Araújo, Manuel Augusto Pereira de Vasconcelos e Fábio Sá Earp, treinados pela RAF, a força aérea real britânica, e alistados em combate pela França. Eles representam um universo ínfimo entre os homens de todas as nacionalidades que estiveram na guerra, mas ilustram a participação do Brasil que vai além da missão preparatória do Exército enviada à França e comandada pelo general Napoleão Felipe Aché.
Do total de brasileiros em hostes da Legião Estrangeira, 15 morreram em operações nas mais ferozes frentes de batalha da Grande Guerra. Outros sobreviveram e fizeram carreira na Europa. É o caso do tenente Gelas, nome mencionado em algumas listas de grandes heróis da legião, merecedor de três pastas repletas de documentos no dossiê 5ye.142.647 dos arquivos militares de Vincennes. Nascido em 1890 em São Paulo, Gustavo era dentista e se alistou de forma voluntária como simples legionário, a patente mais baixa da corporação, até ser promovido a tenente do 1.º Batalhão do 3.º Regimento Estrangeiro em 23 de julho de 1922, um mês e oito dias após ser morto em combate em Meknès, no Marrocos. Em 18 de setembro de 1918, sua participação na 1.ª Guerra Mundial lhe valeu a Legião de Honra da França, um mérito raro entre brasileiros.
"Oficial de uma bravura excepcional. Conduziu brilhantemente seu pelotão ao ataque em 2 de setembro de 1918, destruindo muitas metralhadoras, explodindo um importante depósito de munições e contribuindo para repelir vários contra-ataques", diz a nota oficial do exército francês que justifica a medalha. E completa: "Tomou em pleno combate o comando de ondas de assalto de um batalhão privado de chefe, o reorganizou sob fogo violento e o manteve na posição conquistada. Infligiu ao inimigo perdas muito elevadas e ajudou a progressão de unidades avançadas".
Além dele, outro brasileiro chegou ao posto de oficial na 1.ª Guerra Mundial: o piloto Luciano Antonio Pital de Mello Vieira, tenente da divisão Salmson da Legião Estrangeira. Voluntário registrado em 30 de maio de 1917, ele teve vida breve no conflito. Faleceu em 31 de janeiro de 1918, na queda de seu avião, aos 21 anos de idade. Em seu dossiê, 5ye162.330, estão suas notas de serviço, também elogiosas, além de registros de saúde e do atestado de óbito.
A Primeira Guerra Mundial mudou o mundo e o Brasil, diz o historiador norte-americano Frank McCann, autor de “Soldados da Pátria - História do Exército brasileiro 1889-1937" (Companhia das Letras, 2007). Ele conta que, quando o confronto começou, o Exército Brasileiro tentava se reformar. O País ainda estava sob o impacto da Guerra do Contestado, que mostrara a necessidade das instituições militares por reorganização, rearmamento e treinamento e a impossibilidade do País de enfrentar uma guerra moderna. Encerrado o conflito, o País e suas Forças Armadas sofreram influências do confronto nas décadas seguintes, com o tenentismo e a Revolução de 1930. “(Com a guerra) Os pontos fracos do modelo brasileiro se tornaram flagrantemente aparentes. E o nível de impaciência com os velhos métodos e respostas borbulhava em todo o ano de 1920 e explodiu em 1930”, explica.
R: O Brasil manteve-se neutro até 1917, pela mesma razão dos Estados Unidos: não tinha nenhuma razão para entrar na guerra até que os submarinos alemães atacaram navios brasileiros ao largo da costa da França. A 1 de Fevereiro, depois de um debate interno na Alemanha e do fracasso de movimentos da Alemanha pela paz, os líderes militares alemães decidiram retomar a guerra submarina irrestrita. Eles acreditavam que os ataques de submarinos a todo o transporte, neutro e beligerante, prejudicaria a vontade britânica de continuar a guerra. Eles estabeleceram que os EUA seriam autorizados a enviar um navio por semana para a Grã-Bretanha. No entanto, em 03 de fevereiro de 1917, (um submarino alemão) afundou (depois de dar aviso) o navio da Marinha dos EUA “Housatonic”. No mesmo dia os EUA romperam relações com a Alemanha e armaram seus navios mercantes. Em 6 de abril o Congresso dos EUA aprovou a resolução para a guerra. No dia anterior em 5 de abril um navio alemão atacou o navio mercante brasileiro, o “Paraná “,na costa da França, causando três mortes. E em 20 de maio um submarino alemão torpedeou o “Tijuca”, também ao largo da França. O Brasil reconheceu que um estado de guerra existia com a Alemanha e o Império Austro-Húngaro em 1 de Junho de 1917. Assim, ficou fora da guerra, até que foi provocado por ataques de submarinos.
R: Foi muito pequena. O Exército enviou um hospital militar completo com os médicos para a França, para cuidar dos feridos. A Marinha do Brasil envolveu-se em patrulhamento em conjunto com a Marinha americana, e oficiais brasileiros serviram a bordo navios de guerra norte-americanos. Lembre-se que naquela época o exército brasileiro tinha acabado de terminar um conflito longo e difícil no Contestado, e não estava em condições de enviar tropas para a Europa. Quando a guerra estourou, o Exército tentava reformar-se. Entre 1906 e 1912, três contingentes, totalizando trinta e dois oficiais, passou dois anos treinando em regimentos alemães. Sua tarefa ao voltar foi atuar como instrutores nas escolas do Exército para criar o moderno Exército Brasileiro. Eram os chamados Jovens Turcos. Em 1916 Serviço Militar Obrigatório entrou em vigor. O Exército estava sendo reformado e, na verdade, estava sendo construído. Alberto Torres e Olavo Bilac estavam debatendo o papel do exército na sociedade. A elite brasileira não estava muito interessada em aumentar a força do governo nacional. A experiência no Contestado tinha mostrado ao Exército a necessidade de reorganização, rearmamento e treinamento. Precisava de soldados que a lei 1916 foi muito lenta para fornecer. Na verdade, centenas e centenas simplesmente se esconderam e não se apresentaram para o treinamento. E para piorar a situação, em 1915 uma rebelião envolvendo sargentos do Exército, a Brigada da Polícia do Rio e do Corpo de Bombeiros resultou em 256 sargentos presos, expulsos do serviço e removidos para o exílio interno. Como resultado, o Exército estava seriamente limitado e sofria de tensão interna e suspeitas.
R: A resposta anterior dá uma ideia dos impactos. Alguns oficiais que haviam treinado na Alemanha queriam entrar na guerra, mas o Ministro da Guerra, General José Caetano de Farias, não quis ouvi-los. Ele sabia que o Exército não estava em condições de ir à guerra. Assim, os Jovens Turcos foram frustrados e tiveram de dedicar suas energias e entusiasmo na organização do Exército e treinando oficiais subalternos e os recrutas previstos na legislação do Serviço Militar Obrigatório. Algumas de suas frustrações fariam a bolha (que estourou) no movimento tenentista nos anos 1920.
R: Certamente sim. Primeiro, houve a frustração de perder a grande guerra de sua geração. Então, no fim da guerra, muito do que tinham aprendido na Alemanha foi desacreditado, ou, pelo menos, desafiado, pela ideia de que o francês tinha sido vitorioso e assim suas ideias deveriam ser melhores. Claro, isso ignorou as ideias americanas, britânicas, russas e seus papéis na guerra. O governo decidiu empregar uma Missão Militar Francesa, que esteve no Brasil 1920-1939, que causou o aumento da frustração no Exército. Os Jovens Turcos pensavam que sabiam o suficiente como organizar o Exército a partir de uma mistura de ideias brasileiras e europeias. Assim, ao longo dos anos 1920, houve um debate interno no Exército que parecia colocar as ideias francesas contra as alemãs. Na realidade, os Jovens Turcos estavam se movendo em direção a um modelo brasileiro, mas não foram capazes de implementá-lo totalmente. É significativo que o oficial de fundação da Academia Militar das Agulhas Negras, José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, tivesse sido autorizado a servir como um oficial no exército francês. Ele foi ferido em combate e, sem dúvida, suas experiências na linha de frente deram-lhe muitas ideias sobre como preparar os oficiais subalternos para uma carreira militar. Ele fez da AMAN uma escola militar verdadeiramente profissional.
R: A guerra mostrou o quão terrivelmente atrasado o Brasil estava. Líderes militares brasileiros ficaram espantados com a rápida mobilização dos Estados Unidos e a formação de tantos milhões de soldados e sua entrada decisiva na guerra na França. Eles podiam ver que o Brasil tinha de se industrializar para se tornar uma sociedade moderna.
R: O mundo inteiro foi mudado pela guerra. A Revolução Russa não teria acontecido quando aconteceu sem a grande mobilização que houve lá. As monarquias da Europa quase todos entraram em colapso, à exceção de algumas. Provavelmente (sem a guerra) não teria havido a pandemia mundial da gripe que matou milhões de pessoas, incluindo milhares no Brasil. Os pontos fracos do modelo brasileiro se tornaram flagrantemente aparentes. E o nível de impaciência com os velhos métodos e respostas borbulhava em todo o ano de 1920 e explodiu em 1930. O terrível derramamento de sangue era um importante ponto de viragem na história do mundo. Tudo mudou. E, claro, a paz falha deu origem à pior guerra de 1939-1945.
Wilson Tosta/RIOSegundo dados do exército francês, a maior parte do elenco "franco-brasileiro" retornou ao país de seus antepassados para lutar pela nação e por seus valores. São nomes como o do cabo Georges Maximilien Carpentier, nascido no Rio de Janeiro e morto em Marne em outubro de 1915, ou o do sargento Joseph Gérard Crouzet, carioca morto em Verdun em julho de 1916. "Eles não tinham obrigação de se alistar, mas alguns fizeram a escolha", explica o comandante Michel Bourlet, doutor em História, pesquisador das escolas militares de Saint-Cyr Coëtquidan, especialista na participação latino-americana no conflito.
De acordo com Bourlet, há ainda dois outros perfis: "Um primeiro dos brasileiros que viajaram do Brasil para se alistar e outro de brasileiros que viviam na França, trabalhavam, estudavam e decidiram se engajar para combater na Grande Guerra". É provável que nessa última categoria estivesse o carioca Luiz França Oliveira, soldado de 2.ª classe recrutado em Nice em 1915 e desaparecido na Batalha de Somme, em 4 de julho de 1916. Ou ainda Candido Ferreira Bastos, também soldado de 2.ª classe, alistado em Bayonne e desaparecido em Neuville-Saint-Vaast, no extremo norte do país.
O que as bases de dados da França não parecem revelar com fartura são os indícios da passagem da missão preparatória brasileira, que teve as participações do tenente José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque e do major Tertuliano Potyguara, este último ferido na batalha do Canal Saint-Quentin, próximo ao Chemin des Dames. Potyguara foi membro do estado-maior vinculado ao 6.º Grupo do Batalhão de Caçadores Alpinos antes de passar ao grupo de oficiais do Brasil enviado para o front em Saint-Quentin, em 2 de outubro de 1918, onde acabou ferido e atendido no Hospital Franco-Brasileiro.
Sobre o tema, o Estado localizou no Estabelecimento de Comunicação e de Produção Audiovisual da Defesa (Ecpad), da França,fotografias que mostram os militares da missão em vilarejos e cidades destruídas, em postos de observação e em rotas logísticas em Douchy, Fluquières e Etreillers, na região de Aisne, muito atingida pelo front.
A mesma instituição guarda ainda fotografias e filmes históricos do Hospital Franco-Brasileiro em Paris, registradas em julho de 1918 – cinco meses antes do fim do conflito. A instituição se situava na Rue de la Pompe, na capital francesa. As imagens mostram a equipe médica, liderada por um certo "doutor Rio Branco", ao lado de assistentes e pacientes feridos. Há ainda fotos de salas de operações, enfermarias, radiografias e quartos especiais reservados aos oficiais. Além de auxiliar no atendimento aos feridos em combates, a equipe brasileira socorreu vítimas da epidemia de gripe espanhola que também dizimava a Europa, em paralelo à guerra.
Pelo menos outras duas missões médicas brasileiras sob o comando de Nabuco Gouveia, mas subordinadas ao general Aché, estiveram no país, em agosto e setembro de 1918. Além de médicos, enfermeiros e farmacêuticos, administradores e soldados participaram da expedição, que teria fim em fevereiro de 1919, quatro meses antes da assinatura do Tratado de Versalhes.
