O duplo olhar de um correspondente

Funcionário mais antigo do ‘Estado’, o jornalista e escritor francês Gilles Lapouge fala de seus 64 anos escrevendo artigos

Gilles Lapouge

O Estado de S. Paulo está completando 140 anos. Sou muito mais jovem. Escrevi meu primeiro artigo para o jornal em março de 1951. Ou seja, acompanhei esse “monumento” do jornalismo que é o Estadão durante quase a metade de seu percurso. Nesses 64 anos, não folguei: escrevi aproximadamente 57.600 páginas de 1.500 caracteres, de modo que minha obra é bem mais vasta que as de Balzac, Charles Dickens e Jorge Amado juntas, coitados!

Perguntam-me por qual milagre um jovem francês então com 25 anos se encontrava diante de uma máquina de escrever nesse jornal brasileiro. E por que, por 64 anos, continuou a datilografar em máquinas cada vez mais modernas, mas no mesmo jornal.

A resposta é: há no Estado um “gênio” raro. O jornal está com certeza atento aos problemas, às misérias e às felicidades do Brasil e de São Paulo. Mas não esquece jamais a dimensão mundial, internacional, de cada acontecimento relatado. Toda informação é ao mesmo tempo local, regional, nacional e internacional.

Eis por que Julio de Mesquita Filho, em 1950, teve essa ideia aparentemente barroca: trazer para tocar a editoria econômica um jovem francês. Ele pediu a um amigo, o grande historiador Fernand Braudel, para achar esse francês. Por uma série de acasos, fui eu.

Aterrissei no Rio em 20 de março de 1951. Julio de Mesquita Filho me aguardava. Caramba! Eu, minúsculo, estrangeiro, tímido e desconhecido, era, sem saber, um personagem tão importante que o diretor de um grande jornal percorrera 500 quilômetros de carro para me receber? Eu estava apavorado. Nós fomos ao Copacabana Palace. “Você está no Rio”, eu me dizia, “no Rio”. Era um sonho! Não fechei os olhos à noite. Às 6 horas, já estava admirando o mar, a areia vazia. O céu parecia de seda. Eu me disse que, entre aquelas palmeiras-reais e cores azuis e douradas, meu destino se escondia. Não me enganei: de fato, após 64 anos, escuto o barulho que faz esse destino à medida que ele se desenrola.

***

Eu me lancei prontamente ao trabalho. O jornal ocupava um prédio velho e sombrio na Rua Barão de Duprat (só mudou para a Major Quedinho meses mais tarde). O primeiro dia me decepcionou um pouco. Esperava locais modernos, futuristas, luxuosos e claros. Caí num edifício velhusco, obscuro, um pedaço ressecado do século 19.

Uma porção de jornalistas datilografava em suas Remington ou Burroughs, numa balbúrdia ensurdecedora. O lugar cheirava a sebo, tinta, papel, suor e tabaco. Pensei estar num daqueles filmes americanos em que um repórter parecido a Humphrey Bogart cruza uma vasta sala com a capa esvoaçando. Isso me reergueu um pouco o ânimo. Escrevi meu primeiro artigo. Hoje continuo a escrever todos os dias. Às vezes, tenho impressão de que minha vida nada foi senão uma longa tarde em meio ao ruído das máquinas da Rua Barão de Duprat.

Marcelino Ritter traduziu meu primeiro artigo. Em seguida, dr. Mesquita me recebeu. Pondo os óculos, começou a lê-lo lentamente. Meu coração batia descompassado. O tempo não passava. Por fim, ele tirou os óculos. “Está bom”, disse.

***

Não me deixavam folgar. Fazia dois artigos por dia, um sobre economia mundial, outro sobre problemas brasileiros. Além disso, para conhecer o País, deveria fazer a cada duas semanas uma reportagem numa região do Brasil. Formidável formação! Conheci Porto Alegre, Santa Catarina e a indústria madeireira, as tragédias do Nordeste, Mato Grosso, São Luís, a Amazônia.

Em 1952, fiz minha reportagem mais extraordinária. O Brasil temia o café africano. Enviaram-me à África. Três meses sozinho, de Dacar a Adis-Abeba, de Brazzaville a Johannesburgo. Não deixei passar um pé de café. Eu sonhava com campos de arábica, de robusta. Via café por toda parte. Era como aqueles tarados sexuais que veem por trás de qualquer desenho seios ou nádegas femininas. Fiz 60 artigos sobre o café africano.

***

Em 1954, como meus pais estavam idosos, me senti obrigado a voltar à França, com a morte na alma, como de luto. Após as faíscas, cintilações e violências do Brasil, meu país me pareceu cinzento e gasto. Jamais saí de verdade do Brasil. Creio que meu cérebro tem uma linha direta com São Paulo porque, quando estou longe, ele me fala, me provoca, me conta histórias. Eu me revejo em Marabá em 1953, em Ipanema em 1952. Em minhas noites, escuto a respiração do país magnífico e o convido a se introduzir em meus sonhos.

