a Colômbia, o drama na infância e juventude é brutal. Dados das próprias Farc, discutidos dias atrás em mesa redonda em Havana, apontam para um total de 7,5 milhões vítimas do conflito, que dura cinco décadas. Mas um levantamento do Ministério do Bem Estar Familiar colombiano revela o impacto sobre os menores. Dados sobre de atendimento a vítimas do conflito mostram pelo menos 5.193 casos de crianças e jovens atingidos nas zonas de conflito entre 1999 e outubro último.

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PABLO PEREIRA (Textos)/ CLAYTON DE SOUZA (Fotos)

O estudo afirma que 2.107 deles foram sequestrados para engrossar tropas clandestinas.      Outros 2.209 tiveram pelo menos um dos pais assassinados. Mas a brutalidade contra a infância e a adolescência, segundo o relatório oficial, vai ainda além: há casos de 147 menores diagnosticados como vítimas de abuso sexual, 1.003 atingidos por minas, 947 que perderam pai e mãe e, pelo menos, 469 assassinados.

 

De acordo com observadores internacionais e operadores da reinserção social, esses  números podem ser ainda maiores. "O número de menores afetados por esta guerra pode chegar a 20 mil", declarou o diretor de uma ONG que tem representações nas principais zonas de conflito. "Não é possível se saber ao certo o tamanho dessa crise", agregou um agente oficial de ressocialização.

 

Para o diretor de uma ONG europeia, com atuação de mais de três décadas na Colômbia, o país tem de aproveitar a chance da aprovação da Lei de Vítimas e o processo do acordo de paz (em andamento) para incluir as crianças no processo de reconciliação nacional. Com isso, segundo o diretor, a sociedade colombiana poderia evitar o que aconteceu na pacificação das guerras recentes da América Central, como Honduras, Guatemala, El Salvador. "Lá, não se cuidou das crianças e jovens no processo de paz e hoje eles engrossam as estatísticas criminais nas periferias das cidades", argumentou.

 

Mas a busca pela pacificação não terá caminho livre. Em meio ao intenso debate sobre quais serão as condições para a reconciliação, um documento da Defensoria do Povo, o Ministério Público local, mostra que a segurança no interior, mais uma vez, pode  enfrentar barreiras armadas. A radiografia da Defensoria mostra que em pelo menos 168 municípios dos 27 estados colombianos há grupos paramilitares em plena atividade de combate. Entre estes grupos estão, segundo o relatório, o "Clan Úsuga", que em alguns locais se chama "Autodefensas Gaitanistas". O documento relaciona ainda "Los Rastrojos," "La Empresa", e os chamados blocos "Meta y Libertadores del Vichada" e "La Oficina de Envigado", mais as "Águilas Negras" e "Los Paisas".

 

E mais: o próprio mapa produzido pelo Ministério do Bem Estar Familiar dá uma ideia do tanto de meninos, meninas e adolescentes envolvidos no conflito nas comunidades, estado por estado. Um outro levantamento, da Agência Colombiana para a Reintegração (ACR), revela também que entre julho de 2013 e junho deste ano, 29.792  adultos passaram pelo sistema. Destes, 85,36% têm idade entre 26 e 50 anos; 7,04%, de 18 a 25 anos, e 4,42% com idade superior a 50 anos.

 

Processo de paz. "Este é o momento para se discutir o tema das crianças e adolescentes na Colômbia, sem dúvida", disse o senador Ivan Cepeda (Polo Democrático), um dos defensores do processo de paz entre governo e as Farc. "Mas é preciso que isso ocorra de uma maneira que não prejudique as conversações de Havana". O delicado momento político colombiano, segundo o parlamentar, é alvo de fortes pressões que podem empurrá-lo para o buraco, prolongando a agonia nacional.

 

"É preciso ter em conta que para muitos destes menores não havia outro caminho a não ser entrar na guerrilha", defendeu o senador. Para ele, o momento colombiano é favorável às negociações de paz. "Nunca estivemos tão perto. Hoje é possível se vislumbrar um acordo e é preciso defender a busca da conciliação", disse Cepeda.

 

No Parlamento, Cepeda tem travado debates ferrenhos com o colega de Senado Álvaro Uribe (Centro Democrático), ex-presidente da República, adversário do projeto político de reconciliação do presidente Juan Manoel Santos. Uribe acusa as Farc de ligações com narcotraficantes e considera a negociação de Havana com a guerrilha uma manobra política das Farc para envolver Santos.

