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A seca de 1932:
memória de
um campo de
concentração


EM SENADOR POMPEU, RUÍNAS LEMBRAM UM EPISÓDIO POUCO CONHECIDO DA HISTÓRIA DAS SECAS: O CONFINAMENTO DE RETIRANTES EM ACAMPAMENTOS ESPALHADOS PELO INTERIOR

 


Fome. Casarões abandonados em 1923 viraram pontos de distribuição de comida aos flagelados, na seca de 1932

 

Depois do trauma da seca de 1915, o Ceará viveu outra estiagem rigorosa, em 1932, que teve como característica a construção de campos de concentração fora da capital, montados com o objetivo de evitar que os flagelados chegassem em grande número a Fortaleza. Em abril de 1932, foram contabilizados 72.118 retirantes nos acampamentos, instalados em Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús e Buriti, além de 1.800 nos dois campos de concentração de Fortaleza, Alagadiço e Urubu. Muito antes da Segunda Guerra Mundial, em que os campos de concentração confinaram judeus perseguidos pelo regime nazista, no Ceará os aglomerados recebiam famílias que fugiam da sede e da fome.

 

O CEMITÉRIO DOS RETIRANTES E O CAMPO DE CONCENTRAÇÃOClique e assista ao video

 

Como a maior parte dos campos de concentração era formada por acampamentos insalubres, quase nada restou desses  grandes terrenos. A exceção é a cidade de Senador Pompeu, a 250 quilômetros da capital. Lá foram confinadas cerca de 16 mil pessoas. O poder público utilizou as construções que serviram de moradia e escritório para a construção da barragem do rio Patu, projeto de 1919 abandonado em 1923. Os retirantes foram distribuídos nas 500 casas construídas para os operários da barragem. Quando já estavam lotadas, as famílias passaram a montar barracos na região.

 

O casarão que abrigou os engenheiros ingleses responsáveis pela obra da barragem e também funcionava como inspetoria do empreendimento era o ponto de distribuição dos alimentos para os flagelados. Hoje, a construção está em ruínas, mas ainda de pé. As casas foram destruídas. A poucos metros, fica o Cemitério da Barragem do Patu, construído em mutirão por moradores da região, em memória dos mortos de fome e doença no campo de Senador Pompeu. Os corpos inicialmente eram enterrados em valas. Com o passar dos anos, passou-se a acreditar que as almas realizavam milagres e muitas promessas são até hoje cumpridas no cemitério, ponto final da Caminhada da Fome, realizada todo segundo domingo de novembro para lembrar os horrores da seca de 1932.

 

O advogado Valdecy Alves é estudioso da seca na região do sertão central e ativista em defesa da preservação da memória dos campos de concentração. Tentou em vão que o sítio histórico de Senador Pompeu fosse tombado. Agora, defende que a memória e a história sejam preservadas sem dependência dos governos.

 

Mortes. Valdecy pesquisa os campos de concentração:
"não houve câmara de gás, mas morreram de fome e doença"

 

“Esta é a memória do drama da seca de 1932, as pessoas foram presas e impedidas de continuar viagem até Fortaleza. Senador Pompeu era uma cidade fantasma e se transformou em campo de concentração. Não houve câmara de gás como na Segunda Guerra, mas as pessoas morreram de fome e de doença. Ficaram um ano no campo”, diz Valdecy.

 

 

 

A testemunha

 

Aos 94 anos, Carmélia Gomes Pinheiro é uma das poucas testemunhas vivas da seca de 1932 em Senador Pompeu e do campo de concentração, embora amenize os horrores do confinamento. O pai de Carmélia, Antônio Gomes, era um dos quatro vigias do confinamento, encarregado de impedir que os flagelados seguissem viagem para Fortaleza. “Eu nunca soube o que era fome”, diz aliviada dona Carmélia. “Muita gente morreu de fome. Os novos ressistiam, os mais velhos não tinham o que comer, começaram a passar fome. Todo dia morria um anjinho, uma criancinha, de fome de de doença”, recorda. “O povo morria lá, tinha uma barraca, tudo era arrodeado de covas. Bem cedo tinha fila para a comida”, conta. “Em 1933, ainda tinha um bocado de gente lá. Os que sobreviveram foram embora”.

 

 

A família avista
as ruínas do
campo de
concentração

 

Vizinha. Maria Danúbia vive com os filhos em uma casa
que mal fica em pé, a poucos metros das ruínas

 

Maria Danúbia de Souza vivem com seis filhos em uma casa que mal fica em pé, a poucos metros das ruínas do campo de concentração de Senador Pompeu. Questionada sobre a idade dos filhos, responde: “Eles é que sabem”. Também não tem certeza da própria idade e é auxiliada pela filha Francisca Geralda, de dez anos. “A senhora tem 39, vai fazer 40”. Danúbia nunca ouviu falar do confinamento dos flagelados, não conhece a história da cidade. Nunca teve água encanada. “Tem que ir com o jumento no rio buscar água”, conta. Recebe pouco mais de R$ 300 do Bolsa Família e planta milho e feijão, mas este ano não vingaram.

 

Francisco, de 13 anos, um dos filhos de Danúbia, é um menino esperto que conhece o caminho fechado do que um dia foram as 500 casas de operários da barragem e depois moradia dos flagelados. Ouvia com atenção a história contada pelo advogado Valdecy Alves, enquanto levava o grupo para uma caminhada pelo morro. “Não aprendi isso na escola, mas agora aprendi com ele falando”, disse, curioso com tanta informação nova sobre a localidade onde mora.

 

 

Capítulo 4A SECA DE 2015 NO SERTÃO CENTRAL DO CEARÁ