Para o historiador Olivier Compagnon, pesquisador do Instituto de Altos Estudos da América Latina da Universidade Sorbonne Nouvelle, de Paris, a passagem de latino-americanos pelo conflito na Europa vai muito além dos atos de heroísmo de seus soldados ou das missões oficiais. Ela também teria sido determinante para o rompimento de parte dos laços de admiração e exemplaridade que a Europa exercia sobre o Brasil e outros países da região.
Em seu livro Adieu à l'Europe (Adeus à Europa, na tradução literal), recém-lançado na França, Compagnon afirma que o desastre humano e humanitário representado pela 1.ª Guerra Mundial levou a América Latina a uma "nova emancipação". O novo mundo viu a Europa, até então um farol de cultura e modernidade, afundar na barbárie" , disse o historiador em entrevista ao jornal Libération, delimitando o período como o início da ascensão cultural dos Estados Unidos sobre os países latinos. "As narrativas e as imagens de trincheiras mostraram uma Europa mergulhada na guerra total. Ela não poderia mais ser considerada o coração do mundo civilizado."
Dois dias após a invasão da Bélgica pelo exército da Alemanha, o jornalista Julio Mesquita publicou, em 6 de agosto de 1914, o primeiro da série de artigos que escreveria nos quatro anos seguintes sobre a 1.ª Guerra Mundial. Com base nos telegramas sucintos e contraditórios recebidos na semana anterior, o jornalista analisava, sempre às segundas-feiras, o desdobramento do conflito em seu jornal, O Estado de S. Paulo, dando aos leitores uma visão global, clara e personificada da até então maior catástrofe da humanidade.
A primeira impressão de Julio Mesquita foi de que a luta seria breve. Tanto assim que, três meses depois, ele já se assustava com sua prolongada duração. Iniciado pelo Império Austro-Húngaro, que declarou guerra à Sérvia em 28 de julho, um mês após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher, a duquesa de Hohenberg, por um estudante bósnio em Sarajevo, o conflito só terminaria em novembro de 1918. Mobilizou 65 milhões de homens, dos quais 9 milhões foram mortos e 21 milhões ficaram mutilados.
Julio Mesquita sabia das limitações da informação. Para suprir a deficiência dos despachos do telégrafo, de conteúdo parcial e censurado, recorreu a outras fontes, como relatos de jornais europeus, correspondências de amigos e, mais adiante, testemunhos de combatentes, muitos deles filhos de imigrantes que se alistaram para lutar nas trincheiras. O Estado manifestava simpatia pelos aliados – franceses, ingleses e italianos –, mas isso não significava antipatia pelas potências da Europa central lideradas por Alemanha e Áustria. Como o jornal foi acusado de ser partidário, Julio Mesquita deixou clara sua posição:
As batalhas ainda estavam começando quando Julio Mesquita previu, em 21 de setembro de 1914, a dimensão da catástrofe que evoluía para a Guerra Mundial. Escreveu:
Resposta imprevisível, admitia o jornalista, embora ele apostasse na derrota da Alemanha e seus aliados. Sua maior preocupação, desde aqueles primeiros meses, era a extensão da tragédia. Comparou com as guerras do passado o quadro do conflito no século 20. Com novas tecnologias, à luta nas trincheiras se somavam as recentes invenções, como submarinos, aviões e zepelins. Julio Mesquita citou um trecho do Padre Antônio Vieira, atual depois de três séculos, para descrever o horror da guerra:
Os boletins semanais de Julio Mesquita foram publicados em 2002 pelo seu bisneto Ruy Mesquita Filho no livro A Guerra, obra em quatro volumes lançados pelo jornal O Estado de S. Paulo e pela Editora Terceiro Nome. Cada volume reúne os artigos correspondentes a um ano de guerra, de 1914 a 1918. Participaram da edição Mary Lou Paris, Fernando Portela, José Alfredo Vidigal Pontes e Napoleão Saboia. O jornalista Gilles Lapouge escreveu a introdução. A consultoria militar foi de Fortunato Pastore.
A guerra trouxe ao País o estado de sítio e ao Estado, uma mordaça que durou de 24 de novembro de 1917 a 28 de fevereiro de 1918. A direção do jornal resistiu à ação da censura policial, controlada pelo governador de São Paulo, Altino Arantes, deixando em branco o espaço de artigos inteiros ou trechos amputados pelo gabinete de polícia. Ao todo, a ação autoritária golpeou 22 vezes o jornal. Os cortes mais extensos ocorreram na edição vespertina, o chamado Estadinho. Ao todo, a faca dos censores atingiu oito de suas edições. No Estado, os trechos afetados foram menores, mas a ação mutilou 14 de suas edições no período. A escalada autoritária começou em 17 de novembro, quando o presidente Venceslau Brás decretou estado de sítio no Distrito Federal (então no Rio), em São Paulo e nos três Estados da Região Sul do País. Em 23 de novembro, o jornal publicou uma nota escrita à mão pelo presidente para o jornal. Nele, Brás pedia aos brasileiros que se unissem para enfrentar os perigos da guerra contra a Alemanha, aumentando a produção agrícola contra a fome, e que ficasse alerta contra espionagem inimiga “que é multiforme”.
Logo no dia seguinte, um sábado, a edição do Estadinho, foi alvo da tesoura dos censores. Na coluna Tópicos, um trecho inteiro foi publicado em branco. Era o primeiro sinal de resistência. O segundo ataque da censura contra o jornal aconteceu no dia 1.º de dezembro, quando os policiais responsáveis pelo setor cortaram dois trechos do artigo O Estado de Sítio, assinado pelo jornalista Mário Pinto Serva, no Estadinho. Mais uma vez, a direção do jornal decidiu publicar os espaços em branco. O artigo cobrava que a atividade dos agentes da polícia contra a imprensa fosse controlada. “É preciso que o governo federal declare quais as garantias constitucionais que ficam suspensas e quais permanecem vigentes.”
Serva, que trabalharia no jornal até o fim da década de 1950, tornou-se a maior vítima da ação dos censores. O alvo de seus artigos era o estado de sítio e a forma como este, em vez de contribuir para trazer apoio ao governo, estava alienando parte da nação com “sua série de medidas desnecessárias, violentas e inconstitucionais”. No dia 4 de dezembro, os leitores ficaram sem o trecho final de seu artigo sobre a inconstitucionalidade do estado de sítio.
A censura se agravou no dia 13 de dezembro, quando metade do artigo A Censura à Imprensa foi vetado. O espaço em branco na página 3 do Estadinho mostrou o significado da ação policial. O jornal manteve sua luta. A reação policial veio em 2 de janeiro de 1918, quando o artigo Sítio Ditatorial foi proibido na íntegra. O censor Alarico Silveira justificou sua decisão: “O artigo não podia sair em consequência do estado de sítio”.
O jornal publicou então apenas o título e um enorme espaço em branco em sua página 3. E Serva decidiu pedir habeas corpus para publicar seus artigos. A censura continuou durante o mês de janeiro, quando a Justiça paulista se negou a derrubar a censura. O jornal recorreu ao Supremo Tribunal Federal em 19 de janeiro.
Um mês depois, metade da página 3 da edição vespertina foi publicada em branco. Era o espaço reservado para mais um artigo censurado. A edição do Estado de 23 de fevereiro trouxe a palavra censura escrita no meio de uma coluna em branco do noticiário político. Altino Arantes, do Partido Republicano Paulista (PRP), estava no meio de seu mandato – ele seria substituído, em 1920, por Washington Luís, que seria o último presidente da República Velha. Em 28 de fevereiro, a censura ao jornal foi suspensa. No dia seguinte, Serva publicou o artigo vetado: A Censura Paulista. “Ao povo brasileiro só resta uma última defesa legal – recorrer ao Poder Judiciário Federal, que tem competência para desconhecer os efeitos de quaisquer atos do Executivo ou Legislativo infringentes dos textos constitucionais”. Nos dias seguintes, o jornal publicou os trechos e os artigos suprimidos pela censura. Chegava ao fim a primeira mordaça imposta ao jornal.
Serva, que trabalharia no jornal até o fim da década de 1950, tornou-se a maior vítima da ação dos censores. O alvo de seus artigos era o estado de sítio e a forma como este, em vez de contribuir para trazer apoio ao governo, estava alienando parte da nação, com “sua série de medidas desnecessárias, violentas e inconstitucionais”. No dia 4 dezembro, os leitores ficaram sem o trecho final de seu artigo sobre a inconstitucionalidade do estado de sítio. Sítio Ditatorial. A censura se agravou no dia 13 de dezembro, quando metade do artigo A Censura à Imprensa foi vetado. O espaço em branco na página 3 do Estadinhomostrou o significado da ação policial. O jornal manteve sua luta. A reação policial veio em 2 de janeiro de 1918, quando o artigo Sítio Ditatorial foi proibido na íntegra. O censor Alarico Silveira justificou sua decisão: “O artigo não podia sair em consequência do estado de sítio”. O jornal publicou então apenas o título e um enorme espaço em branco em sua página 3. E Serva decidiu pedir habeas corpus para publicar seus artigos. A censura continuou durante o mês de janeiro, quando a Justiça paulista se negou a derrubar a censura. O jornal recorreu ao Supremo Tribunal Federal em 19 de janeiro.
Um mês depois, metade da página 3 da edição vespertina foi publicada em branco. Era o espaço reservado para mais um artigo censurado. A edição do Estado de 23 de fevereiro trouxe a palavra censura escrita no meio de uma coluna em branco do noticiário político. Altino Arantes, do Partido Republicano Paulista (PRP), estava no meio de seu mandato – ele seria substituído, em 1920, por Washington Luís, que seria o último presidente da República Velha. Em 28 de fevereiro, a censura ao jornal foi suspensa. No dia seguinte, Serva publicou o artigo vetado: A Censura Paulista. “Ao povo brasileiro só resta uma última defesa legal – recorrer ao Poder Judiciário Federal, que tem competência para desconhecer os efeitos de quaisquer atos do Executivo ou Legislativo infringentes dos textos constitucionais”. Nos dias seguintes, o jornal publicou os trechos e os artigos suprimidos pela censura. Chegava ao fim a primeira mordaça imposta ao jornal.
“Uma difusão em O Estado de S. Paulo é a melhor garantia para a eficácia da publicidade das Casas Italianas”, escreveu ao pé de um comunicado sobre a mudança de endereço, da Via Sistina 42 para a Praça Veneza 88. No cabeçalho, apresentou o Estado como “jornal diário de grande formato, edições de 16 - 24 - 32 páginas” , detentor do Prêmio da Exposição Internacional de Turim em 1911.
Com um escritório em Roma, o Estado conseguiu chegar aos combatentes aliados. Fotografias enviadas da frente de batalha mostram soldados lendo os jornais na trincheira. Eram principalmente ítalo-brasileiros, filhos de imigrantes italianos de São Paulo que foram convocados para a guerra.
Em outra fotografia, fornecida pelo colecionador particular Jorge Calixto Santos Filho e reproduzida na edição de 19 de novembro de 2002, aparece o Cabo Siron com um exemplar do Estado nas mãos, numa trincheira de Argonne, perto de Verdun, fronteira com Alemanha. Siron era francês e continuou vivendo na França depois que sua mãe se separou do marido e mudou para o Brasil. / J.M.M
Ruy Mesquita Filho entusiasmou-se com o trabalho do bisavô ao ler A Guerra, que amigos de Julio Mesquita publicaram em 1920, à revelia dele. Julio Mesquita não gostou e mandou interromper o projeto, que previa o lançamento de mais dois ou três volumes. Julio Mesquita não assinava os boletins, que apareciam sempre ao pé dos telegramas enviados pelas agências de notícias e pelos serviços de informação dos países em guerra. O jornal divulgava tudo, cabendo a seu proprietário e diretor, com suas crônicas, “ajudar os leitores do jornal a pôr um pouco de ordem nas suas reflexões e corrigir as demasias, ora otimistas, ora pessimistas, das suas primeiras impressões”, como observaram os editores do primeiro volume.
Os boletins foram escritos “às carreiras”, quase sem interrupção, apesar das constantes viagens de Julio Mesquita a Campinas e à sua fazenda em Louveira. Quando estava fora de São Paulo, o trem levava o malote com os telegramas pela manhã e voltava nas tardes de domingo com os artigos ou crônicas para a edição de segunda-feira. Saíam também nas páginas do Estadinho, vespertino que circulou de 1915 a 1921. “O Estadinho tinha espaço para abrir mais fotos da guerra que outros jornais”, disse Ruy Mesquita Filho.