 

"As Farc continuam sequestrando no país, 59 pessoas nos últimos dois anos", disse Uribe no último dia 19 em entrevista de rádio em Bogotá. E citou o caso do recente sequestro do general Rubén Alzate, levado pelas Farc na zona do estado de Chocó, em ação que provocou uma crise na agenda de conversações que ocorre em Cuba. "É um general que lutou muito pelas crianças, pela desmobilização, e pela proteção dos meninos recrutados. Ele tem antecedentes respeitáveis", lembrou Uribe. No mesmo dia, as Farc anunciavam um acordo para a soltura do general também como um gesto de boa vontade para com as negociações.

 

Oto, o ator que se dedica aos "desplazados"

 

Otoniel Romero, 55 anos, é ator de teatro infantil e conhece bem o mundo das crianças colombianas. Há 11 anos, depois de ser forçado por grupos armados a se apresentar em comunidades no interior do país, decidiu que dedicaria parte de seu tempo ao trabalho de inserção social dos "niños desplazados", as crianças expulsas ou abandonadas depois de terem sido usadas pela guerrilha à esquerda e à direita. "Hoje vejo como é importante para mim esse trabalho. Tenho 55 anos e o processo de paz é um sonho que não pensava alcançar", afirmou. Oto, como é conhecido no programa de atendimento a crianças, adolescentes e adultos, colabora na recuperação das vítimas da guerra na Agência Colombiana para a Reintegração (ACR).

 

"Eu continuo trabalhando com meus bonecos e minha clarineta no teatro. Mas esses momentos na ACR são hoje uma razão especial para um colombiano orgulhoso deste país", declarou Oto, que já trabalhou também com crianças de rua, diz que a lei 1424, a Lei das Vítimas, aprovada no governo do presidente Juan Manoel Santos, é um marco na busca pelo processo de paz colombiano. "É preciso entender que os meninos, meninas e adolescentes são vítimas nesse processo político colombiano", defendeu. "A Lei de Vítimas resolve um limbo jurídico que havia nas comunidades e ajuda a desarmar um estigma da divisão da guerra", argumentou.

 

Menino-soldado foge da guerrilha e é usado como informante pelo Exército

 

Aos 12 anos, o menino da etnia nasa foi recrutado à força por um grupo das Farc na região de Cauca, na Colômbia, para ser soldado da guerrilha. Levado da família contra vontade, o pequeno indígena não quer ter o nome revelado, pede para ser chamado de Andrés, e somente então concorda em dar um depoimento sobre sua experiência como soldado mirim das temidas Farc.

 

"De onde são vocês?", pergunta, curioso. Ao saber que a reportagem era para o Brasil, sorri. "Me gusta Brasil", diz. "Me gusta Neymar", acrescenta. Pedindo para não contar sua história perto de outras pessoas, ele relata que, levado pelas Farc, foi obrigado a participar de treinamento com armas e viveu nas selvas com as tropas guerrilheiras por um ano e meio. Hoje, aos 16 anos (completa 17 em dezembro),  vive em um abrigo de crianças e jovens na periferia da Capital colombiana, Bogotá, amparado por uma instituição dedicada à inserção social dos meninos da guerrilha.

 

"Fui recrutado com outros "niños", de 10 e 11 anos. Eu era o mais velho, tinha 12 anos", conta ele, recordando que desde que foi levado pelas Farc passou a viver em acampamentos na selva. "Sim, peguei em armas", responde de pronto. "Nós éramos obrigados a pegar armas e a passar a noite na vigilância, trocando a guarda a cada duas horas nos montes (mata)", recorda.

 

Separado da mãe e de uma irmã, que permaneceram na periferia de uma cidade do Vale de Cauca, ele lembra que com seus colegas adolescentes era obrigado a longas caminhadas na selva, sob chuva, como exercícios da força da guerrilha. "Passava noites com a mesma roupa, molhado, no escuro, sem dormir", conta. Era o treinamento no mato para aprender a resistir, explica.

Em 2012, quando foi resgatado pelo exército colombiano, achou que a vida ia melhorar. Mas o pesadelo ainda não havia terminado. "Ele foi usado pelo exército como informante na região contra as Farc", explica um dos administradores do abrigo que hoje protege o rapaz. Nas mãos das forças regulares do Estado colombiano, o adolescente guerrilheiro passou então a atuar como espião. E entrou de vez na lista dos ameaçados de morte pela guerrilha por traição. "Ficou muito perigoso para ele e tivemos de tirá-lo de lá", afirmou o coordenador do projeto de ajuda aos meninos da guerrilha.

