QUANDO A CRISE FAZ O EMPREENDEDOR

QUANDO
A CRISE FAZ O
EMPREENDEDOR

Necessidade ou oportunidade? Entenda o que move
os brasileiros que, neste momento, decidiram se aventurar
no universo do empreendedorismo

Naiana Oscar

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O Brasil que se vira


COM AVANÇO DO DESEMPREGO, TRABALHO
INFORMAL VOLTA A GANHAR ADEPTOS NO PAÍS

 Artesanal. Depois de ser demitida, Valquíria, 37, começa a fazer sabonetes em casa e vira 'personal organizer'.   RAFAEL ARBEX/ESTADÃO

 

De repente, a carteira de trabalho de Valquíria foi parar no fundo da gaveta, sem data para sair de lá. Na pasta, com outros documentos que já não são mais tão úteis no seu dia a dia, estão os registros formais do tempo em que vendeu carros importados numa concessionária da Mercedes e, mais recentemente, do período em que era uma das poucas funcionárias em São Paulo de uma montadora de ônibus do Sul do País.

 

O escritório fechou no ano passado e “por mais que gostassem muito de seu trabalho, não seria possível continuar”, ouviu do diretor que viajou até a capital paulista para demiti-la. “Sabe como é... a crise veio forte, perdemos contratos e temos de cortar custos para seguir em frente.” Valquíria entendeu, embora não quisesse acreditar. Aos 37 anos, sempre gostou de ter emprego fixo, salário caindo na conta todo mês. Chegou a bater na porta da concessionária para ver se, quem sabe, teriam vaga para uma antiga funcionária, agora mãe de uma menina de quatro anos. Não tinham e não teriam tão cedo.

 

Foi assim que ela entrou para um exército de trabalhadores praticamente invisíveis, que nem o IBGE consegue identificar com precisão em suas estatísticas. Em junho deste ano, o número de brasileiros que trabalha por conta própria no País chegou a 22 milhões – nesse grupo há, por exemplo, autônomos que pagam impostos, mas a grande maioria está mesmo na informalidade, fazendo bicos e tentando se virar. Em um ano, o total de pessoas nessa situação aumentou em quase 5%, o que indica um avanço, previsível, dos trabalhadores informais. “Estamos assistindo a um movimento de recuo”, diz Hélio Zylberstajn, professor de Economia do Trabalho na USP. “Tudo o que ganhamos de formalização nos últimos anos, vamos perder. É uma consequência natural do aumento do desemprego.” Entre abril e junho, em todo o País, 8,3 milhões de pessoas procuraram emprego sem encontrar.

 

Valquíria já não estava mais nesse grupo. Preferiu interromper sua busca e começar logo a fazer alguma coisa que lhe desse dinheiro e ajudasse a complementar a renda do marido, funcionário de uma seguradora. Agora, ela não vende mais carros importados nem negocia com empresas de ônibus. Seus clientes são vizinhos, amigos e parentes e seu produto, perfumes e sabonetes artesanais. A fabriqueta fica a 10 quilômetros de casa, num bairro da Zona Sul de São Paulo, nos fundos do salão de beleza de uma tia. A ideia ela teve ao assistir a um desses programas vespertinos de televisão para o público feminino. “Procurei um curso e fui à luta.” Em paralelo, ela buscou formação também para se tornar “personal organizer”, como são chamados os profissionais especializados em organização doméstica. Quando não está fazendo sabonetes ou cuidando da filha, Valquíria pode estar arrumando um guarda-roupa por aí. Ela cobra, em média, R$ 150 por esse serviço. “Aos poucos estou conseguindo uma renda compatível com a que eu tinha.”

 

Uma pesquisa encomendada pelo ‘Estado’ à Plano CDE, consultoria especializada em pesquisas sobre a baixa renda, mostrou um perfil muito parecido com o de Valquíria entre os novos trabalhadores informais. Em parceria com a empresa espanhola Netquest, que faz levantamentos na internet, a consultoria entrevistou 400 pessoas, no País inteiro, que começaram um negócio próprio para aumentar a renda da família nos últimos seis meses. Desse total, 56,6% são mulheres. Pouco mais da metade desenvolve a atividade em casa e 21,5% (o maior porcentual) trabalha nas áreas de higiene e beleza, vendendo produtos porta a porta ou prestando serviços de manicure, por exemplo.

