Desafios do clima

Sol, vento e o futuro

Giovana Girardi
Glória (BA), Petrolândia e Tacaratu (PE)

“Eu estranhei o sol, tinha esquecido como era forte”, conta Edivaldo Fernandes da Silva, o “Chaparral”, de 69 anos, diante do solo esturricado do sertão baiano, sobre o momento em que voltou a viver em sua terra natal.

Já faz mais de uma década que ele retornou ao povoado de Seridó, no município de Glória, depois de viver 33 anos em São Paulo, e assim que chegou foi recebido com uma boa chuva que o fez achar que a seca do Nordeste era problema do passado. A secura atual, porém, já persiste há cerca de 4 anos e vira e mexe Edivaldo fica com saudade da terra da garoa.

“São Paulo é bom que sempre chove, né?”, pergunta sem encontrar confirmação da reportagem. Arregala os olhos ao saber que uma seca histórica no Sistema Cantareira ameaçou o abastecimento de paulistanos. Mas desconfia que não há de ser tão ruim quanto à que vive na Bahia.

Era início de novembro, e Silva diz que já era para estar chovendo. Contava com as “trovoadas” para lhe aliviar um pouco o trabalho – encher e carregar galões de água para matar a sede das cabrinhas que cria e que, já há alguns anos, não encontram mais as fontes do recurso na natureza.

Mais cedo, seu irmão e vizinho, Ademar, de 70 anos, fora à prefeitura de Glória pedir socorro. A bomba para tirar água do poço artesiano tinha quebrado e ele ainda se queixava do preço alto do diesel para abastecer o motor. Sem o poço, os dois irmãos passaram a depender mais do caminhão-pipa, que do dia pra noite subiu o preço de R$ 40 para R$ 50.

Ademar ouviu na prefeitura uma solução que nunca tinha lhe ocorrido. Colocar placas solares em cima do poço e, com elas, gerar a energia necessária para movimentar a bomba que puxa a água. Um pequeno empresário local tentava naquele momento convencer o secretário de Infraestrutura de Glória a usar a energia solar em todo o município. Uma saída para minimizar os impactos da falta de chuva. A cidade é uma das mais de 140 da Bahia em situação de emergência por conta da estiagem. Em todo o Nordeste, são cerca de mil.

A seca que atinge a região afeta tanto o abastecimento humano, animal e a irrigação quanto a geração de energia. A Bacia do São Francisco, onde está localizada Glória, serve algumas das maiores hidrelétricas do Brasil, como a de Paulo Afonso, mas atualmente elas produzem menos da metade do que o fazem em condições normais.

Impacto nas emissões. De acordo com a Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), o reservatório de Sobradinho, que fica à montante dos demais e é de onde é liberada a água para eles, tinha na última semana apenas 1,5% do volume útil. A vazão, que em condições normais era de 2.060 m³/s, estava em 900 m³/s, e o governo estudava baixar para 800 m³/s. Com isso, em vez de gerar 6.000 megawatts médios nas usinas de Sobradinho, Itaparica, Complexo de Paulo Afonso e Xingó, estão sendo gerados somente 2.600 MW.

Na tentativa de evitar um colapso no fornecimento de água, o volume baixo dos reservatórios tem sido priorizado para o consumo humano. Para compensar a baixa das hidrelétricas, boa parte da geração de energia que vinha de fontes hidráulicas tem ficado a cargo das termelétricas, a forma que mais emite os gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global. Outra parte vem das eólicas, fonte que tem ganhado força no Nordeste, mas ainda em ritmo lento e aquém do potencial de ventos da região.

É por conta desse acionamento de térmicas que o setor elétrico brasileiro – historicamente um dos mais limpos do mundo (ainda o é, mas a proporção de renováveis na nossa matriz vem caindo) – apresentou, entre 2011 e 2014, um aumento de 171% nas emissões de CO2.

Com essa elevação, aliada a um aumento do consumo de combustíveis fósseis para transporte (diesel e gasolina), todo o setor de energia (não somente o elétrico) está praticamente empatado com o desmatamento como os principais emissores de gases de efeito estufa no País.

Energia responde hoje por 30,7% das emissões, pouco atrás de mudança do uso da terra – jargão técnico para desmatamento –, que contribui com 31,2%. Os dados, válidos para 2014, são da última edição do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg). Essa alavancada da energia nos últimos anos, deixando para trás a agropecuária (atualmente responsável por 27% das emissões), tem levantado um alerta de que o maior desafio climático para o Brasil nos próximos anos será controlar as emissões do setor.