 

O garoto não gosta de falar muito sobre o período de colaboração com o exército. Ele prefere falar que, em 2012, conseguiu se livrar da guerrilha, e que agora tem um projeto de estudar e seguir adiante. Habituado a defender o sustento na área rural colombiana, ele relembra também dos tempos da lavoura. Desde criança, colheu café e folhas de coca. "Trabalhei também com marihuana (maconha)", acrescentou.

 

Inquieto, ele mesmo escolhe o lugar para sentar-se para posar para fotos, cumprimenta uma garota que passa, e conta que gosta de jogar bola na posição de meio de campo. "Me gusta el futbol de Brasil", emendou. Na Colômbia, diz que torce para o Clube Atlético Nacional. Com um sorriso adolescente, contou ainda que nas festinhas de final de semana curte os ritmos do Caribe. Adora dançar a salsa. E não esconde a vontade de voltar para sua terra. "Quero ter uma profissão para trabalhar e  ajudar minha família", disse. Ele parece também já saber qual caminho tomar. "Quero ser médico forense (legista). E advogado", afirmou. E acrescentou: "Me gusta".

 

 

 

 

 

 

Órfão dos paramilitares, jovem é vítima do recrutamento forçado das Farc

 

Em 2001, grupos paramilitares mataram o pai do colombiano Juan, de 18 anos. Órfão, foi criado pela mãe no estado de Norte Santander, zona de forte atuação da guerrilha colombiana. Quando o rapaz completou 16 anos, a pressão do conflito armado voltou direto sobre ele - mas pelo outro lado. Foi a vez de a guerrilha procurar a família para lhes passar uma tarefa: Juan deveria ser soldado das Farc.

 

Com a família abalada pela tragédia da morte do pai nas mãos da milícia inimiga das Farc, o jovem tinha outros planos. E não aceitou o recrutamento. Mais uma vez a violência lhes rondou os passos, obrigando a família a mais um drama: a migração forçada de Juan para a capital, onde se esconde, e espera pela paz.

Juan vai completar três anos sob proteção de um abrigo de "desplazados", uma condição comum a milhares de crianças e jovens nestes tempos duros de guerra no interior. Vivendo longe da mãe, ele tem dois irmãos, um de 16 anos e outro de 6 anos. Os dois estão com ela, explica. A mãe trabalha como chefe de cozinha.

 

Estudando o curso secundário de técnico em sistemas, com apoio de uma fundação internacional, Juan concluiu o curso de técnico em redes e planeja se tornar um engenheiro. "Este é o meu plano de vida", afirma. "Quero estudar engenharia de sistemas", diz. "Hoje sou um desplazado, mas no futuro quero ter uma profissão, trabalhar. Espero que me ajudem aqui a conseguir isso", afirma. Enquanto tenta esquecer do passado violento, que lhe marcou a infância com medo e insegurança, Juan parece ser um jovem alegre.

 

No refúgio, ele colabora colabora nas tarefas do abrigo, onde vivem mais de 120 meninos e meninas, divididos em turmas e alojamentos e separados por faixas de idade. As crianças com idade entre 8 e 14 anos têm quartos e vida escolar separada dos que já completaram 14 anos. Entre eles, há também crianças abandonadas, vítimas da extrema pobreza da periferia de Bogotá. Supervisionado por voluntários e funcionários da ONG, o abrigo os mantém ocupados com tarefas e atividades das 6h, hora do café da manhã, às 21h – hora de dormir.

 

Atento ao trabalho de coordenador de um grupo, Juan mostra com orgulho cada setor, da cozinha comunitária aos alojamentos de crianças e jovens, passando pelo teatro e a escolinha de música, onde aprendem a tocar, por exemplo, o "currulao", ritmo da região de Buenaventura, no Pacífico. Ao passar pela quadra de esportes, explica que é torcedor do Clube Atlético Nacional. Mas logo adverte que torce também para o Real Madrid. Seus ídolos, acrescenta, são o craque colombiano James Rodrigues e um velho conhecido da torcida brasileira, Carlos Alberto Valderrama Palacio, "El Pibe", da vasta e  inesquecível cabeleira loira e enroscada.

 

Raptada aos 14 anos com outras 5 meninas, colombiana fugiu do ELN ao completar 16

 

A macabra rede de tensão, medo, morte e imigração forçada da guerra civil colombiana, que atinge de frente a infância no país, não é de agora. As marcas são visíveis em milhares de jovens e adultos. Margarida (nome trocado a pedido), hoje com 30 anos, é um exemplo. Foi levada por militantes do ELN da porta da escola em Arauca, divisa com a Venezuela, quando tinha 14 anos.