“Deixou-se de publicar os comentários que habitualmente saem nesta seção, por se achar enfermo o seu autor, Dr. Julio Mesquita”, avisou o jornal, referindo-se ao período de 25 de fevereiro a 1.º de abril de 1918. Na semana seguinte, em 8 abril, o jornalista retomou os artigos, com uma advertência inicial aos leitores: “Talvez ainda não nos seja possível recomeçar, com a habitual pontualidade, a publicação semanal destes boletins”, escreveu ele, acrescentando que “as últimas notícias, por sua importância excepcional, pedem alguns comentários, que não adiamos”.
Também não houve comentários nas segundas-feiras de 24 de julho a 4 de setembro de 1916. Ao retomar os boletins no dia 11 de setembro, Julio Mesquita justificou sua ausência: “Interrompeu-se há algumas semanas a publicação destes comentários, mas os nossos leitores pouco perderam com a interrupção”. Além de a agência de notícias Havas (atual France Presse) ter melhorado a qualidade de seus despachos, conforme observou o jornalista, “os acontecimentos destes últimos dois meses, sem dúvida importantíssimos, são dos que por si mesmos se comentam, tão depressa se forma, no espírito de quem deles toma conhecimento, uma ideia exata de sua significação”.
Os boletins de Julio Mesquita iam muito além dos telegramas, pois, baseados neles e em informações paralelas, interpretavam o avanço da guerra, analisavam a política dos governos envolvidos e arriscavam prognósticos do que deveria acontecer, a curto e a longo prazos. O Estado diferenciava-se dos jornais europeus pela capacidade de dar uma visão global do conflito mundial, enquanto os jornalistas europeus se voltavam, cada um, para seus próprios países. Gilles Lapouge, correspondente em Paris, cujo pai lutou nas trincheiras, reconheceu e admirou essa qualidade, o “olhar distante” do jornal, ao ler em 2002 o primeiro volume de A Guerra, publicado pelos amigos de Julio Mesquita em 1920.
O trabalho de pesquisa fotográfica para o livro A Guerra fez Mary Lou Paris, da Editora Terceiro Nome, trabalhar por meses em sua casa procurando uma linguagem que contasse a história dos boletins de guerra escritos por Julio Mesquita. A obra A Guerra ficaria pronta em 2002 e se transformaria em um grande sucesso editorial. Em quatro volumes, ela reuniu os boletins semanais publicados durante a conflagração de 1914-1918 no Estado. “Foi preciso encontrar uma narrativa visual para essa obra”, contou Mary Lou.
Esse trabalhou revelou imagens insólitas, como as dos pombos-correio usados pelos militares. Outra preocupação da edição foi mostrar a guerra como um conflito mundial, fugindo da visão eurocêntrica que muitos na época tinham do conflito. Para Mary Lou, o contato com os textos de Julio Mesquita trouxe uma grande surpresa: a capacidade de análise do jornalista.
“Ele tinha uma sensibilidade surpreendente. Recebia publicações de vários países e, por isso, reunia informações das mais variadas nações em guerra”, disse Mary Lou. Com isso, Julio Mesquita tinha à sua disposição o que era publicado em cada país beligerante. “Ele misturava em seus textos as versões diferentes de cada país sobre os acontecimentos, criando dessa forma uma nova narrativa sobre a guerra”, contou Mary Lou. A pesquisa das imagens para a obra reuniu material do Acervo do Estado e de quatro outras publicações da época mantidas no arquivo do jornal. O primeiro volume trata do início da guerra até a entrada da Itália no conflito, em 1915. O segundo volume dos boletins semanais reúne os textos desde a entrada da Itália na conflagração até a ofensiva anglo-francesa no Vale do Rio Somme, em 1916. O terceiro volume parte desse momento e se encerra no ataque alemão à Riga, na Rússia, em 1917. Por fim, o último volume se inicia na queda de Riga e segue até o fim da luta.
Com apresentação de Ruy Mesquita Filho e artigos de Gilles Lapouge, Fortunato Pastore, Jorge Caldeira e João Alfredo Vidigal Pontes, os quatro volumes do livro A Guerra podem ser encomendados no site da editora (www.terceironome.com.br). O preço da obra completa é R$ 220.
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O diretor do Estado não errou em nenhuma previsão. “Não há esforço humano capaz de impedir que desta vez se corrijam as fronteiras dos diversos países da Europa, de acordo com o princípio das nacionalidades, pelo qual outrora a França tanto se bateu, que parecia abandonada para sempre depois das vitórias alemãs de 1870/71”, alertou Julio de Mesquita em 17 de janeiro de 1915, cinco meses após o começo da guerra. Ele acreditava na vitória dos aliados, mas temia, ou previa, que o inimigo não se entregaria definitivamente. “A Alemanha, se sucumbir, sucumbe numa longa explosão de incrível vitalidade, que faz estremecer o universo em seus alicerces”, escreveu, prevendo em seguida que a Alemanha “cai para ressurgir”. A reação dos militares alemães ao Tratado de Versalhes, que restabeleceu a paz em julho de 1919, oito mês após a assinatura do armistício para encerrar os combates, favoreceu a ascensão do nazismo de Adolf Hitler e levou à 2.ª Guerra Mundial (1939-1945).
Em seu último boletim, publicado em 14 de outubro de 1918, Julio Mesquita adiantou-se mais uma vez na previsão do que estava para acontecer, enquanto os países em guerra ainda buscavam caminhos para a paz. Seu comentário de despedida:
Na avaliação de Fortunato Pastore, consultor militar que analisou o conflito no livro A Guerra, em 2002, “os editoriais que Julio Mesquita escreveu durante a 1.ª Guerra Mundial revelam-se uma verdadeira aula de política internacional e de estratégia militar no início do século 20”.
A guerra explodiu em 3 de agosto de 1914. As batalhas, a carnificina, estavam longe. Mas Julio Mesquita fez questão de que os brasileiros acompanhassem de perto a tragédia. A informação era rara, muitas vezes censurada ou mentirosa. Pouco importava. Julio Mesquita era jornalista e semanalmente publicava em O Estado de São Paulo um longo relato da guerra. Esses artigos foram reunidos em 2000 pela editora Terceiro Nome e O Estado de São Paulo. Li os quatro enormes volumes. Magníficos.
As histórias da Grande Guerra, há cem anos, são inúmeras. Os grandes sábios e poetas edificaram um monumento para contar o horror de 1914-1918. Julio Mesquita, em seu Brasil longíquo, desprovido das fontes de informação, não podia concorrer com testemunhas europeias do drama, como Barbusse ou Genevoix, Ernst Junger ou Erich Maria Remarque. Entretanto, seus artigos são tão belos quanto os daqueles autores do drama. Às vezes mais profundos. E mais modernos. Qual era sua receita? O distanciamento e o uso sutil que fez dele. Seus artigos ilustram uma frase do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau: “Quando queremos estudar os homens, é preciso olhar de perto. Mas para estudar o homem é preciso aprender a observar de longe”.
Nós, franceses, ou os alemães, estávamos próximos do massacre. Nós só conhecíamos batalhas como as do Marne, do Chemin des Dames, do Somme, de Verdun. A guerra era um duelo entre duas nações vizinhas, França e Alemanha. Essa guerra era nossa, de franceses e alemães. Era o nosso tesouro, nossa memória comum, nosso inferno e nossa abominável glória compartilhada. Os artigos de Julio Mesquita fazem explodir essa imagem entorpecida. Certamente ele concentrou sua atenção em Verdun ou em Somme, mas trouxe para a frente do palco todos os atores invisíveis que, nos jornais franceses ou alemães, ficavam na sombra dos bastidores. Com Julio Mesquita não são Berlim e Paris que combatem ferozmente: é o mundo inteiro que dança e morre na fogueira. Pensamos na grande pintura clássica. Em torno do tema principal, no fundo do quadro, vemos personagens secundários que se agitam, camponeses, um cachorro, uma carroça, que entram no quadro e mudam seu sentido. Assim trabalhava Julio Mesquita. Enquanto o mundo tinha os olhos fixos no Marne ou no Somme, ele fazia sair à noite as tropas russas que lá na Prússia Oriental derrotaram os soldados do alemão Hindenburg. Mais além, introduz no seu quadro os soldados britânicos cavando trincheiras nos Dardanelos, no Império Otomano. Nos relatos franceses da época, a guerra é um “assunto provincial”. Nas narrativas de Julio Mesquita, ela é “global”. A guerra de 1914 foi uma guerra profética. Anunciava, como um pregador do Antigo Testamento, os contornos do mundo no futuro, primeiramente a 2.ª Guerra Mundial, que incendiou o planeta inteiro e foi a réplica distorcida daquela de 1914, em seguida o mundo de 2014, arrebatado pela globalização.
Global é a guerra descrita por Julio Mesquita e também global é a atenção que ele prestou ao que ocorria longe das batalhas: as fábricas que produziam os obuses, os quartéis onde os generais geriam a morte, nas estações de telégrafo que colocavam em comunicação todos os compartimentos da guerra, nos ministérios onde eram tramadas alianças, rupturas, traições. Nos hospitais onde eram cortados braços e pernas, nos portos aonde chegavam as provisões para os milhões de soldados. O milagre é que essa ampliação prodigiosa da “distância focal”, nos relatos de Julio Mesquita, é reproduzida numa narração clara, fácil de ler, ordenada. Precisamos abordar também o estilo. Erudito, às vezes repleto de referências à literatura antiga. A frase é ágil, elegante, sensível, abrasadora ou indignada, mas sempre sem as “grandiloquências” degradantes que desfiguram a maioria das narrativas sobre a Grande Guerra.
Para começar, ele estava numa posição de desvantagem, acompanhando o drama a partir de um observatório a dez mil quilômetros do local. Julio Mesquita fez da dificuldade uma força, da fraqueza uma superioridade. Seu texto é magnífico. E nos faz ver, sentir, sofrer, tocar nessa guerra do outro lado do mundo. Não é bombástico. E em cem anos não adquiriu nem uma ruga sequer. Foi escrito esta manhã. É um “clássico”.
Na noite de 28 para 29 de julho de 1914, as águas do Danúbio foram sacudidas em Belgrado por estilhaços de granadas de artilharia. Eram austro-húngaras e haviam sido lançadas horas depois de Viena declarar guerra ao pequeno reino sérvio. Os generais que planejaram a ação pensavam ter começado o que seria a terceira guerra balcânica. De fato, o chefe do estado-maior austríaco, Conrad von Hötzendorf, confiante no apoio alemão, acreditava poder acertar as contas com a Sérvia em três meses, confinando o conflito ao Sudeste europeu, assim como acontecera nas duas disputas anteriores que haviam envolvido, em 1912 e em 1913, a Bulgária, a Romênia, o Império Otomano, a Grécia, Montenegro e a mesma Sérvia.
Mas a presença de um dos grande poderes europeus nesse cenário e o sistema de alianças que ligava as potências do continente mudariam tudo dessa vez. A Rússia decretou a mobilização geral de seu exército no dia 30 para proteger a Sérvia, sua aliada. Em 1.º de agosto, a Alemanha, que apoiava os austríacos, declarou guerra à Rússia. A França, aliada dos russos, decidiu reunir seus soldados no mesmo dia. No dia 3, a Alemanha declarou guerra à França e deu um ultimato à Bélgica: dar livre passagem aos alemães. O governo belga negou o pedido - o rei Alberto I decidiu resistir. O país acabou invadido no dia 4. A violação de sua neutralidade fez a Grã-Bretanha declarar guerra à Alemanha.
Os austríacos que lançaram as bombas em Belgrado naquela noite de verão terminariam o ano de 1914 com 957 mil baixas em suas forças, entre mortos, desaparecidos e prisioneiros. Foram repelidos pelos russos na Galícia (atual Polônia) e, depois de tomar Belgrado em 2 de dezembro, expulsos da cidade pelos sérvios no dia 13. Seus exércitos deixaram para trás um rastro de 4 mil civis assassinados na Sérvia - os soldados seguiram as ordens de generais que consideravam, "em um país habitado por uma população inspirada por um ódio fanático, toda bondade de coração fora de questão". O conflito balcânico que imaginavam começar se transformara rapidamente em europeu e, pouco tempo depois, envolveria o planeta: a 1.ª Guerra Mundial.
O capitão alemão Harry Kessler tinha 46 anos no começo da guerra. Em suas memórias, ele conta que estava perto de Liège, na Bélgica, em 12 de agosto de 1914 quando encontrou um grupo de artilheiros austríacos recém-chegados de Trieste. O porto no Adriático pertencia então ao Império Austro-Húngaro. Os recém-chegados cruzaram a Áustria e a Alemanha para trazer em segredo quatro canhões Skoda que disparavam projéteis gigantes de calibre 305 mm. Não eram as únicas peças de artilharia pesada a chegar naquele dia. Havia outras quatro peças de calibre 420 mm fabricadas pela indústria alemã Krupp. Eram os gigantes Bertha.