“Se zerarmos o desmatamento em 2030 (como é a meta do governo para a parcela ilegal da perda de florestas) e fizermos a lição de casa na pecuária, poderemos chegar a 2030 com a energia representando mais de 50% da emissões”, estima o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador do Seeg.

Alternativa à falta d’água. Na pequena escala do povoado dos irmãos Ademar e Edivaldo, mas também para grandes empreendimentos, o aproveitamento não só do sol, mas também do vento, para gerar energia tem feito cada vez mais sentido no seco Nordeste. Considerando que outros cantos do Brasil também podem ter uma redução das chuvas – como a região Norte, onde fica a usina de Belo Monte e estão previstas as hidrelétricas do Tapajós –, investir nas energias renováveis faz sentido para todo o País.

A lógica é simples. “Por mais que sejam fontes intermitentes (que não produzem o tempo todo: se não tem vento ou sol, não tem energia), quando usinas de eólica e solar estão a pleno vapor, e se houver um grande número delas pelo País, com uma melhor rede de linhas de distribuição nacional, elas podem poupar a água que está no reservatório e diminuir a necessidade de ligar as térmicas”, explica Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energia do Greenpeace.

E, ao menos para o Nordeste, essa relação de complementaridade é muito direta. Quando chove, não tem muito vento, mas é na seca que tende a ventar mais e, claro, o sol está mais forte. Além disso, se o sol só se faz presente durante o dia, é à noite, na região, que os ventos são mais intensos.

Foi nesse contexto que foi inaugurado, em setembro, o primeiro parque híbrido do Brasil, a 74 km de Glória, no município de Tacaratu (PE), unindo num mesmo espaço a geração de energia a partir do vento e do sol. A planta, da Enel Green Power, tem 34 aerogeradores, com capacidade instalada de 80 megawatts (MW), e 35.650 placas solares, com capacidade de 11 MW. Isso significa que são gerados 340 gigawatts/hora/ano, o suficiente para fornecer energia para 170 mil residências.

Douglas Meneguel, engenheiro eletricista da Enel, explica que a planta de eólica estava sendo instalada no ano passado quando houve um leilão estadual para a contração de energia solar. A empresa percebeu que poderia ser um bom negócio aproveitar que a estrutura de conexão com o Sistema Interligado Nacional construída por eles ainda tinha espaço para a injeção de mais energia, para produzi-la com uma nova fonte.

As condições do Nordeste facilitam a integração: “Boa irradiação e pouca chuva são ideais para a solar, e os ventos aqui são constantes para a eólica”, afirma Meneguel.

“A combinação de energia eólica e solar reduz os efeitos da mudança das condições meteorológicas e assegura uma produção de energia mais estável”, complementa Luigi Parisi, responsável pela Enel Green Power no Brasil e Uruguai.

Apesar das cifras serem pequenas, quando comparadas com a de uma hidrelétrica, esta produção de energia solar de Tacaratu é hoje a maior do Brasil. O governo federal, no entanto, tem feitos vários outros leilões para solar, aumentando essa fatia. A própria Enel pretende quebrar esse recorde, com a instalação até o final do ano que vem que uma usina em Taboca do Brejo Velho (BA) com capacidade instalada de 254 MW.

Igreja à vista. A crise hídrica no Nordeste e a expansão de ofertas de eólica e solar se encaram quase de frente na região de Tacaratu. Do alto do morro onde ficam instalados os aerogeradores da Enel, é possível ver um dos reservatórios do São Francisco, o de Itaparica, também em seu nível mais baixo da história - cerca de 10% do volume útil. Há um ano estava em 20%.

O reservatório foi criado em 1988 alagando a antiga cidade de Petrolândia - uma nova, com o mesmo nome foi criada ao lado. Desde o ano passado, quando a seca começou a se intensificar, algumas construções que foram inundadas começaram a ressurgir. A igreja do Sagrado Coração de Jesus virou o símbolo da estiagem. Ela nunca foi completamente submersa - abóbada e telhado permaneciam de fora -, mas já há mais de um ano que a estrutura está quase toda exposta.

De barco é possível entrar no templo, que mantém, a uns 2,5 metros de altura a partir do nível da água, as marcas de onde ela chegava antigamente. Quem conta é o barqueiro e pescador Edilson Valdomiro, de 53 anos, que a vida inteira morou na região e viu sua cidade submergir. “A última vez que vi esse rio cheio faz uns cinco anos e nunca tinha visto tão baixo assim. Os peixes diminuíram muito. Pelo menos virou atração turística. Sempre vem noiva querendo fazer foto antes do casamento. Elas acham que a igrejinha dá sorte. Outro dia vieram dois velhinhos que tinham se casado aqui. Eles choraram abraçados quando viram o lugar.”

