Na defesa da floresta, os extrativistas Éder Chaves Dias e João Coelho tentam impedir a passagem de invasores pelo Vale do Jamari, em Rondônia. Estão marcados para morrer. Como eles, há centenas de outros na lista do crime organizado que avança sobre as terras da União rumo à Amazônia, maior reserva tropical do planeta. Ao mapear a grilagem em sete Estados do Norte e Centro-Oeste do País, o Estado identificou 482 focos ativos de tensão e violência conflagrados sob incentivo dos últimos governos e do Judiciário em 143 municípios, uma realidade descolada das mudanças de poder na política nacional.
O preço do hectare e da madeira acirra a concorrência entre guaxebas, tradicionais matadores de aluguel, e catingas, milicianos que surgem no mercado do terror. A repercussão da chacina de Eldorado do Carajás, em que 19 camponeses foram mortos há 20 anos no Pará, não puxou para baixo a curva da barbárie. O cruzamento de acervos do poder público e de entidades da sociedade civil revela que pelo menos 1.309 pessoas foram mortas em conflitos rurais no Brasil desde 1996. É como se um massacre da mesma proporção ocorresse a cada 100 dias. O número de assassinatos equivale ao volume de árvores cortadas na Amazônia a cada 30 segundos, ininterruptamente, nas duas últimas décadas. A lista dos mortos inclui a geração nascida em agrovilas fracassadas, canteiros de obras inacabadas e aldeias sufocadas no tempo do Brasil Grande, projeto de desenvolvimento da ditadura militar.
Nesta série especial, que será publicada diariamente até o próximo domingo, a reportagem expõe a violência que mata homens e árvores pelos Estados de Mato Grosso, Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia e Tocantins. Entre setembro de 2015 e março deste ano, o Estado percorreu 15 mil quilômetros de estradas federais e trilhou um mapa ignorado pelo governo federal, num universo composto por tortura, incineração de corpos, chuvas de veneno, suicídios de índios, violência contra mulheres, ônibus escolares na mira de fuzis, esquema de venda de licenças, pistolagem paga por planos de manejo e tabelas de execuções.
Trata-se de um levantamento inédito de assassinatos em conflitos rurais por terras e madeira. Eles ocorrem geralmente em áreas afastadas, onde não há proteção institucional ou apoio da rede de advogados ligados à questão do campo. As vítimas são, em sua maioria, pequenos agricultores e índios, mas também há fazendeiros, seguranças e pistoleiros. Parte considerável dos assassinatos é cometida por grileiros e grandes proprietários de terra. Os dados apontam que 97% das mortes são de camponeses e indígenas.
Na rota dos bandeirantes
Os principais caminhos escolhidos pela reportagem foram traçados ainda no regime militar e se transformaram em canteiros de obras do governo federal. Rotas da investigação, as BRs 060, 070, 364, 163, 230, 242, 319, 158 e 155 foram desenhadas sobre antigos caminhos de bandeiras e monções que partiam do litoral para a conquista do interior no século 17.
A BR-364 e a BR-230 cortam trechos da rota do bandeirante Antônio Raposo Tavares, que saiu da Vila de São Paulo em busca de ouro. O desenho da BR-163 passa pela trilha de Pascoal Moreira Cabral, fundador de Cuiabá. As curvas da BR-158 foram mapeadas por Bartolomeu Bueno da Silva, a quem os índios batizaram de Anhanguera, o Diabo Velho.
Os focos da violência estão concentrados na parte do território brasileiro que no período colonial ficava do lado oeste do Tratado de Tordesilhas, que dividiu as terras da América entre espanholas e portuguesas. Hoje, a travessia da faixa imaginária continua expondo a prática de se ultrapassar o limite da civilização, diante do olhar interessado do Estado e de grupos econômicos.
Quando se observa a história do Brasil do campo para a cidade não se enxergam facilmente as diferenças de regimes e governos. A prática de abrir e expandir estradas nessas regiões não está atrelada a garantias de direitos humanos fundamentais. Em muitos casos, a pavimentação não é lançada para atender a uma demanda regional, mas para abrir caminho a negócios que nem sempre resultam em benefícios sociais. Enquanto o País busca fortalecer suas instituições democráticas no Sul, Sudeste e nas capitais do Nordeste, não há investimento no desenvolvimento humano para conter a matança no interior.
O que não faltou nos últimos anos, porém, foi recurso para estradas. Levantamento feito pelo Estado mostra que, nos 15 anos de existência do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), de 2001 a 2015, o governo federal injetou mais de R$ 10,032 bilhões nas nove rodovias percorridas pela reportagem. Desse total, metade se concentrou nos Estados de Mato Grosso e Pará, os mais devastados no período.
Com extermínios diários em subúrbios e periferias, o País a leste de Tordesilhas, onde estão as maiores metrópoles, está longe de ser imune ao avanço da violência. Na matança no campo, porém, a fúria segue o rastro do dinheiro público, que, quando não é desviado, não promove cidadania. A tragédia rural, confrontada com esquemas de corrupção desbaratados por órgãos oficiais, também põe em debate a motivação por trás de muitas dessas grandes obras.