O rei que rejeitou o ultimato alemão para permitir que o vizinho atacasse a França por meio de seu território subiu ao trono em 23 de dezembro de 1909. A resposta do kaiser Guilherme II ocorreu em 4 de agosto, quando suas tropas violaram a neutralidade belga. O rei dos belgas assumiu o comando de seu pequeno exército e resistiu ao invasor durante quatro anos instalado atrás do Rio Yser, na região de Flandres, a única de seu país que os alemães não conseguiram ocupar durante a guerra. Sua família tinha ligações com a nobreza alemã - ele mesmo ostentava os títulos de duque de Saxe e príncipe de Saxe-Cobourg-Gotha e sua mãe era a princesa Marie de Hohenzollern-Sigmaringen-, o que aumentou ainda mais a surpresa na Europa causada por sua resistência ao invasor. O Exército belga lutou ainda na África (Togo e Namíbia), mas se manteve fora das grandes ofensivas aliadas até pouco antes do fim da guerra. / M.G.
Todo esse poderio de fogo tinha um objetivo: pôr de joelhos os fortes de Liège, que desde o dia 5 se recusavam a se render aos alemães. No dia 15, estava tudo acabado. O peso das bombas dos canhões venceu a resistência belga. O general Gérard Leman foi achado inconsciente entre as ruínas e aprisionado. Sobre a cena que se seguiu, o historiador inglês John Keegan escreveu: “Da maca, na qual seus captores o colocaram, ele disse ao general alemão Otto von Emmich: ‘Peço-lhe que dê seu testemunho de que você me encontrou inconsciente’.”
A invasão da Bélgica começara em 4 de agosto. Ao mesmo tempo, o exército francês atacava na Alsácia e na Lorena. Com seus casacos azuis e calças vermelhas, os homens marcharam em direção às posições alemãs em colunas cerradas com bandeiras e fanfarras. Parecia uma cena napoleônica. A guerra, no entanto, mudara. Milhares foram ceifados pelas metralhadoras e pela artilharia inimiga. Em um único dia – 22 de agosto –, os franceses sofreram 22 mil baixas, mais do que qualquer outra nação em um único dia durante a guerra.
A ofensiva francesa foi um fracasso. Enquanto isso, os alemães aterrorizavam a Bélgica. Nas primeiras semanas da guerra, 5. 146 civis belgas e franceses foram mortos em 129 represálias contra a população civil ditadas pela paranoia alemã contra a ação de franco-atiradores. Em Louvain, o invasor ateou fogo à biblioteca da universidade, queimando 300 mil volumes, executou habitantes e deportou 1,5 mil deles para a Alemanha. Massacres e pilhagens ocorreram em dezenas de cidades, como em Dinant, onde 647 civis foram fuzilados diante de mulheres e crianças. Vencida a resistência belga, os alemães caminharam para Paris. Queriam envolver o exército francês e acabar com a guerra em menos de 40 dias. Marchavam triunfante. Nada parecia detê-los. / M.G.
Em janeiro de 1914, o czar Nicolau II se encontrou com Théophile Delcassé, o embaixador francês em São Petersburgo. Conversaram sobre um possível conflito na Europa: “Não vamos deixá-los pisar em nossos pés e, dessa vez, não será como na guerra no Oriente: a nação nos apoiará”, disse o czar. Nicolau II pensava no perigo de uma nova revolução, como a que ocorrera na Rússia em 1905, depois da derrota do país na Guerra Russo-Japonesa.
Os exércitos de Nicolau II se dividiram em agosto de 1914. Dois deles se dirigiram à Alemanha, invadindo a região da Prússia Oriental. Em Gumbinnen, no dia 20, eles bateram os alemães, que se retiraram em meio a colunas de refugiados. O governo de Berlim pensava que o czar precisaria de 40 dias para mobilizar seus homens. Surpresos com a rapidez russa, decidiu trazer da França dois corpos de exército, enfraquecendo as forças que invadiam aquele país. “Sem Gumbinnen, jamais teria havido a vitória do Marne”, escreveu o historiador francês Marc Ferro. A derrota no Marne impediu a vitória alemã em 1914.
Na Prússia, Gumbinnen provocou a mudança do comando alemão no Oriente. Os generais Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff assumiram a situação e manobraram suas forças de tal forma que conseguiram cercar o 2.º Exército russo em Tannenberg. Foi a maior vitória alemã da guerra. Seguiu-se depois o impasse, com os exércitos imóveis entrincheirados um diante do outro durante o inverno.
Mais ao sul, na região da Galícia (atual Polônia), austríacos e russos mobilizaram milhões de homens desde a fronteira da Romênia até a Alemanha. A sorte da guerra na região mudaria rapidamente, mas o ano terminaria com um desastres austríacos. Eles perderam a fortaleza de Lemberg e 150 mil de seus homens estavam cercados em outra fortaleza, a de Przemyls (no sul da atual Polônia). O começo da guerra significou para os russos a perda de 1 milhão de soldados e de outro 1,26 milhão para os austro-húngaros. A incapacidade bélica do exército de Viena fez os alemães terem certeza de que estavam “acorrentados a um cadáver”: a monarquia austríaca dos Habsburgos. / M.G.
O começo da guerra de 1914 viu a posse na Presidência do Brasil do mineiro Venceslau Brás. Ele havia ocupado a Vice-Presidência durante o governo de Hermes da Fonseca (1910 a 1914) e derrotara o republicano-liberal Ruy Barbosa. O País vivia no sul a Guerra do Contestado, uma rebelião de caboclos contra os governos estadual e federal em torno da posse de terras em Santa Catarina, que só acabaria em 1916. Em São Paulo, as famílias da elite cafeeira eram grandes, como a do futuro presidente Washington Luís, fotografada pela revista Careta.
O futebol era já o esporte mais popular do País – o Flamengo se sagrara campeão carioca pela primeira vez em 1914. Já os paulistas tiveram dois campeões naquele ano – o Corinthians e o São Bento –, pois duas ligas distintas organizaram campeonatos no Estado. A publicidade anunciava novas facilidades da vida moderna: "A senhora está satisfeita com seu marido?" Assim, com essa pergunta, começava o texto do anúncio da Société Anonyme du Gaz do Rio de Janeiro para convencer que “o bom marido” era aquele que comprava um fogão a gás para sua mulher. O anúncio ocupava uma página da revista Careta e estava pouco antes da reportagem sobre as façanhas dos aviadores da Escola Brasileira de Aviação, em Deodoro.
Naquele ano, as "pessoas de bem" da então capital federal frequentavam o elegante salão do Copacabana Club durante o carnaval. Em 28 de junho, quando o jovem Gavrilo Princip matou o arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, o crime que prendia a atenção do mundo era outro: o assassinato de Gaston Calmette, diretor do jornal francês Le Figaro. O jornalista foi baleado por Henriette Caillaux, segunda mulher do ministro das finanças francês, Joseph Caillaux. O motivo do crime foi o fato de Calmette ter publicado cartas privadas do ministro.
O Estado publicava no dia 1.º de agosto a manchete: A guerra austro-sérvia. No dia seguinte, adotaria como manchete a palavra que marcou sua primeira página pelos próximos quatro anos: A Conflagração. A guerra definitivamente entrava no cotidiano dos brasileiros. / M.G.
O jovem Yves Congar tinha dez anos e vivia em sua Sedan, na França, perto da fronteira da Alemanha, quando escreveu em 29 de julho de 1914: “Eu consigo pensar sobre a guerra. Gostaria de ser soldado e lutar”. Congar se tornaria um dos mais influentes teólogos da Igreja no século 20. Dominicano, foi consultor do Concílio Vaticano 2.º e se tornaria cardeal em 1994, um ano antes de sua morte.
Depois da Bélgica, os alemães invadiram a França. Sedan foi uma das cidades ocupadas e saqueadas pelo invasor – o pai de Congar foi tomado como refém pelos alemães como prevenção à resistência da população. Os exércitos alemães se dirigiam à região de Paris, um setor defendido apenas pelos 100 mil homens da Força Expedicionária Britânica e pelo 5.º Exército francês. Contra eles, marchavam três exércitos alemães.
Os aliados foram batidos em Moons, Le Cateau, Maubege e retiravam-se em direção a Paris. Os alemães atingiram a região do Rio Marne. Não sabiam que o marechal francês Joseph Joffre ordenara a disposição de uma nova tropa, o 6.º Exército, para defender a capital francesa. Soldados foram transferidos de trem da fronteira com a Alemanha a tempo de salvar a França. O contra-ataque começou no dia 5. Sobre essa situação, escreveu o general francês Ferdinand Foch: “Minha direita está ruindo, minha esquerda está recuando. Excelente. Ataco com meu centro”.
Às 9h02 de 9 de setembro, o 2.º exército alemão recebeu uma das mais dramáticas ordens da guerra: retirar. Uma brecha entre ele e o 1.º exército alemão se havia aberto e colocava em risco toda a frente. O mais impressionante da decisão foi ela ter sido tomada por delegação. De fato, foi o tenente-coronel Richard Hentsch quem a determinou como enviado do chefe de estado-maior alemão, general Helmuth von Moltke, para avaliar a situação. Para o historiador inglês Max Hastings, a derrota alemã no Marne foi a “virada, o momento decisivo da 1.ª Guerra Mundial”. / M.G.
O grande cerco de Przemyls começou em 17 de setembro de 1914. A cidade-fortaleza mantida pelo Império Austro-Húngaro na Galícia (atual Polônia) contava com uma guarnição de cerca de 150 mil homens. Era a chave das defesas do império dos Habsburgos diante dos Montes Cárpatos e acabou envolvida pela maré russa que tomou a região depois que o exército de Viena foi derrotado perto de Tarnopol, obrigando os alemães a correr em ajuda de seus aliados.
No fim de 1914, o avanço alemão em direção a Varsóvia havia obrigado os russos a levantar o cerco à cidade. Era 9 de outubro. E foi por pouco tempo. Com o fracasso da ação alemã, os austríacos também tiveram de se retirar em 26 de outubro, deixando mais uma vez a cidade-fortaleza sitiada. Ali perto, no Rio Vístula, o filósofo Ludwig Wittgenstein acompanhou o drama da retirada.
Wittgenstein deixara Cambridge e se alistara no exército austro-húngaro. Foi designado para um barco-patrulha. A guerra o decepcionou rapidamente. A começar pelos colegas da tripulação. O filósofo descobriu que “compartilhar uma grande causa (a guerra) não enobrece a humanidade”. “Os russos estão em nosso encalço”, escreveu no diário. “Trinta horas sem dormir”, anotou. Ele e seus colegas se retiraram para Cracóvia.
Przemyls passou todo o inverno cercada. Trinta mil civis compartilhariam o destino dos militares. No começo de 1915, a falta de comida levou ao abate de 13 mil cavalos do exército – na época, o transporte militar era largamente dependente da força animal. Em 23 de janeiro, os austríacos lançaram uma ofensiva para tentar libertar a cidade. Ela fracassou assim como a tentativa seguinte, em 27 de fevereiro. Em 22 de março, a guarnição austríaca se rendeu. Cento e dezenove mil soldados tornaram-se prisioneiros russos.
Os russos ficariam ali poucos meses. Em maio, os alemães e austríacos começaram uma grande ofensiva. Em julho, Przemyls foi reconquistada. Em agosto, os russos se retiravam de Varsóvia e do restante da Polônia.
O escritor e poeta inglês Robert Graves contou em suas memórias (Goodbye to At All; leia a resenha do jornal inglês The Guardian) como sobreviveu nas trincheiras da frente ocidental desde que se alistara em 1914. “Eu me mantive de pé e vivo bebendo cerca de uma garrafa de uísque por dia.” Graves foi um dos soldados que participaram da grande ofensiva aliada no Artois, na França, entre setembro e outubro de 1915.
O velho exército imperial inglês de antes da guerra havia sido consumido no fim de 1914 na 1.º Batalha de Ypres, no sul da Bélgica. Reconstituído com os voluntários que chegaram aos quartéis cantando It’s a Long Way to Tipperary, música-símbolo dos homens de uniforme cáqui, o exército inglês teve de cavar trincheiras a exemplo dos outros combatentes da frente ocidental para sobreviver. Do outro lado do arame farpado da terra de ninguém (espaço entre as trincheiras inimigas), os alemães cavaram mais fundo.
