Caderno, que circulou entre 1956 e 1974, firmou-se como o principal divulgador de ideias da imprensa nacional
Em 1954, durante as comemorações do 4.º Centenário de São Paulo, a direção do Estado, interessada em fazer um número festivo, pediu ao crítico Antonio Candido de Mello e Souza que indicasse artistas para escrever uma série de artigos sobre a cidade. O que seria uma edição pontual se tornou embrião do Suplemento Literário, caderno que se transformou no marco do jornalismo cultural brasileiro.
No ano seguinte, o Estado convidou o professor para editar o caderno de ideias que planejava criar, suprindo a carência de uma revista nacional com especificidades paulistas. “A Universidade de São Paulo está ligada diretamente ao jornal O Estado de S. Paulo, porque seu idealizador foi o dr. Julio de Mesquita Filho. Tudo isso indica que esse suplemento, sendo embora literário, vai refletir um pouco o tom da intelligentsia paulista, que é um tom de estudo, de ensaio, de reflexão”, afirmou Candido à pesquisadora Marilene Weinhardt, autora de uma tese sobre o Suplemento Literário.
Candido fez os primeiros contatos com colaboradores, mas não quis aceitar a direção do caderno, sugerindo o nome de Décio de Almeida Prado, a quem, com uma mistura de elegância e justiça, gosta de dar todo o crédito pelo sucesso da empreitada intelectual.
Nanquim. Ilustração Sem Título feita por Lívio Abramo
Foi Almeida Prado, portanto, ao escrever a Apresentação na primeira edição, quem delineou os caminhos pretendidos por aqueles jovens críticos: “A nossa ambição mais alta é servir como instrumento de pesquisa aos profissionais da inteligência, exercendo uma constante ação de presença e estímulo dentro da literatura e pensamento brasileiros. Essa é a nossa função de conceber um suplemento literário; essa é, acima de tudo, a nossa maneira de exprimir, no setor que nos coube, o espírito e a tradição do jornal que representamos”.
Em outras palavras, o crítico alertava os leitores de que o novo caderno teria uma natureza literária, portanto, artística, e, como não entendia a existência da arte sem plena liberdade de expressão e criação pessoal, Almeida Prado garantia que o suplemento não sofreria um rebaixamento do discurso que, de tempos em tempos, ameaça a integridade do pensamento.
Assim, desde a primeira edição, impressa em outubro de 1956, até a última, que circulou em dezembro de 1974, o Suplemento Literário firmou-se como espaço privilegiado para debate de ideias, apresentação de novos autores e revisão dos consagrados. Para isso, contava com as melhores cabeças da época – além de Décio de Almeida Prado e Antonio Candido, o time exibia desde o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes ao crítico de teatro Sábato Magaldi, passando por Lourival Gomes Machado e muitos outros. A maioria era oriunda da revista Clima, fundada em 1941 por Alfredo Mesquita e Gomes Machado e que reunia jovens de 20 anos com a pretensão de mudar o País recorrendo à reflexão intelectual e não ao deboche.
Os princípios lançados no primeiro número do Suplemento Literário foram determinantes para a consolidação da importância do caderno. Para isso, os redatores contaram com colaboradores imprescindíveis, como os críticos Anatol Rosenfeld, essencial na difusão da literatura estrangeira, e Leyla Perrone-Moisés, que publicou nas páginas do suplemento os primeiros textos sobre a vanguarda literária francesa (Robbe-Grillet, por exemplo).
Quando a maioria ainda desconhecia os preceitos do nouveau roman, o suplemento comandado por Décio já preparava o caminho para os novos escritores franceses, discutia filosofia e literatura alemã com Rosenfeld e dedicava páginas inteiras a cineastas praticamente ignorados pelos jornais. Havia uma predisposição pela aposta no novo, no desconhecido, na busca pela ousadia que poderia modificar a arte. Para isso, o erro não importava, pois Décio e seus colegas queriam fomentar no leitor seu espírito crítico, não aceitando passivamente, mas interferindo no processo de criação.