Aos poucos, o Estado me ensinou o ofício de correspondente. Compreendi que, se quisesse ser o “barqueiro” entre França e Brasil, não deveria me contentar em dizer o que ocorria na Europa com olhar de francês, mas fazê-lo com um “duplo olhar”: metade francês, metade brasileiro. Um acontecimento não tem a mesma cor ou tessitura sentido por um brasileiro ou um francês, um camponês ou um filósofo, um soldado ou um enfermeiro. Por isso, o correspondente deve ser capaz desse “duplo olhar”.

Um exemplo: em 1914, o Estado publicou artigos sobre a Europa em guerra. Eles são magníficos. Por quê? Porque sobre a batalha de Verdun ou Dardanelos, sobre o front da Somme, forneciam da guerra imagens desconhecidas e muito mais completas e inteligentes que as propostas pelos jornais franceses. Tal é o segredo magnífico do que Claude Lévi-Strauss chama de “distanciamento do olhar”. Para os franceses, a guerra era travada, antes de tudo, entre Alemanha e França. Para um brasileiro, era planetária. Só era possível compreender o que se passava em Verdun sabendo o que se passava no Egito, na Rússia, na Argentina. Eis o que o Estado me ensinou: arrancar o fato de sua solidão regional ou nacional, inseri-lo como a peça de um quebra-cabeça gigante na paisagem infinita do mundo.

***

Outra particularidade genética do Estado: é um jornal que tem uma linha ideológica forte e inflexível. Essa linha inspira seus artigos e, sobretudo, seus editoriais: democracia, direitos humanos, horror aos fascismos, rejeição dos sistemas de esquerda: comunismo, marxismo, castrismo, maoismo e, mais tarde, formas variadas do “esquerdismo”.

Ao mesmo tempo, porém, o Estado jamais temeu dar a palavra a jornalistas, escritores ou personalidades que têm, da organização das sociedades, ideias diferentes das suas. Um exemplo é Victor Serge. Esse russo foi um dos revolucionários mais poderosos do século 20. Inicialmente anarquista, depois comunista fervoroso, expulso mais tarde do Partido Comunista soviético, Serge se tornou jornalista por volta de 1936. O Estado abriu suas colunas para ele. Essa é a inteligência e, sobretudo, a força do Estado: suficientemente seguro de seus valores para ter a curiosidade e coragem de dar, às vezes, a palavra aos que lealmente têm outras convicções. É uma maneira aristocrática de compreender o mundo.

***

Nos anos 50 e 60, houve a guerra da França contra os independentistas argelinos. Os “revolucionários” argelinos que queriam pôr fim à colonização francesa eram detestados pela direita burguesa e apoiados pela esquerda. Eu considerava nobre a causa que eles defendiam (sua identidade, sua independência, sua honra). Portanto, meus artigos os apoiavam. A colônia francesa em São Paulo ficou histérica, desejando-me o inferno e a danação. O Estado não vacilou. Publicou todos os meus artigos. Respeito absoluto. Resultado: Paris ficou descontente e pediu para o Estado me enquadrar. O jornal, embora conhecido por sua ligação afetiva com a França, naturalmente se recusou. A França cassou minha identidade de jornalista. Contra-ataque: o Estado cortou relações com a embaixada francesa. Um ano depois, a França concordou em restituir minha identidade de jornalista.

***

Em 1964, generais tomaram o poder no Brasil. Acompanhei o drama de Paris. Notei que o jornal não denunciou o golpe. Isso me inquietou. Enviei uma carta de demissão. O jornal recusou minha demissão e disse que publicaria minha carta e a resposta da direção.

No domingo seguinte, vi minha carta e a resposta do jornal – longa e num tom nobre. Explicava por que, no caos em que o Brasil se encontrava, o golpe parecia justificado. A carta acrescentava o seguinte, que é fundamental: se o governo tocasse nas liberdades públicas e individuais, ofendesse os direitos humanos, o Estado se alinharia à oposição. Foi precisamente o que ocorreu seis meses depois.

***

Escrever um artigo por dia por tantos anos é uma provação: para quem escreve e mais ainda para quem lê. O estilo é sempre o mesmo. Há o risco de aborrecer, de monotonia, de repetição, de enjoo.

Graças ao Estadão, procurei renovar ao longo das décadas. No começo, só me ocupei de economia. Depois, passei aos acontecimentos políticos. Progressivamente, alarguei meu campo para não cansar os leitores.

A maior renovação foi no estilo. Com o conselho de diretores e redatores de São Paulo, eu me afastei um pouco do estilo didático e universitário dos primeiros anos. Procurei um tom mais livre, menos pesado, mais alegre. Eu me entreguei até ao que me proibia nos primeiros anos: à literatura, à poesia e ao humor.

Assim, e paradoxalmente, me parece que meu estilo conseguiu essa proeza “antinatural”: tornar-se mais jovem à medida que eu envelheço. Para essa metamorfose inesperada, agradeço do fundo do coração a todos que, no Estadão, e durante tantos anos, pilotaram minhas matérias.

Tradução de Celso Paciornik