No começo do ano, uma primeira ofensiva inglesa fracassara em Neuve-Chapelle. Em maio, os ingleses atacaram novamente. O alvo era a Crista de Aubers, no Artois. Ao mesmo tempo, os franceses tentaram conquistar outra área elevada na mesma região, a de Vimy. Os ataques só acrescentaram mais algumas dezenas de milhares de nomes às listas dos mortos nos campos de honra publicadas pela imprensa inglesa.
Chegava o dia 25 de setembro. Os ingleses usaram seus engenheiros para colocar minas embaixo da linha de trincheiras alemãs. Iam explodi-las no momento em que o avanço de seus soldados começasse. Durante quatro dias, a artilharia martelara as defesas alemãs. Por fim, abriu centenas de cilindros com o gás cloro, mas o vento contrário fez com que o veneno fosse parar nas linhas inglesas.
Quando deixaram as trincheiras no dia 25, os ingleses pensavam que haveria pouca resistência. Avançaram de peito aberto em direção aos alemães, que saíram de seus abrigos profundos cavados nas trincheiras e assumiram os postos em suas metralhadoras a tempo de provocar um massacre. Dos 15 mil britânicos que se lançaram ao ataque, 8 mil foram mortos ou feridos no primeiro dia. A batalha durou até 14 de outubro. Custou 60 mil baixas aos ingleses e 30 mil aos alemães.
O prédio em estilo barroco, ao lado do Bósforo, abrigava a embaixada alemã em Constantinopla. Seu titular era o barão Conrad von Wangenhein, um amigo do kaiser Guilherme II, com excelentes relações com o governo dos jovens turcos, o grupo político que se rebelara contra o sultão Abdul Hamid II em 1908 – ele acabou exilado e substituído pelo irmão, Maomé V, em 1909. Em agosto de 1914, o alemão recebeu em seu gabinete o embaixador americano, Henry Morgenthau, e fez uma revelação: o Império Otomano entraria na guerra do lado da Alemanha, mas o que importava mesmo era “o mundo muçulmano”. Mais do que ganhar um aliado, os alemães contavam em transformar a conflagração em uma jihad, uma guerra santa que sublevasse o Islã contra os russos, ingleses e franceses.
As previsões do embaixador começaram a se cumprir em 29 de outubro de 1914. Navios turcos bombardearam quatro portos russos no Mar Negro. Em 2 de novembro, a Rússia declarou guerra à Turquia e foi seguida no dia 5 pela Grã-Bretanha e pela França. No dia 14, o xeque Ul-Islam, em nome do sultão Maomé V, decretou a jihad. Havia 270 milhões de muçulmanos no mundo em 1914, dos quais 140 milhões viviam sob o mando franco-russo-britânico. Contra esses países, o sultão esperava lançar o “fogo do inferno”.
Mas os jovens turcos tinham outros planos. Mobilizaram suas melhores tropas para invadir o Cáucaso, na Rússia, em vez de lançá-las em direção à Índia – a joia da coroa britânica – ou o Canal de Suez, no Egito, então protetorado britânico. Sem botas e casacos de inverno, o exército turco enfrentou - 31°C e congelou na Batalha de Sarikamish. O desastre levou à perda de 75 mil homens.
A derrota provocou pânico. Os armênios – cristãos que viviam na região – foram transformados em bode expiatório. O governo turco decidiu deportá-los, provocando a maior crise humanitária da guerra. É impossível calcular quantos armênios morreram. As estimativas vão de 1,3 milhão a 2,1 milhões. O chamado pela guerra santa fracassou. Nenhum movimento de resistência muçulmano nasceu do decreto de jihad turco.
Por fim, em 25 de abril, franceses, ingleses, australianos e neozelandeses desembarcaram na Península de Gallipoli, no Estreito dos Dardanelos. Ficaram lá até 1916 e o ataque – concebido por Winston Churchill, então primeiro lorde do almirantado inglês para levar à derrota da Turquia – transformou-se em mais um dos desastres militares da guerra. Cento e dez mil turcos e aliados morreram na campanha. Outros 200 mil ficaram feridos.
Quem dá mais? Essa é a pergunta que pode definir a política em relação à guerra do primeiro-ministro italiano Antonio Salandra. Ele mesmo a chamava em 1915 de “sacro egoísmo”, ao indagar qual dos dois lados da guerra poderia assegurar mais ganhos territoriais à Itália em troca de seu apoio. A entrada da Itália na guerra está intimamente ligada ao chamado irredentismo, movimento que buscava unir debaixo do governo de Roma todas as regiões habitadas por italianos. Como a maioria delas estava sob domínio austro-húngaro, não era difícil prever qual lado receberia seu apoio. E assim foi: a Itália, que antes da guerra era aliada da Alemanha e do Império Habsburgo, as chamadas potências centrais, declarou guerra à Áustria-Hungria em 23 de maio.
Milhares de italianos e filhos de italianos ao redor do mundo se mobilizaram para lutar pelo país. De São Paulo partiu em 1915 o jovem Amerigo Rottelini. Nascido em 1894, ele era filho do jornalista Vitaliano Rottellini, dono do jornal Fanfulla, editado em italiano na cidade. Amerigo se tornou tenente do exército real italiano e morreu em 24 de agosto de 1917, quando conduzia um assalto com seus soldados. Em São Paulo, o comendador Ermelino Matarazzo fundou o Comitatto Pro Patria, para reunir doações em dinheiro, alimentos e roupas para os soldados italianos e seus familiares – esforço que lhe valeu o reconhecimento do governo italiano.
Quatro quintos da fronteira italiana com os austríacos eram constituídos de montanhas de até 3 mil metros de altitude cobertas de gelo e neve no inverno. Explosões ali podiam facilmente provocar avalanches. E os italianos atacaram nos Alpes da região do Trentino e no Vale do Rio Isonzo, perto do Mar Adriático. Só nas quatro batalhas do Isonzo, em 1915, 54 mil italianos morreram e pouco terreno foi conquistado. Um novo impasse com os exércitos imobilizados em trincheiras surgia na Europa.
Às 9h15 de 25 de setembro, o bombardeio das linhas alemãs cessou. Dois milhões de obuses haviam sido lançados pela artilharia francesa em três dias. Foi quando os homens do 23.º Regimento de Infantaria Colonial se lançaram ao ataque. No fim do dia, mil deles estavam mortos, mas a posição alemã em Massiges, na Champagne, no norte da França, estava conquistada. Os regimentos coloniais eram constituídos principalmente por soldados da metrópole enviados às colônias. Eles foram mobilizados para a guerra assim como as unidades de tirailleurs (atiradores), formadas pelos povos das colônias.
Quase um milhão de marroquinos, zuavos, spahis, senegaleses, marroquinos vietnamitas e malgaxes foram enviados para a luta na Europa. Os ingleses mobilizaram 1,3 milhão de tropas do Canadá, da Austrália, da Nova Zelândia e da África do Sul, que lutaram na Europa. Outro 1 milhão de africanos e hindus entraram no exército inglês. Eles combateram os otomanos na Mesopotâmia, no Sinai, na Palestina e enfrentaram os alemães na China e na Tanzânia, nos Camarões e na Namíbia, as três principais colônias alemãs na África.
No Oriente Médio, a revolta árabe – com a ajuda do oficial inglês T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia interpretado por Peter O’Toole no filme dirigido por David Lean – e a promessa inglesa de terra e liberdade para árabes e judeus começariam a desenhar a crise que toma conta da região até hoje. Os ingleses contaram com os japoneses na ação contra as colônias alemãs na China e no Pacífico. Em 7 de novembro, os 5 mil alemães da guarnição de Tsingtao se renderam aos 60 mil japoneses e 2 mil britânicos que os cercaram. A tomada de Tsingtao marcou o início do expansionismo japonês na China,política que levaria o país a atacar Pearl Harbor em 1941. Os japoneses completariam sua ação na Grande Guerra tomando para si as Ilhas Marina, Carolinas, Marshall e Gilbert.
Em 7 de junho de 1915, o jornalista Julio Mesquita escreveu no Estado:
Na África, os alemães foram derrotados na Namíbia e em Camarões em campanhas nas quais os dois lados mobilizaram grandes contingentes de tropas nativas. Do outro lado da África, o general alemão Paul von Lettow-Vorbeck lutou contra ingleses, sul-africanos, portugueses, moçambicanos, congoleses e hindus. No começo, tinha 3 mil askaris (soldados negros) e 200 oficiais alemães. Depois, aumentou seu exército para 20 mil homens – seus inimigos eram 300 mil. Lettow-Vorbeck se rendeu em 25 de novembro de 1918, depois de o armistício ter sido assinado na Europa.
Quem não viu esses campos de morte jamais terá a menor ideia deles. Em Verdun, os mortos não contavam. Nem se enterravam. Da lama inescapável à sede infinda, o ambiente tornava improvável que a vida de um soldado durasse mais de 15 dias na frente de batalha.
Para a França, 1916 é o ano de Verdun, o ano da batalha que o estado-maior alemão planejou para sangrá-la até o fim. O plano era atacar a histórica fortaleza e forçar o inimigo a contra-atacar até esgotar suas forças. O assalto alemão começou em 21 de fevereiro. Um conjunto de 1,2 mil canhões disparou em uma frente de 20 quilômetros de extensão. O avanço inicial alemão foi avassalador. O Forte de Douaumont, o coração do sistema defensivo de Verdun, caiu às 3h30 do dia 25.
A cidade só não caiu por causa da determinação francesa. O general Philippe Pétain assumiu o comando. A estrada que ligava Verdun a Bar-le-Duc se transformou na Via Sacra. O tráfego ali não parava, dia e noite. O que parecia ser a véspera da vitória alemã se transformou em mais uma batalha de atrito, um moedor de carne e de materiais. E assim foi até que os franceses contra-atacaram. No dia 21 de outubro, os marroquinos e a infantaria colonial retomaram Douaumont. Na noite de 2 para 3 de novembro, foi a vez da reconquista do Forte de Vaux. Em 15 de dezembro, a última ofensiva francesa assegurou mais cinco fortificações e fez 11,3 mil prisioneiros. As baixas alemãs chegaram a 337 mil – dos quais 143 mil mortos –, enquanto as francesas atingiram 377,2 mil – 162,4 mil mortos.
Um general que participara de sessões espíritas na qual conversara com o espírito de Napoleão e pensava poder se comunicar com Deus era o homem que os ingleses encontraram para comandar seu exército em 1916. Assim era Douglas Haig, conta o historiador inglês John Keegan. No dia 1.º de julho de 1916, ele lançou seus homens no vale do Rio Somme contra as defesas alemãs – alguns dos abrigos inimigos tinham mais de dez metros de profundidade e eram impenetráveis para qualquer projétil de artilharia britânica.
Pior do que as defesas alemãs foi a inépcia do comando. Em alguns setores, nem mesmo o arame farpado que separava os ingleses dos alemães foi destruído e isso significava a morte para qualquer soldado que tentasse atacar o oponente. Dos 100 mil ingleses que subiram o topo de suas trincheiras para avançar contra o inimigo, 19.240 morreram e outros 38.230 ficaram feridos ou desaparecidos no primeiro dia da ofensiva.
Os ingleses insistiram nos ataques nos meses seguintes. E lançaram mão de uma grande inovação na história das guerras. Em Flers, no dia 15 de setembro, eles levaram 32 Mark I para a frente de batalha. Eram monstrengos que se deslocavam lentamente e carregavam dois canhões de 57 mm e quatro metralhadoras. Eles surpreenderam os alemães, mas ainda levaria algum tempo até que esse invento se tornasse decisivo nos campos de batalha.
Depois disso, a chuva se encarregou de deixar o terreno do Somme intransitável. Até que em 18 de novembro as operações na região foram suspensas. Um balanço de perdas é difícil de se fazer. Hew Strachan, outro notável historiador inglês da 1.ª Guerra, calcula em 650 mil as baixas alemãs – incluindo aí feridos leves – e 614 mil dos aliados, das quais 420 mil foram britânicas. Tudo isso para a conquista de poucos quilômetros de terra e pelo sonho de abrir uma brecha na linha inimiga e, assim, pôr um fim à guerra. / M.G.
O poeta Guilhaume Apollinaire foi um dos escritores que combateram na 1.ª Guerra Mundial. Engajou-se na artilharia e foi ferido gravemente em combate. Calligrammes, sua principal obra, tem como subtítulo "poemas da paz e da guerra" (Apollinaire, Oeuvres poétiques, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade). As imagens da guerra e de suas misérias estão presentes em diversos poemas de Apollinaire, como neste, Cota 146, o terceiro dos Poèmes à Madeleine.