A equipe criativa do Suplemento sabia que não há obra sem consciência da linguagem ou das linguagens que ela usará. E tal preocupação era notada tanto no texto como na diagramação de cada edição. O visual de cada página era limpo e, apesar do necessário privilégio do texto, observava-se um equilíbrio e uma leveza na combinação de fotos e desenhos. Assim, além de destacar talentos entre escritores, o Suplemento abria espaço também para jovens artistas que logo se consagrariam, como Renina Katz, Flávio de Carvalho, Lívio Abramo, Antonio Bandeira, Maria Bonomi, Mira Schendel, etc.
Aguardado semanalmente pelos leitores, o Suplemento Literário ganhou um prestígio crescente e seus exemplares eram encadernados pelos mais fanáticos ao final de cada ano – na última edição do ano, era publicado um índice contendo o material divulgado no período, com o objetivo de facilitar a consulta aos pesquisadores. O volume trazia uma aula de cultura e de jornalismo.
As páginas do Estado abrigam, desde sua fundação, não apenas notícias, mas também textos críticos e ficcionais assinados por autores que, se já não eram consagrados, logo se tornariam. É o caso, por exemplo, do jovem Chico Buarque, que estreou como escritor com o conto Ulisses, publicado em 30 de julho de 1966, no Suplemento Literário.
O caderno, aliás, abria espaço para contos de Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e João Antonio; poemas de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral. Outras áreas também foram contempladas – com apenas 18 anos, o futuro cineasta Rogério Sganzerla escreveu sobre Oito e Meio, clássico de Federico Fellini; já o economista Paul Singer, 27, resenhou Formação do Brasil Econômico, de Celso Furtado; e o maestro Julio Medaglia, 28, foi responsável por um número sobre Bossa Nova. Não bastasse isso, o grupo concretista foi convidado a defender sua vanguarda nas páginas do caderno e seguiu colaborando.
A história das artes plásticas brasileiras, aliás, guarda um importante fato, um marco histórico, iniciado nas páginas do jornal. Na edição de 20 de dezembro de 1917, o Estado publicou uma ácida crítica de Monteiro Lobato, intitulada A Propósito da Exposição Malfatti(Paranoia ou Mistificação?) , sobre uma mostra do trabalho da jovem pintora Anita Malfatti, aberta dias antes, no centro de São Paulo. Lobato trata Malfatti com certa comiseração – sua intenção, na verdade, era atacar o incipiente movimento de vanguarda.
Naquele artigo de 1917, o escritor (ironicamente descrito pelo colega de letras Menotti Del Picchia como “um grande contista com fama de mau pintor”) reuniria fragmentos de críticas que fizera antes e escreveria texto incisivo, em que detalhava sua decisão de combater a arte que se queria fazer no Brasil. “Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti”, explicava.
No texto, Lobato revela-se nacionalista e se põe em combate contra o que julgava não passar de arte importada. Apesar da acidez, ele aliviou os golpes no trabalho de Malfatti. Mesmo assim, a reação de jovens intelectuais (liderados por Oswald de Andrade) contra Lobato foi ruidosa a ponto de, a partir de sua união, surgir a semente do movimento que originou a Semana de Arte de 1922.
Nos anos seguintes, com a modernização da imprensa, o Estado passou a abrigar mais escritores em suas páginas. Nomes como Carlos Drummond de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda figuraram entre os fiéis colaboradores.
Com o nascimento do Caderno 2, em abril de 1986, o jornal reafirmou a missão levantada pelo Suplemento Literário de abrigar nomes que surgiam. É o caso de Caio Fernando Abreu e Antonio Bivar. E as polêmicas ficaram ainda mais incendiárias com a chegada de Paulo Francis e seu Diário da Corte.
O caderno coleciona entrevistas exclusivas com artistas de todas as áreas, tornando-se referência na imprensa nacional. E hoje mantém escritores consagrados assinando crônicas, como Milton Hatoum, Luis Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola Brandão, Marcelo Rubens Paiva, Sergio Augusto e Humberto Werneck.