No ‘Suplemento Feminino’, a mudança do papel da mulher

Por 58 anos, em meio a dicas de moda, beleza e culinária, caderno acompanhou uma revolução na sociedade brasileira

Mônica Manir

Era 25 de dezembro de 1953 quando Capitu, pseudônimo machadiano da jornalista Maria do Carmo de Almeida, anunciava o lançamento do Suplemento Feminino. “Como as mulheres sempre se comprazem com mudanças para melhor, não seremos adivinhas afirmando que nossas leitoras receberão prazerosas este suplemento, hoje lançado em substituição à antiga página feminina a que elas sempre dedicaram carinho e atenção.”

Dezesseis páginas dominicais, em formato tabloide, ampliavam a página com dicas de moda, culinária e trabalhos manuais que o jornal publicava às sextas-feiras. O caderno agora teria literatura infantil e um noticiário de moda, perfumes e cosméticos chegado diretamente de Paris. Moldes e receitas de vestidos, assim como trabalhos de agulha, se avolumariam. Colaborações avulsas atenderiam às necessidades da mulher moderna, pois tratariam de educação, puericultura, psicologia, etc. E a seção de grafologia responderia no fino do traço à curiosidade feminina, que “gosta de conhecer os ‘segredos’ revelados pela própria letra ou pela de... outrem”, avisava maliciosamente Capitu.

Ao vento. A editora de moda Dinah Pezzolo e o fotógrafo Hiroto Takada num ensaio em Santos, em 1972

Antes de assumir o suplemento, ela já havia passado por outras redações causando, no mínimo, estranheza. Mulher trabalhando em jornal era ave rara. Nem eram muitas no Feminino: afora Capitu, uma repórter, uma cronista social e uma fotógrafa. Sob seu comando, o suplemento deu “furos jornalísticos”, como o lançamento dos sapatos arredondados, e reportagens maiores, entre elas A Mulher e o Trabalho. Em 1958 Capitu deu lugar a Francisco Lima, na direção até dezembro de 1959. De janeiro a 22 de abril do ano seguinte Clycie Mendes Carneiro assumiu a função. Repassou-a, no dia 23, a Maria Cecília Vieira de Carvalho Mesquita, que comandaria o time até o fim do Suplemento Feminino (SF), em 2011.

Ao lado da redatora-chefe Maria Lucia Fragata Helena, Maria Cecília fez mexidas paulatinas no produto, como a extinção das colunas de restaurantes e do roteiro cultural, já presentes em outras páginas do Estado. Também descartou as notas sociais e pescou no mercado editores especializados para os setores que queria valorizar: moda, culinária, decoração, reportagem.

Dinah Bueno Pezzolo tinha no currículo um curso de alta-costura na França quando procurou o SF oferecendo seus croquis. Logo foi contratada para cuidar do tripé moda-beleza-trabalhos manuais. Contou com um recurso valioso: o estúdio do suplemento. “Se podemos fazer fotografias de alta qualidade, por que comprar de fora?”, perguntava Maria Cecília. Mas Dinah também explorava ensaios externos. A luz natural lhe trazia literalmente outra atmosfera, e muito mais trabalho de produção. “Lembro uma matéria de noivas que fiz na Pinacoteca”, conta. “Fomos com um caminhão-baú, daqueles que entregavam os jornais, forrado de cima a baixo com papel de bobina. A modelo se trocava ali dentro, todos preocupados em não sujar os vestidos, porque eu tinha de devolvê-los.”

Ousadia. Primeiras capas do caderno não traziam chamadas

A partir de 1995, Dinah passou a cobrir desfiles internacionais duas vezes por ano, em março e setembro. Fotografava ela mesma as tendências voltando com 4 mil fotos por desfile, que usava em edições especiais e pautas avulsas. As leitoras respondiam com fidelidade. “Elas confiavam muito no que passávamos, tanto que algumas me telefonavam na redação antes de uma festa comentando o vestido que usariam e pedindo sugestões de acessório, como prender o cabelo, se maquiar...”

Mais que telefonemas, o suplemento recebia cartas aos borbotões. Eram 30 a 40 por dia e em época de concurso caixas de correspondência se empilhavam na redação. Alguns concursos eram dedicados a crianças e adolescentes, como o que propunha a jovens montar maquetes da Assembleia Legislativa, então em construção. Sucesso estrondoso fez o de pano de prato usando saco alvejado, de 1983. Mais de 7 mil trabalhos concorreram na categoria.

Dulcília Buitoni, professora da Cásper Líbero e autora do livro Mulher de Papel (Summus), aponta como um dos marcos do suplemento a interação com o público. “Hoje as pessoas dão curtidas, antigamente tinham de escrever a carta, levar ao correio, e esse tanto de correspondência mostra como se sentiam estimuladas.” Também destaca o papel de divulgador social do SF: “Ele atravessava diferentes classes”.

Mudanças. Na reformulação do caderno, em 1997, pesquisas mostravam que o suplemento era lido por 295 mil mulheres entre 25 e 49 anos, nas faixas A, B e C. A repaginada buscava ampliar horizontes da pauta, com seções que iam da culinária à economia, passando por direitos da mulher e informática. “A mulher atual precisa de ideias e recursos para deixar organizado o ambiente familiar, mas também precisa ter acesso a mais informações para atuar profissionalmente”, afirmou Maria Cecília, falecida em setembro.

Novos colunistas foram chamados. Rosiska Darcy de Oliveira, na época presidente do Conselho dos Direitos da Mulher, ali encontrou um canal inclusivo. “Sempre defendi muitíssimo a cultura feminina, que passa sim pela culinária, pela moda, e isso não tem nada de discriminatório.” A autora de O Elogio da Diferença lembra que suas crônicas encontraram ressonância nos homens, vide as várias cartas que recebeu do público masculino. E muitos textos, escritos em 15 anos de colaboração, “alguns dos melhores que já produzi”, ela reuniu em livros, que a levaram à cadeira 10 da Academia Brasileira de Letras.

Já Nélida Piñon, primeira mulher a se tornar presidente da ABL, entre 1996 e 1997, assinava a coluna Cá entre Nós. “O suplemento teve uma função histórica por seu desempenho político”, afirma. “Muitas crônicas diziam para a mulher quem ela era e quem ela deixava de ser por causa do papel tão modesto que a sociedade lhe reservava.”

Se a filósofa Simone de Beauvoir, em entrevista ao SF em 1960, entendia que a mulher estava longe de deixar sua posição de inferioridade, “pelas contradições que restavam na própria mulher”, Nélida diz que tivemos a sabedoria de alterar a conduta social sem perder a importância do afeto: “A revolução feminista foi a grande revolução do século 20”. A partir do afrouxamento das fronteiras que proibiam a mulher de avançar pelo mundo, os cadernos voltados a ela sofreram um arrefecimento na sua missão. “Mas o Suplemento Feminino foi uma alavanca formidável para que a mulher saísse de um caderno específico para o jornal inteiro”, arremata a imortal.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’