A Polícia Militar de São Paulo ainda não identificou nenhum agente que cometeu abusos durante a repressão ao protesto de 13 de junho de 2013, data em que a violência policial mudou os rumos das manifestações no País. A alegação é que não tem sido possível reconhecer policiais filmados e fotografados durante agressões à população. Assim, até hoje nenhum integrante da corporação foi indiciado pelos excessos.
A Corregedoria da PM, responsável pelo Inquérito Policial Militar (IPM) que investiga a o ocorrido naquela quinta-feira, não falou com o Estado sobre o assunto. A Secretaria de Estado da Segurança Pública informou, em nota, que "as apurações esbarram na dificuldade de identificar eventuais policiais que tenham cometido abusos ou crimes, uma vez que muitas pessoas arroladas como testemunhas pela Corregedoria não compareceram para depor e apontar os PMs" e ressaltou que o inquérito ainda está em andamento.
Ao menos 105 pessoas ficaram feridas naquela noite, segundo levantamento feito nos hospitais, na época, pelo Movimento Passe Livre – organização que convocava as manifestações. Aquele era o quarto ato do grupo, com 15 mil pessoas. Os abusos começaram depois de a PM impedir a manifestação do Passe Livre de chegar à Avenida Paulista. A marcha, com cerca de 15 mil pessoas, foi atacada na Rua da Consolação, na esquina com a Rua Maria Antônia. Os confrontos, depois, se espalharam pelo centro.
Apurações. O inquérito da Corregedoria está sendo acompanhado pela promotora de Justiça Militar Cristiane Helena Leão Pariz, do Ministério Público Estadual, que dá uma versão diferente sobre a falta de testemunhas.
"Foram ouvidas diversas testemunhas, muitas vítimas em geral e, a partir das imagens gravadas, não se consegue identificação dos policiais que atuaram. Nós temos o nome de centenas de policiais que atuaram na manifestação", afirma.
As imagens anexadas ao processo, cujo número a promotora não soube precisar ("temos muitas", disse), mostram situações que, segundo ela, caracterizam abusos que deveriam resultar em punições aos policiais.
"Vou ser bem sincera: vi os autos, vi fotos, vi filmagens, a gente identifica algumas situações e fala 'não, essa (abordagem) foi extrapolada, aquela vítima não estava se excedendo", diz a promotora.
Segundo Cristiane, em processos desse tipo as condutas eventualmente violentas podem não ser caracterizadas como crimes. Isso ocorre quando o policial atua no "estrito cumprimento do dever legal" ou em "legítima defesa". Se a atuação do PM não é dentro desses limites, ele deveria ser punido. "Eu vi cenas (nas imagens do inquérito) que acho que sim, especificamente, eu poderia falar: aqui houve um excesso", disse .
Arquivamento. Se nenhum policial for identificado, a tendência é que os crimes relatados sejam arquivados. Um advogado ouvido pelo Estado afirmou que ao menos uma investigação sobre o tema, de outra data, já está arquivada, sem acusações contra nenhum PM.
O Ministério Público informa, entretanto, que não é possível fazer levantamento de quantos processos existem com os seis promotores da área. O problema é que nem todos os processos são sobre uma data, como no caso do IPM acompanhado pela promotora Cristiane. Alguns deles estão descritos apenas como "lesão corporal" ou "abuso de poder", o que inviabiliza uma busca.
Comando. Mesmo se nenhum soldado for punido, o Ministério Público ainda vai apurar, no mesmo IPM, a conduta dos comandantes da operação daquela noite. Será avaliado se houve alguma falha administrativa cometida pelos comandantes da operação.
Apontado como chefe da ação ocorrida naquela noite, o coronel Ben Hur Junqueira Neto não é mais o comandante do 7.º Batalhão da PM. Segundo colegas, ele entrou em processo de aposentadoria. O comando da PM não permitiu que ele fosse entrevistado. O mesmo ocorreu com o comandante-geral da PM, Benedito Meira.
Se até hoje nenhum dos excessos policiais ocorridos na noite de 13 de junho foram punidos, a Polícia Civil também não conseguiu denunciar nenhum dos mascarados que promoveram depredações na cidade, os chamados black blocs, no inquérito aberto especificamente para investigá-los.
A análise aberta pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) ainda está em andamento. O processo dos black blocs – adeptos da tática de protestar por meio da depredação de bens públicos e privados e de resistir ao avanço policial – se transformou em um cadastro com o nome de 300 pessoas que participam de manifestações.
A lista tem integrantes do Movimento Passe Livre, de movimentos sociais das áreas de saúde e educação, além de manifestantes que, atualmente, participam de atos contra a Copa.