No caminho até lá, restos de árvores mortas, que tinham sido alagadas no passado, reaparecem como esqueletos brancos de dentro do rio. Dali, é possível ver ao alto as turbinas de eólica. Valdomiro nunca parou muito para pensar sobre elas, mas reflete, meio de surpresa. “Melhor ter eólico do que alagar (para criar os reservatórios), né? Aqui venta muito. É mais difícil não ter vento do que ter a seca.”

Mas enquanto a oferta de renováveis não é alta o bastante, a Chesf tem recorrido às termoelétricas para garantir o abastecimento de energia. José Ailton de Lima diretor de operações da empresa, explica que com a redução da geração das hidrelétricas de 6.000 MW médios para 2.600 MW, as térmicas hoje estão fornecendo 3.600 MW e as eólicas, 2.600 MW.

Isso encareceu o preço da energia. De volta à Glória, Edite Nogueira de Araújo, que mora no povoado de Ponta da Serra, conta que há um ano sua conta de luz dava uns R$ 4. Hoje são R$ 14. “E bastou bater um vento, passar uma nuvem, cair a neblina, que já falta luz”, diz. Seu primo Cícero Coelho de Araújo, presidente da associação do povoado, virou defensor de colocar telhado solar em todas as casas não só do local, como da cidade de Glória. “Estamos tentando financiamento no Banco do Nordeste. Depois serão 20 anos de sossego. Se a pessoa paga hoje R$ 18 de luz, se colocar a placa solar vai pagar uns R$ 5”, calcula esperançoso.

Luz para o telhado de todos. O plano de Araújo se encaixa no sistema conhecido como geração distribuída, no qual população, empresas e comércios geram sua própria energia a partir, por exemplo, de um telhado com placas solares. O excedente pode ser jogado na rede, e o valor, abatido da conta de luz.

Nos cálculos de Baitelo, do Greenpeace, o aumento da demanda por energia que vai ocorrer com o crescimento da população e a eventual recuperação da economia até 2050 poderia ser atendida só com a geração distribuída de solar.

Nesse cenário, a questão climática passa a ser não só um problema a ser atacado, como uma oportunidade de negócios. “O potencial de energia eólica e solar no Nordeste pode representar uma mudança no caminho do desenvolvimento daquela região. Se fomentar em escala, tende a gerar o estabelecimento de cadeias produtivas e uma série de serviços associados a estes setores”, comenta Carlos Ritll, secretário executivo do Observatório do Clima.

Agir nesse sentido é também garantir uma salvaguarda contra um aumento muito maior das nossas emissões ou uma grave apagão no futuro. “Hoje o Brasil ainda é altamente dependente da água para a geração de energia elétrica. O que por um lado torna a matriz energética brasileira mais limpa que a média mundial, por outro a torna vulnerável se o clima mudar”, afirma Roberto Schaeffer, especialista em energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ele coordenou um estudo sobre o setor para o projeto “Brasil 2040”, que avaliou as vulnerabilidades do Brasil às mudanças climáticas nas próximas décadas. O trabalho apontou para um risco de redução de 20% no potencial hidrelétrico do País.

Também parte do Brasil 2040, estudos feitos pela Universidade Federal do Ceará calculam que temperatura na bacia do Rio São Francisco pode subir de 0,5°C a 2°C até 2040, aumentando a evaporação do solo e a transpiração das plantas (ou evapotranspiração). Os modelos, porém, são incertos sobre o impacto que o aquecimento terá nas chuvas, o que torna difícil saber como será a vazão nos rios. Pode tanto subir 50% quanto cair 20%. Incerteza que, para os pesquisadores, merece atenção do mesmo jeito.

Questionado sobre se a Chesf estava levando em conta as mudanças climáticas em seus planos futuros, José Ailton de Lima disse que “é muita especulação”. Segundo ele, a análise é feita com base no comportamento do rio nos últimos 90 anos. “Isso nos trouxe um certo conhecimento. Pegamos esses dados e simulamos como vai ser para a frente. Essa vazão atual está lá nessas previsoes. A probabilidade de acontecer era pequena, mas aconteceu. Mas ninguém dimensiona seus planos pelos extremos. Isso tem custo”, afirma. “Se é para levar em conta, tá bom, eu levo, mas e aí? A sociedade atual vai dizer: vou pagar 4, 5 vezes mais caro por uma obra (para um problema) que talvez não aconteça?”.

Schaeffer discorda: “É preciso planejar a expansão do setor incorporando a variável das mudanças climáticas. Não podemos mais só olhar para as séries hidrológicas do passado para prever o futuro, porque ele será bem diferente.”

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