Gregory Rasputin era um monge que acreditava que podia resolver problemas das mulheres com casamentos conturbados mantendo com elas relações sexuais. Suas crenças e escândalos pareciam pôr em risco a segurança do próprio estado russo ainda mais quando sua influência sobre a czarina Alexandra o permitia fazer e desfazer ministros. A mulher de Nicolau II acreditava que Deus enviara o monge, pois só ele parecia cessar os sofrimentos do herdeiro do trono, seu filho Alexei, que era hemofílico.
Rasputin era contra a guerra e tentou fazê-la parar ou limitar seus efeitos, mesmo durante as batalhas vitoriosas. O místico se tornara um estorvo para nobres e militares, entre eles Aleksei Brussilov, o mais competente entre os generais russos da 1.ª Guerra. Em 4 de julho de 1916, apoiado por quase 2 mil canhões, ele lançou a ofensiva que levaria seu nome na região da Galícia (atual Polônia). Tinha 200 mil homens para lutar contra 150 mil austro-húngaros. Em pouco tempo, Brussilov abriu um brecha nas defesas inimigas e fez mais de 100 mil prisioneiros. Alemães e austríacos tiveram de trazer tropas da França e da Itália para detê-lo, mas suas vitórias continuaram em agosto e setembro. Os combates haviam provocado quase 2 milhões de baixas nos dois lados quando o monge aconselhou a czarina a pedir a Nicolau II que acabasse com a ofensiva, o que foi feito.
A decisão fez de Brussilov um conspirador. Ele se juntou ao grupo de civis e militares que pretendiam prender a czarina, depor o czar e entregar o poder ao seu primo, o grão-duque Nicolau Nicolaievitch. Depois da Revolução de Fevereiro, que deporia a monarquia em 1917, Brussilov comandou os exércitos russos até agosto, quando foi substituído após o fracasso da ofensiva lançada pelo governo provisório de Alexander Kerensky. No fim de sua vida, Brussilov viveria aposentado em Moscou e apoiaria o esforço de guerra soviético em 1920 no conflito com os poloneses. Morreu em 1924. / M.G.
Winston Churchill dizia que havia um único homem na Inglaterra que podia perder a guerra em uma única tarde. Esse homem era John Jellicoe. Desde 1588, nenhum almirante britânico havia tido sob seu comando toda a esquadra do país. E, se ela fosse derrotada pela frota de alto-mar alemã, o reino ficaria indefeso. Para o escritor Max Hastings, Churchill exagerava. Mesmo que Jellicoe sofresse pesadas baixas, faltaria aos alemães meios de impor um bloqueio ao Reino Unido, única forma de esmagar a Grã-Bretanha.
A guerra no mar começara em agosto. No Pacífico, o almirante alemão Maximilian von Spee levou seu esquadrão da China ao Chile, onde afundou na Batalha de Coronel, em 1.º de novembro, os cruzadores britânicos mandados para interceptá-lo. Foi a pior derrota inglesa nos mares durante a guerra. Para enfrentar Spee, os britânicos mandaram dois cruzadores de batalha e cinco cruzadores leves. O encontro ocorreu em dezembro diante de Port Stanley, nas Ilhas Malvinas. Três navios alemães foram afundados pelos ingleses e 2,2 mil marinheiros morreram. Pouco antes, os alemães haviam perdido seu cruzador Emden nas Ilhas Coco.
Depois disso, só em duas oportunidades durante o conflito a guerra no mar envolveria os encouraçados das grandes frotas. A primeira foi em Dogger Bank, quando os alemães perderam a maior oportunidade estratégica durante a guerra de enfrentar com todas as suas forças uma parte reduzida da esquadra inglesa. A segunda vez foi em Jutlândia, a grande batalha naval da guerra. Jutlândia foi um desses momentos em que o dito de Churchill poderia ter se transformado em verdade. As duas grandes esquadras se enfrentaram no Mar do Norte entre os dias 31 de maio e 1.º de junho. Vinte e cinco navios foram a pique, matando 8,5 mil marinheiros. Depois disso, a frota alemã não mais deixou seus portos.
A guerra no mar continuaria até 1918. Mas a Alemanha apostaria unicamente em seus submarinos para dobrar a Grã-Bretanha e acabar com o bloqueio inglês, que a partir de 1917 começou a sufocar a economia alemã. O uso indiscriminado da guerra submarina atingiria navios de países neutros, como os Estados Unidos e o Brasil, que declararia guerra à Alemanha em outubro de 1917. Tudo isso por nada, pois, no fim, os submarinos se mostrariam incapazes de atingir decisivamente a Inglaterra e os seus aliados. / M.G.O capitão americano Eddie Rickenbacker decolou em seu avião para abater balões inimigos. Amanhecia e não havia previsão de que aviões inimigos estivessem no ar até que um caça alemão apareceu diante do avião Spad do capitão. Eles sobrevoavam a região entre o Rio Meuse e a Floresta da Argonne. O caça alemão começou a atirar e Rickenbacker respondeu. Ambos foram atingidos. O inimigo caiu entre as trincheiras americana e alemã, tornando-se um dos 26 aparelhos abatidos pelo piloto americano na guerra.
Com o motor avariado, o capitão pousou em um campo em Verdun. Foi quando os mecânicos examinaram a aeronave. Havia 27 perfurações em seu avião. Uma delas entrara pelo lado direito do para-brisa. Quando era criança em Omaha, no Nebraska, no Meio-Oeste americano, o capitão Rickenbacker sofreu um pequeno acidente. Uma cinza quente caiu em seu olho direito, deixando um ponto negro em sua pupila. O problema não impediu que ele se tornasse uma dos principais ases da aviação na 1.ª Guerra Mundial. Mas Rickenbacker sempre teve medo de que o pequeno ponto negro o impedisse de ver a aproximação de um avião inimigo. Por isso, ele mirava com o olho esquerdo, o que o fazia se inclinar para esse lado no cockpit de seu avião. Foi o que o salvou naquele dia. A bala passou a uma polegada de sua cabeça.
Poucos dos maiores ases da guerra sobreviveram ao conflito. O alemão Manfred Richthofen, o Barão Vermelho, morreu em 21 de abril de 1918 depois de derrubar 80 inimigos. O major inglês Edward Mannock morreu no dia 16 de julho de 1918 após abater 73 inimigos. O italiano Francesco Barraca fora abatido dias antes, em 19 de junho, depois de colecionar 34 vitórias contra os inimigos. Em 11 de setembro de 1917, foi a vez de o capitão francês Georges Guynemer ser morto. Ele havia vencido 53 combates e sobrevivido a sete pousos de emergência após ser atingido por inimigos.
A 1.ª Guerra Mundial viu o avião se transformar em uma arma letal. Além dos combates entre pilotos, eles também foram usados para metralhar e bombardear tropas e cidades. Era o começo de uma era que tornaria o domínio dos céus uma das condições para a vitória na guerra moderna. / M.G.
Um exilado russo que vivia na Suíça escreveu em setembro de 1914: “A transformação da atual guerra imperialista em guerra civil é a única palavra de ordem proletária justa”. Nos anos que se seguiram, o grupo clandestino que ele – Vladimir Ilitch Lenin – comandava se tornaria a mais poderosa força política de seu país. Sob a promessa de paz, pão e terra para o povo, os bolcheviques acabaram com o conflito com a Alemanha. Retiraram o império do czar da conflagração mundial, mas o país mergulharia até 1921 em uma guerra civil tão mortífera quanto a primeira.
No começo de 1917, dois anos e meio de guerra, com suas doenças, mortes, destruição e fome, haviam colocado a Rússia novamente à beira da revolução, como em 1905, quando o país perdera o conflito para o Japão. Em janeiro, um agente secreto da polícia do czar escreveu: “Crianças estão emaciando. A revolução – se isso ocorrer – será espontânea, semelhante a um motim contra a fome.” Em 22 de janeiro, sua previsão se cumpriu. Cento e cinquenta mil trabalhadores marcharam por Petrogrado e dezenas de milhares fizeram o mesmo em outros cidades russas. Alguns carregavam cartazes: “Abaixo a guerra” e “Abaixo a autocracia”. Em 8 de março (calendário ocidental), mulheres da indústria têxtil entraram em greve. Em dois dias, 200 mil trabalhadores estavam parados.
Nas ruas, o embaixador francês, Maurice Paléologue, os ouvia cantar a Marselhesa. Fora da cidade, o czar ordenou que a guarnição de Petrogrado restabelecesse a ordem. Mas, no dia 11, os soldados começaram a se amotinar. Na tarde seguinte, mais de 20 mil deles estavam nas ruas. Impedido de voltar a Petrogrado, o czar parou no quartel do general Nicolai Ruszkiy. Ele e o chefe do estado-maior, general Mikhail Alekseyev, aconselharam-no a abdicar. Entre a lealdade ao soberano ou à nação, disseram, o exército escolheria a segunda. E assim foi. Nicolau II renunciou em favor de seu irmão mais novo, Miguel, que por sua vez renunciou um dia depois e convocou a eleição de uma Assembleia Constituinte. Um governo provisório sob o comando do príncipe Georg Lvov assumiu o poder. Acabavam assim três séculos de domínio dos Romanov.
Os aliados tinham tudo planejado. Os ingleses atacariam da direção norte, no Artois, para o oeste enquanto os franceses avançariam do sul, no Chemin des Dames, em direção ao norte. O movimento criaria duas grandes pinças para cercar os alemães na região do Rio Somme, que formava uma saliência na frente de combate. Mas, dias antes de os ataques começarem, o inimigo se retirou da área que deveria ser envolvida pelo avanço aliado, deixando a ala esquerda da ofensiva francesa na região do Rio Aisne sem oposição.
“A conclusão lógica era adiar toda a operação”, escreveu o historiador inglês Hew Strachan. Mas os aliados decidiram o contrário. E um dos motivos para isso foi salvar a Rússia. “Não esqueçam que o exército francês está fazendo preparativos para uma grande ofensiva, e o exército russo tem o dever de honrar a sua parte nisso”, escreveu o embaixador francês em Petrogrado, Maurice Paléologue, ao governo provisório daquele país em 13 de março.
A retirada alemã diminuíra a frente de combate que seu exército devia cuidar. Durante meses, seus homens haviam escavado uma grande fortificação, conhecida como Linha Hindenburg, e ali se abrigaram à espera dos aliados. Mesmo assim, os ingleses atacaram na região de Arras em uma frente de 24 quilômetros onde o inimigo ainda se mantinha firme. Eles reuniram 2,7 milhões de projéteis de artilharia com espoletas rápidas, que explodiam quando a bomba tocava no solo, aumentando seu impacto e cortando facilmente o arame farpado.
Durante todo o inverno, tropas canadenses foram treinadas para se acostumar com o terreno que deveriam conquistar. Os soldados avançaram logo atrás do fogo da artilharia, que fazia uma barragem logo adiante. Por volta das 13 horas de 9 de abril, eles haviam avançado 3,5 quilômetros e capturado as colinas conhecidas como Vimy Ridge. Os alemães trouxeram reforços. Em pouco tempo, barraram o avanço aliado. Mais um plano para resolver o impasse da guerra de trincheiras começava a atolar. / M.G.
A abdicação do czar na Rússia coincidiu com uma série de crises governamentais na França. O comandante do Exército, Joseph Joffre, havia sido afastado depois de ser considerado culpado pelo fracasso da estratégia em 1916. Seu sucessor como comandante-em-chefe, o general Robert Nivelle, tinha certeza de ter a fórmula para romper as linhas alemãs e ganhar a guerra. Isso significava mais ofensiva.
Para azar dos soldados franceses, seu general escolheu atacar o Chemin des Dames, a região que abrigava as mais fortes defesas alemãs em toda a frente ocidental. Três exércitos se lançaram em direção à catástrofe em 16 de abril. As bombas da artilharia francesa caíram em trincheiras alemãs vazias – de sua posição mais alta, os inimigos puderam antever toda a preparação de Nivelle e se retirar.
O massacre foi quase completo. Quando o fogo dos canhões cessou, a infantaria francesa foi surpreendida pelas metralhadoras alemãs colocadas em pontos estratégicos. Em uma semana, os hospitais que esperavam 10 mil feridos estavam lidando com 96 mil. Uma divisão senegalesa, cujos soldados já sofriam com o congelamento, perdeu 60% de seu efetivo. Os soldados começaram a desobedecer. Cerca de 40 mil deles, concentrados entre as cidades de Soissons e Reims, recusaram-se a voltar para a linha de frente.