 

Na periferia de Bogotá, onde vive hoje, a mulher lembra que foi recrutada quando estava com outras cinco meninas. No início, o trabalho na guerrilha era de serviços administrativos e de propaganda e cooptação nas comunidades da região. Mas a situação mudou quando ela completou 16 anos. Margarida foi convocada para instrução militar. Ao se recusar a entrar na frente armada, contou ela, foi ameaçada.

"Fugi com uma amiga", afirmou Margarida. Ela contou que a fuga da guerrilha foi seu pior dilema. "Havia, na época, muitas propostas de mudanças de governo", recordou.  "Mas eu também não queria ir para a frente armada", explicou. "E a pena para quem não quer servir na frente de combate é a morte", emendou um agente da reintegração que acompanhou o processo de Margarida.

 

Ainda adolescente, ela não tinha uma relação tranquila com a família. Ao deixar a guerrilha, não voltou para casa. O medo de represálias e a falta de ambiente em casa a levaram a ficar por cerca de 5 meses escondida sob guarda das Forças Armadas regulares na região de Bucaramanga, onde o exército mantém o destacamento da 18ª Brigada. "Nestes casos de pedido de ajuda, o exército aplica protocolos para se certificar se a pessoa é mesmo quem diz ser e se pode ser integrada em um programa de recuperação", argumentou o agente do programa de reinserção social da Colômbia.

 

Hoje integrada à vida urbana, Margarida tem sua própria família e ajuda outros "desplazados" a encontrarem um caminho de vida longe das zonas de conflito.  Dias atrás, Margarida conversou com o Estadão em Bogotá, numa sala da Agência Colombiana para a Reintegração (ACR), que tem 34 unidades de atenção às vítimas do conflito armado. Ao lado dela, um homem, de 32 anos, observava o depoimento. Era um ex-membro do grupo paramilitar Bloco Heróes de Tolobá, de Sucre, que há três anos também faz parte do programa de reabilitação dos deserdados da guerra civil. Recrutado pela milícia paramilitar quando tinha 22 anos, trabalhou como soldado até a desmobilização, que começou em 2005. Hoje ele está no programa de inserção social e trabalha como vigilante. Para o rapaz, a principal contribuição do programa para quem viveu no conflito armado colombiano é bem clara: "A ajuda psicológica", declarou.

 

 Brasil apoia programas de destruição de minas de uso militar e agricultura no país

 

O governo brasileiro participa dos esforços de pacificação da Colômbia com financiamento de programas por meio da Junta Interamericana de Defesa da Organização dos Estados Americanos (OEA). De acordo com diplomatas da embaixada brasileira em Bogotá, "o Brasil é um dos principais doadores do programa de eliminação de minas (explosivos) ". Para o diplomata Rodrigo Abreu, a ajuda brasileira proporcionou a formação de 9 dos 10 pelotões do Batalhão de Desminagem colombiano e o investimento está na casa de US$ 5 milhões.

 

Segundo outro diplomata do Itamaraty, Camilo Prates, que acompanha também o processo de reinserção social de menores vítimas do conflito armado na Colômbia, a embaixada de Bogotá tem ainda projeto de cooperação na área agrícola. "Nosso principal projeto na área de cooperação agrícola com a Colômbia consiste na implementação de um Programa de Aquisição de Alimentos nos departamentos de Antioquia e de Nariño, em parceria com a FAO e o PMA", informa. Pelo plano do Itamaraty, o projeto garante "a compra da colheita de pequenos agricultores pelos governos regionais, para a preparação de merenda escolar. O projeto conta com financiamento brasileiro de US$ 713 milhões e será implementado  em quatro escolas, beneficiando 1.600 crianças".

 

Os diplomatas afirmam ainda que o ministério colombiano de Agricultura e Desenvolvimento Rural pediu colaboração brasileira para "a formulação de um Programa Nacional da Agricultura Familiar, que deve priorizar a associação de agricultores e sua qualificação para a venda de gêneros agrícolas em mercados públicos e privados." Pelo projeto da embaixada, o Brasil vai promover ainda intercâmbio de pesquisadores e professores do setor agrícola com "ênfase na colaboração entre Embrapa e a Corpoica (agência colombiana de pesquisa agropecuária). "São ações para ajudar na reconstrução do tecido social", disse Abreu.

 


Crianças amparadas por programa de inserção de vítimas do conflito armado na periferia de Bogotá