O delegado Carlos Castiglioni, da Delegacia de Investigações Gerais (DIG), um dos responsáveis pelo inquérito, afirma que ainda não acusou à Justiça nenhum dos averiguados. "Por enquanto, o que temos feito é, nos dias das manifestações, convocar as pessoas para estarem na delegacia", afirma.
A tática é parecida com a estratégia já adotada pelo Ministério Público (e também em outros países) com integrantes violentos de torcidas organizadas de futebol: em dias de jogos, eles são convocados a comparecer à Justiça, para evitar que se envolvam em confusão.
Depois da abertura do processo, o delegado tem usado o artigo 288-A do Código Penal para acusar pessoas presas em flagrante durante protestos. A lei, sancionada em 2012, foi pensada para combater as milícias cariocas. "Inclui patrocinar ou integrar grupos criminosos", explicou o delegado, ao indiciar duas pessoas presas em uma manifestação de abril passado, contra a Copa.
Reação. As pessoas que participam das manifestações, entretanto, não concordam com toda a ação. Na sexta-feira, membros do Passe Livre se acorrentaram, por quase quatro horas, na frente sede da Secretaria de Estado da Segurança Pública, no centro da capital paulista, em um protesto contra a condução das investigações. Não foram recebidos.
"Nesse inquérito, membros de movimentos sociais, manifestantes presos inconstitucionalmente em diferentes manifestações e liberados sem nenhuma acusação, pessoas que não estavam nos protestos, e até alguns pais dessas pessoas receberam intimações 'para prestar esclarecimentos'", disse o grupo, em sua página na internet.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão estuda a realização de uma audiência pública para debater a atuação de policiais e manifestantes durante atos públicos. Mas não há data para o evento.
A ação é uma resposta a uma representação, assinada pela ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado, Luciana Zaffalon, por sete defensores públicos e por representantes de 21 entidades de defesa dos direitos humanos, que relata "prisões para averiguação" ocorridas naquela noite.
A representação, entretanto, pedia muito mais: o documento de 26 páginas relata abusos aferidos pelos defensores públicos e pede que o Ministério Público Federal tome ações para identificar condutas e responsabilizar os envolvidos, dizendo que a cúpula da segurança paulista deveria ser investigada.
O MPF em São Paulo afirma que "os passos" do procedimento aberto por causa da representação não estão definidos.
Em Brasília, o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Rios, relatou uma texto que virou uma resolução da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, que torna ilegal o uso de munição não letal sem que a integridade dos agentes públicos esteja ameaçada – o texto já vinha sendo discutido antes de as manifestações de junho começarem, Relatos. Os defensores públicos paulistanos estiveram na manifestação do dia 13 e filmaram diálogos com oficiais da PM que realizavam as tais prisões para averiguação.
Comando. O relato dos defensores diz que o comandante da operação, coronel Ben Hur Junqueira Neto, afirmou que "a ordem era para os policiais abordarem todos aqueles que tivessem 'cara de manifestante', o que seria constatado por elementos como mochila, idade, trajes ou se portava mochilas". Segundo os defensores, o procedimento é ilegal, uma vez que o Código Processual Penal só autoriza abordagens "em caso de fundada suspeita".
Em outro trecho, eles dizem que o coronel confirmou que faria prisões de pessoas apenas para cadastrá-las nos distritos policiais, ação também considerara ilegal por eles. Os defensores, entretanto, afirmam que a responsabilidade por arbitrariedades não devem ser restritas ao coronel que liderava a ação.
"Tendo-se em conta a estrutura hierárquica e militar da polícia, torna-se imperativa a apuração acerca de qual tenha sido a ordem emitida por autoridades, civis ou militares, hierarquicamente superiores ao comando da operação", afirma o texto. "Caso (as autoridades) tenham emitido ordem ilegal, deverão ser responsabilizadas", pedem os defensores.
Um inquérito no 3º Distrito Policial (Santa Ifigênia), foi aberto, no mês passado, para apurar "abuso de autoridade" na ação da noite do dia 13 de junho. O alvo da investigação seria o coronel da Polícia Militar Ben Hur Junqueira Neto.
Na noite do dia 13, ele se apresentou como "negociador" da polícia, e chegou a afirmar que o comando era de outro militar, mas foi responsabilizado pelo Movimento Passe Livre depois de dar parabéns ao grupo, pelo ato pacífico, antes da a polícia atacar. O processo, no entanto, ainda está em fase de instauração. Nenhuma pessoa, incluindo o coronel, foi ouvida.