Era uma espécie de greve contra o comando incompetente e as péssimas condições de vida nas trincheiras. Eles queriam também mais licenças para visitar suas famílias. Os soldados ainda estavam dispostos a defender a França, mas dentro de suas condições. Diante do desastre militar e da crise no exército, o governo resolveu nomear o general Phillipe Pétain chefe do estado-maior em 29 de abril. Era o começo da queda de Nivelle.
No começo de maio, soldados que se dirigiam a Chateau Thierry contavam a Internacional e gritavam “abaixo a guerra e “longa vida à revolução”. Em 8 de maio, Pétain substituiu Nivelle como comandante-em-chefe do Exército. No dia seguinte, a ofensiva no Chemin des Dames foi suspensa - a França registrava 187 mil mortos ou feridos.
Os motins foram reprimidos com vigor moderado: dos 629 soldados condenados à morte entre maio e outubro, só 43 foram executados. Pétain aumentou as licenças e atendeu a outras reivindicações dos soldados. O mais importante, porém, é que a partir dali o exército francês adotou a defesa como sua estratégia de guerra./ M.G.
O escritor alemão Ernest Jünger lutou na Primeira Guerra durante quatro anos. Foi ferido diversas vezes e fez de suas notas durante a guerra seu mais famoso livro: Tempestades de Aço (Stahlgewittern). Eis um trecho sobre Passchendaele:
Durante um ano, engenheiros ingleses cavaram a 25 metros de profundidade galerias em direção à Crista de Messines, na Bélgica. Vinte e quatro túneis foram abertos. Debaixo dos profundos abrigos das trincheiras do inimigo, os britânicos depositaram 500 mil quilos de explosivos. Com a exaustão de franceses e russos, Londres foi obrigada a fazer sua ofensiva sozinha. A escolha da marinha e do exército foi atacar nos Flandres, no sul da Bélgica, a fim de avançar até as cidades costeiras de Ostend e Zeebrugge, acabando com as bases que os alemães criaram para seus submarinos naquele país.
Eram 3h10 de 7 de junho quando 19 detonações das gigantescas minas criaram “rosas com pétalas carmim ou enormes cogumelos de fogo e terra, que subiram para o céu”, escreveu o historiador John Terraine em The Road to Passchendaele. Dez mil soldados alemães foram soterrados pelas explosões que, de tão fortes, chegaram a ser ouvidas no sul da Inglaterra. O bombardeio que se seguiu foi terrível. Dois mil canhões causaram outras 15 mil baixas no inimigo. Por volta da meia-noite, toda a região leste da crista estava nas mãos dos britânicos. Era o começo da campanha de Passchendaele, a pequena cidade belga que se transformaria em sinônimo de perdas inúteis e da futilidade da guerra.
Para o general William Robertson, chefe do estado-maior imperial, os ingleses estavam voltando aos seus velhos princípios. “Em vez de planejar romper a frente inimiga, nosso objetivo é dobrar o exército inimigo, o que significa lhe infringir perdas mais pesadas do que as que sofreremos.” Com a crista em suas mãos, britânicos, canadenses e australianos avançaram em direção ao Planalto Gheluvelt. Mas, no fim de agosto, pouco avanço havia sido feito. Mesmo assim, a ofensiva seguiu adiante.
A chuva era contínua. A lama era tanta que só se conseguia caminhar por cima de passarelas de madeira. Mulas afundavam até afogar em buracos abertos por explosões que estavam cheios de lama e água. Era impossível para a equipe de um canhão atirar com rapidez e precisão – cada vez que os tiros eram feitos, a bateria afundava no solo.
Em novembro, quando a ofensiva foi suspensa, os ingleses contavam 275 mil baixas – 70 mil delas eram mortos. Ao todo, os aliados perderam cerca de 500 mil homens. Mais do que os 380 mil de seus inimigos. O plano de Robertson fracassara. / M.G.
Em 28 de novembro de 1916, o Federal Reserve americano publicou uma advertência contra a compra de títulos de tesouros estrangeiros. A Grã-Bretanha gastava então US$ 250 milhões por mês nos Estados Unidos – metade para si e a outra para seus aliados. Entre outubro de 1916 e abril de 1917, França e Inglaterra gastaram US$ 1,5 bilhão nos EUA – seis quintos desse total saíram das venda de títulos públicos em Nova York. O investidor médio americano estava totalmente dependente da vitória dos aliados da Entente – aliança militar que reunia Grã-Bretanha, França e Rússia. Uma semana depois da advertência do Fed, US$ 1 bilhão haviam evaporado no mercado de ações.
Alheia a isso, a elite militar alemã não queria mais saber dos argumentos do chanceler Bethmman Hollweg. Exigia que a guerra submarina fosse feita sem restrições. Queria torpedear qualquer navio que se dirigisse à Grã-Bretanha, fosse de país neutro ou não. Afundar tudo o que se aproximasse das ilhas inimigas era a única saída possível contra o bloqueio naval que os ingleses impunham à economia de Berlim. Os comandantes da marinha e do exército colocaram o kaiser Guilherme II contra parede. Obtiveram o sinal verde em 8 de janeiro de 1917 e, em 1.º fevereiro, o país soltou as rédeas dos submarinos.
Dois dias depois, os Estados Unidos decidiram romper relações diplomáticas com a Alemanha. No dia 17 de fevereiro, o embaixador americano na Grã-Bretanha foi informado pelo governo de Londres sobre uma das maiores descobertas feitas durante a guerra pela espionagem britânica. Os ingleses haviam decifrado os códigos alemães e conseguiam interceptar suas comunicações. Em reação à decisão americana, o chanceler alemão, Arthur Zimmermann, teve outra de suas grandes ideias.
Ele se lembrou da rivalidade entre mexicanos e americanos - em 1916, os Estados Unidos mandaram uma expedição ao México para lutar contra os rebeldes liderados por Pancho Villa. Decidiu, por meio do embaixador alemão em Washington, incentivá-los a invadir o Texas e entrar na guerra ao lado da Alemanha.
Um dia antes, o tesouro inglês tinha em sua conta um rombo de US$ 358 milhões nos EUA e gastava US$ 75 milhões por semana. O telegrama de Zimmermann foi publicado pelo presidente americano Woodrow Wilson. Em 2 de abril, ele discursou para a nação. Os Estados Unidos entravam na guerra. A economia dos aliados e muitos especuladores americanos foram salvos da bancarrota. / M.G.
Angelo Giuseppe Roncalli, o futuro São João XXIII, fez o serviço militar em 1902 e era sargento quando foi convocado para a guerra. A lei italiana não isentava padres e seminaristas: como os outros cidadãos, eles eram obrigados a combater na linha de frente. Era essa a expectativa de Roncalli, como ele escreveu em 23 de maio de 1915 em Il Giornale dell’Anima, diário no qual registrou as reflexões espirituais e os principais acontecimentos de sua vida, da adolescência à véspera da morte.
“Amanhã vou partir para o serviço militar na área da saúde. Para onde me mandarão? Talvez para o front inimigo? Voltarei para Bérgamo ou o Senhor me destinou minha última hora no campo de guerra? Nada sei. Só desejo uma coisa: a vontade de Deus em tudo e sempre e a sua glória no sacrifício completo do meu ser. Assim, e só assim, penso me manter à altura de minha vocação e mostrar meu verdadeiro amor pela pátria e pelas almas de meus irmãos”, escreveu no diário.
O futuro santo não foi para o front. Por indicação de um ex-aluno, acabou designado para um hospital militar de Bérgamo, aonde chegavam centenas de soldados feridos na luta contra os austríacos no norte da Itália. Partiu de volta à cidade onde trabalhava como professor de seminário no dia seguinte à sua designação para servir no hospital militar. “Por volta do meio-dia, acompanhando 25 homens como se fosse um general no comando do exército da Itália, eu partia da estação de Milão para Bérgamo, onde me incorporei à enfermaria presidiária e imediatamente o capitão Volpi anunciou que eu fora destinado ao hospital militar do seminário.”
Roncalli considerava a guerra um mal terrível, mas tratava com amor e dedicação os ex-combatentes que chegavam feridos da linha de frente, assim como se comovia com o sofrimento de suas famílias. O amor da pátria, para ele, vinha em primeiro lugar. Desejava a paz, mas achava que, “se a pátria chama e impõe sacrifícios, esta é a voz de Deus”. Cumpria seu dever ao lado de soldados que, conforme observou, “encolhem os ombros, riem, dizem besteiras ou amaldiçoam” quando se fala de pátria.
“Os homens que nos governaram e nos governam não merecem os nossos sacrifícios, ma a pátria hoje em perigo os merece”, escreveu em 20 de dezembro de 1917 a seu irmão Giuseppe, soldado no front. Desde o ano anterior, padre Angelo Roncalli era capelão militar e tinha o posto de tenente. Dava assistência espiritual aos feridos, administrando os sacramentos e conversando com cada um, inclusive os não católicos. Além dos combatentes, chegavam também ao hospital centenas de prisioneiros italianos repatriados pelas forças austro-alemãs, por serem portadores de moléstias graves.
O tenente-capelão Roncalli deu baixa no dia 10 de dezembro de 1918, após a assinatura do armistício, com a derrota de Alemanha, Áustria e seus aliados. Destinou então à Casa do Estudante, que fundou em Bérgamo, os soldos recebidos por quase quatro anos de engajamento no Exército. Até depois de ter sido eleito papa, São João XXIII falava com carinho dos soldados e da disciplina da vida na caserna, apesar de seu horror à guerra. / JOSÉ MARIA MAYRINK
A 11.ª Batalha do Rio Isonzo em agosto causou 166 mil baixas para os italianos. Desde que a guerra começara, seu comandante, o general Luigi Cadorna, planejava atingir o Porto de Trieste, no Adriático. Sob domínio austro-húngaro, a maioria da população tinha origem italiana. Dois anos depois, os homens de Cadorna haviam avançado apenas um terço do caminho – só em 10 de agosto de 1916, eles haviam capturado a cidade de Gorizia.
Ao mesmo tempo em que avançavam palmo a palmo, o número de deserções crescia – passara de 2.137 em abril de 1917 para 5.471 em agosto. Duas brigadas se amotinaram. Até o implacável Cadorna – 750 soldados italianos foram fuzilados durante a guerra, o maior número entre todos os exércitos em conflito – reconhecia que seus homens precisavam de repouso.
Faltou combinar com os alemães e os austríacos. No dia 24 de outubro, depois de um breve bombardeio, eles avançaram na região do Alto Isonzo. "Quanto mais longe penetrávamos em terreno hostil, menos preparadas estavam as guarnições para a nossa chegada e mais fácil era a luta", escreveu o então tenente Erwin Rommel, que mais tarde seria o mais famoso marechal alemão da 2.ª Guerra Mundial. Em pouco tempo, seguiu-se uma enorme debandada italiana. Ernest Hemingway a retratou no livro Adeus às Armas.
Soldados atiraram em oficiais que tentavam impedi-los de fugir ou se render. Em semanas, o exército italiano perdeu quase 700 mil homens, dos quais 40 mil foram mortos e 280 mil capturados pelo inimigo. As deserções atingiram 350 mil. Greves gigantescas estouraram em Milão e em Turim. Uma demonstração antiguerra na primeira cidade foi reprimida à bala, deixando 41 mortos e 200 feridos. Foi preciso reforço inglês e francês para impedir a derrota total. Cadorna foi destituído e substituído por Armando Diaz. Mais folgas, melhores rações, tratamento menos severo e, principalmente, o fim das ofensivas pacificaram o exército que aguentou em junho de 1918 a ofensiva austríaca no Rio Piave.
Após o fracasso inimigo, os italianos decidiram que era chegada a hora de atacar novamente. Em 24 de outubro, iniciaram a ofensiva do Monte Grappa ao Adriático. No dia 27, eles atravessaram o Piave e os soldados austríacos se recusaram a contra-atacar. No dia seguinte, a Checoslováquia se declarou independente do Império Habsburgo. No dia 29, os croatas e sérvios decidiram se separar de Viena e foram seguidos no dia 31 pelos húngaros. O exército imperial, que perdera mais de 500 mil homens, deixara de existir. No dia 3, os italianos desembarcaram em Triste e no mesmo dia um armistício foi assinado. A guerra chegava ao fim nessa parte da Europa. / M.G.
Os primeiros doentes surgiram no cruzador Bahia. Eram 70 na manhã de 6 de setembro. A última epidemia castatrófica da história, a gripe espanhola, encontrou a frota brasileira em Dacar, no Senegal. "Os doentes caíam ardendo de febre, cobertos de suor emplastrado com moinho de carvão, sem ter nem sequer quem os auxiliasse a tomar banho e mudar de roupa, pois os poucos válidos que lhes poderiam assistir nisso diminuíam de hora em hora, de minuto em minuto. Essa situação era ainda agravada pela falta de toldo diante do sol da Dacar", escreveu o capitão-tenente Orlando Marcondes Machado.
A Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG) era a maior contribuição do Brasil ao esforço de guerra dos aliados. O País entrara no conflito mundial em 3 de novembro de 1917, depois de romper em 11 de abril relações diplomáticas com a Alemanha. O motivo foi o torpedeamento do navio brasileiro Paraná, na costa francesa, efetuado por um submarino alemão. Três tripulantes da embarcação, que levava 94 mil sacas de café, morreram. O café era então o maior produto de exportação do País.
O governo brasileiro decidiu enviar dois cruzadores, quatro contratorpedeiros, um rebocador e um tender de sua esquadra para patrulhar a costa africana entre Dacar, no Senegal, e o Estreito de Gibraltar, no Mediterrâneo. Depois do Bahia, a gripe se espalhou pelos demais navios. A doença chegou ao cruzador Rio Grande do Sul no dia 7 e, na manhã seguinte, já havia derrubado 160 marinheiros. Entre 10 e 20 de setembro, 95% da tripulação estava doente.
A gripe matou 20 milhões de pessoas ao redor do mundo – tanto quanto a guerra em quatro anos. Dos 2 mil marinheiros brasileiros, 156 morreram. No Brasil, a doença matou o presidente eleito, Rodrigues Alves. Para a publicação inglesa The Sphere, "Influenza ou La Gripe podia se tornar entre os ingleses mais mortal do que uma ocupação inimiga ou mais implacável e destrutiva do que os hunos". A frota brasileira, que fora paralisada pela doença, só conseguiu chegar à Europa em 10 de novembro, um dia antes do armistício que pôs fim à guerra. /M.G.
O último remanescente da Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG), formada pela Marinha do Brasil para combater na 1.ª Guerra Mundial, ainda navega. O Laurindo Pitta, rebocador construído na Inglaterra em 1910, foi usado em tarefas de apoio. Desde 1990, faz passeios pela Baía de Guanabara. Com 104 anos, o Laurindo Pitta, um barco com 514 toneladas de deslocamento e 39 metros de comprimento, ganhou há anos motores mais modernos, a óleo diesel. Recebeu equipamentos de salvatagem (botes salva-vidas) e de combate a incêndio, além de radar. O resto é conservado (ou foi reconstruído) como na época da guerra.
“Na década de 90, o Laurindo Pitta estava morto. Foi decidido transformá-lo em navio-museu”, relata o diretor de Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, vice-almirante reformado Armando de Senna Bittencourt.
Além do Laurindo Pitta, a DNOG foi formada pelos cruzadores Bahia e Rio Grande do Sul, pelos contratorpedeiros Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina e pelo navio auxiliar Belmonte. Iniciou viagem em 7 de maio de 1918. Em 25 de novembro, foi atacada e reagiu com cargas de profundidade e tiros de canhão. A Inglaterra atribuiu aos brasileiros o afundamento de um submarino alemão. Teria sido o único feito pela frota do Brasil no conflito. / WILSON TOSTA
O jovem tenente Ernst Jünger saltou na primeira trincheira. Virando-se de costas depois de invadi-la, ele se deparou com um oficial inglês, que trazia a túnica desabotoada, de onde pendia a gravata por meio da qual ele o agarrou e o jogou em um parapeito de sacos de areia. Atrás dele, a cabeça grisalha de um major surgiu e gritou: "Abata esse cachorro". Tenente das Sturmtruppen, as tropas de assalto alemãs, Jünger conta em seu livro Tempestades de Aço o que se seguiu. "Alguém pensaria estar em meio a um naufrágio", escreveu. Os ingleses fugiam por todo lado. "Eu apertava como em um sonho o gatilho de meu revólver, mas fazia tempo que eu não tinha mais balas no tambor. Um homem ao meu lado jogava granadas entre os fugitivos."
Os alemães voltaram a atacar na frente ocidental em 21 de março de 1918. Desde 1916, não faziam isso. A saída da guerra da Rússia e da Romênia permitiu a Berlim transferir tropas para a França e lançar um grande ataque antes que a presença do exército americano na Europa mudasse definitivamente a balança de forças da guerra. Era, portanto, a última chance de vitória de Berlim.
Naquela manhã, Jünger conta que o combate foi liquidado em um minuto. "Os ingleses saltaram fora de suas trincheiras e batalhões inteiros fugiram pelos campos." Transformaram-se em alvo fácil para o inimigo e em pouco tempo os campos se coalharam de corpos. Os soldados alemães haviam avançado após cinco horas de bombardeio, muito pouco para os padrões da guerra. A neblina permitiu que as Sturmtruppen se aproximassem das metralhadoras inglesas sem ser notadas. Das 38.512 baixas inglesas no primeiro dia da ofensiva alemã, 21 mil eram de soldados feitos prisioneiros. Os ataques alemães produziram um avanço que não se via desde 1914 – foram 64 quilômetros em direção ao Rio Somme.
O primeiro ataque, batizado como Michael, terminou em 5 de abril. Quatro dias depois, o general Erich Ludendorff lançou o segundo, chamado Georgette. Dessa vez, o alvo era a área dos Flandres, na Bélgica. Apenas 19 quilômetros foram conquistados. O próximo ataque alemão foi a Operação Blücher, lançada em 21 de maio no Chemin des Dames. Os alemães chegaram a ficar a 90 quilômetros de Paris, que bombardearam com sua artilharia. Mas foram detidos por americanos e senegaleses em Chateau Thierry. Juntos os dois lados perderam aproximadamente 800 mil homens. Pressionado pela fome e pela debacle de seus aliados, a Alemanha de Guilherme II não aguentaria muito tempo mais. / M.G.
Após a queda dos Romanov, uma questão atormentava os aliados: por quanto tempo a Rússia permaneceria na guerra. Seu exército se desfazia com milhares de deserções. A pregação revolucionária seduzira parte da tropa com a perspectiva da paz imediata. Foi então que o desastroso ministro do exterior alemão, Artur Zimmermann, resolveu ter mais uma ideia. Ele convenceu o kaiser Guilherme II a permitir que Lenin deixasse a Suíça, onde estava exilado, e atravessasse a Alemanha em um trem lacrado em direção à Rússia. Sua aposta era que a ajuda ao revolucionário marxista contribuiria para a retirada dos russos da guerra.
A Revolução de Fevereiro colocara no poder uma série de governos provisórios liderados primeiro pelos moderados do partido Kadete e, depois, pelo trabalhista Alexander Kerensky. Até que em 7 de novembro (25 de outubro pelo calendário russo) chegou a vez dos bolcheviques. Sob a liderança de Leon Trotsky, organizador do Comitê Militar Revolucionário de Petrogrado, e orientados por Lenin, os bolcheviques se sublevaram. Tomaram a Fortaleza de Pedro e Paulo e o Palácio de Inverno, derrubando o último governo Kerenky.
A aposta de Zimmermann parecia correta. Em pouco tempo, os bolcheviques retiraram a Rússia da guerra por meio do Tratado de Brest-Litovsky. A chegada ao poder dos marxistas em Moscou se voltaria, no entanto, como um bumerangue contra as potências centrais. Berlim seria convulsionada no fim da guerra por uma revolução que derrubaria o kaiser e inauguraria a República de Weimar, sob o comando do social-democrata Friedrich Ebert. A Áustria-Hungria seria dilacerada por movimentos nacionalistas e Viena assistiria a uma revolta comunista, logo sufocada. Em 21 de março de 1919, o poder na Hungria cairia nas mãos dos comunistas liderados por Bela Kun. Durante 133 dias, uma República Soviética comandou o país até que tropas romenas o invadiram e depuseram o governo. Estava aberta a era da revolução mundial.
Em março de 1918, o ex-exilado russo escreveu: “Esta violência constituirá um período histórico-universal, toda uma era de guerras com o caráter mais diverso – guerras imperialistas, guerras civis dentro de países, entrelaçamento de uma e outras, guerras nacionais, de libertação das nacionalidades […]. Esta época – de gigantescas bancarrotas, de violentas soluções bélicas em massa, de crise – começou”. Por 74 anos, o regime que Lenin inaugurara com a ajuda do conservador alemão Zimmermann se manteria na Rússia e difundiria o espectro da revolução pelo mundo. /M.G.
A vitória aliada começou no Bosque de Belleau, no Marne. Os franceses recuavam diante do ataque alemão e cruzaram com os recém-chegados marines. “É melhor vocês recuarem”, disse um oficial francês ao capitão Lloyd Willlians. “Recuar? Raios, nós acabamos de chegar”. O contra-ataque dos fuzileiros navais americanos entrou para a história da corporação. Era 4 de junho de 1918. Os americanos começavam a chegar em grande número à frente de combate na Europa.
Pouco mais de um mês depois, o general Charles Mangin, conhecido como Açougueiro, lançou seu exército – o 10.º francês – adiante em Villers-Cotterets. O bombardeio começou às 4h35. A infantaria avançou atrás da barragem da artilharia acompanhada por centenas de tanques leves Renault FT17. Armados com um canhão de calibre 37 mm e com uma metralhadora, os tanques levavam uma guarnição de dois homens e transpunham rampas de até 45° de inclinação e valas de até 1,8 metro de largura. A uma velocidade de 7 quilômetros por hora, eles ajudaram a levar franceses e americanos de volta até Soissoons, no Vale do Aisne.
Os aliados começaram a expulsar o exército de Berlim da França. Exaustos, os alemães viram o total de seus homens cair de 5,1 milhões para 4,2 milhões depois da ofensiva da primavera. Eles haviam produzido pouquíssimos tanques – o gigante A7V. Dependiam principalmente dos veículos ingleses e franceses capturados. Seus inimigos reuniram perto de Amiens 530 tanques ingleses e 70 franceses para atacar no dia 8 de agosto ao lado de soldados canadenses e australianos. O sucesso foi gigantesco. Em quatro dias, os alemães tiveram de recuar até a região que ocupavam no começo do ano. “Foi o dia negro do exército alemão”, disse o general Erich Ludendorff.
Depois disso, uma sucessão de ofensivas aliadas levou os alemães a procurar a paz em outubro. Derrotado, o exército germânico recuou para suas fronteiras. No dia 26 de outubro, Ludendorff, que rejeitava a negociação de paz, foi forçado a renunciar. A revolução batia às portas de Berlim. O kaiser foi obrigado a renunciar. O armistício entre os alemães e os aliados foi assinado em um vagão ferroviário em 11 de novembro, em Compiègne, na França.
Mais de 600 cemitérios da 1.ª Guerra existem hoje na França, que os tornou sepulturas perpétuas e contratou mais de mil jardineiros para fazer sua manutenção. Os britânicos perderam quase 1 milhão de soldados na guerra. Os franceses tiveram 1,7 milhão de mortos, os austro-húngaros 1,5 milhão de militares, os alemães 2 milhões, os russos 1,7 milhão, os italianos 460 mil e também se contam aos milhares as mortes de turcos, de americanos e de outras nações envolvidas na conflagração.
E de quem foi a culpa por essa catástrofe? “Se quisermos apontar o dedo desde o século 21, nós podemos acusar esses que levaram a Europa em direção à guerra de duas coisas. Primeiro, pela falta de imaginação em não perceber o quão destrutivo um conflito assim poderia ser e segundo por falta de coragem para resistir àqueles que diziam não haver outra opção se não a guerra. Sempre há o que escolher”, escreveu a historiadora canadense Margaret Macmillan em The war that ended peace - The road to 1914 (há uma edição portuguesa: A guerra que acabou com a paz).
A guerra iniciara aquilo que o historiador inglês Eric Hobsbawn chamou de “era do massacre”, aberta por um conflito travado em “torno de metas ilimitadas”. Ela ia abrir, na opinião dele, uma única era de conflito que só terminaria em 1945, na 2.ª Guerra. “Retrospectivamente, os 31 anos desde o assassinato do arquiduque austríaco em Sarajevo até a rendição incondicional do Japão devem parecer uma era de devastação comparável à Guerra dos 30 Anos no século 17 na história alemã”, escreveu Hobsbawn.
A 1.ª Guerra não resolveria nada, não acabaria com as guerras ou garantiria a autodeterminação dos povos. Mas, ao acabar com impérios, semear revolução e guerras e reordenar os Bálcãs e o Oriente Médio, ela lançaria as sementes de conflitos que sacodem o mundo até hoje. “Em resumo”, escreveu Strachan, “ela não mudou apenas a Europa, mas o mundo no século 20; ela certamente não foi uma guerra sem significado ou objetivos.” /M.G