 

 

 

 

No pote. Janete, de 27 anos, foi demitida no início do ano e agora faz bolos em potes para garantir uma renda.   CHRISTIAN RIZZI/ESTADÃO

 

A pesquisa ajuda a entender o que de fato levou esses trabalhadores para a informalidade. É de se imaginar que a decisão não foi por livre e espontânea vontade: 50% dizem ter sido obrigados a complementar a renda porque o custo de vida aumentou e 20% viraram informais porque eles próprios, ou alguém da família, perderam o emprego. “Para não perder o poder de compra e manter as conquistas, essas pessoas estão fazendo malabarismos”, diz Maurício de Almeida Prado, sócio-diretor da Plano CDE.

 

Na cidade em que Janete Correia mora com o marido e com as duas filhas, fazer malabarismos para conseguir um dinheiro a mais, historicamente, significa cruzar a fronteira e voltar com as sacolas cheias de quinquilharias do Paraguai para vender do lado de cá. Ela mora em Foz do Iguaçu (PR), a 15 minutos da Ponte da Amizade. Perdeu as contas de quantas vezes, na hora do aperto, esteve em Ciudad del Este para comprar maquiagens e acessórios para revender. Desta vez, ao ser demitida do Sindicato dos Motoristas de Ônibus, onde trabalhava como secretária havia quase três anos, teve de pensar em outra saída. “Com o dólar valendo mais de R$ 3,50 não vale a pena ser sacoleiro. Tem muita gente desistindo dessa atividade por aqui.”

 

Na agência do trabalhador, ela até conseguiu uma vaga em um frigorífico na cidade de Cascavel. Mas com duas filhas pequenas, seria inviável trabalhar a 150 km de distância. Foi nos grupos de culinária do Facebook que Janete encontrou uma inspiração. Ela sempre gostou de cozinhar para a família e percebeu que esse hobby poderia se converter em uma atividade profissional para ajudar o marido, motorista, com as contas de casa, que não são poucas. Além das prestações de um carro, os dois pagam R$ 522 por mês de financiamento imobiliário, pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Na cozinha da casa nova, ela começou a fazer “bolo no pote”. É quase uma sobremesa, vendida em porções pequenas, dentro de potinhos plásticos. O de 250 ml sai por R$ 6. “Em maio, quando comecei, só uma pessoa vendia bolo de pote em Foz do Iguaçu. Agora, já são 15”, diz. Por dia, Janete produz e vende cerca de 80 bolos, o que já lhe rende bem mais que os R$ 1.200 que recebia como auxiliar administrativa. Cinco meses depois, ela já aceita encomendas para festas, quer ampliar a oferta de produtos e já fala até em ter uma loja física. “Meu sonho antes era ser farmacêutica, agora é ter minha própria confeitaria”, diz.

 

Até lá, Janete terá de transpor as muitas barreiras que existem no caminho da formalização: a burocracia e as altas cargas tributárias. A figura jurídica do Microempreendedor Individual, criada em 2008, é uma porta de entrada para quem trabalha na informalidade. Com essa modalidade, válida para quem fatura até R$ 60 mil por ano, o empreendedor não paga impostos para o governo federal. O tributo é um valor fixo mensal que vai de R$ 40 a R$ 45,40 dependendo do tipo de atividade. Em junho, o País atingiu a marca de 5 milhões de microempreendedores individuais, mas ainda há muito o que fazer. “Não é possível saber exatamente, mas a estimativa é de que o estoque de brasileiros com potencial para se tornarem microempreendedores individuais é de 5 milhões”, diz o presidente do Sebrae, Luiz Barretto.

 

O problema é que existe uma crise no meio do caminho. Com a retração da economia, a tendência é que o aumento da informalidade se sobreponha ao processo de formalização, que vinha evoluindo desde 2003. Um estudo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) em parceria com o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/IBRE), mostra justamente que a queda do trabalho informal vem perdendo força no Brasil. Essas instituições calculam desde 2003 o Índice de Economia Subterrânea, que estima o valor movimentado por atividades não declaradas ao poder público. No ano passado, o mercado informal representou 16,1% do PIB – ou R$ 826 bilhões. A queda é de apenas 0,2 ponto porcentual em relação a 2013. Nos últimos dez anos, esse indicador caiu quase cinco pontos porcentuais. “A deterioração do mercado de trabalho já dá indícios de que a economia subterrânea pode voltar a crescer. É bem provável que isso apareça no indicador de 2015”, diz o pesquisador do IBRE, Rodrigo Leandro de Moura.

 

O bolo no pote da Janete e os sabonetes da Valquíria devem contribuir com isso, ainda que elas não façam ideia do que seja essa tal economia subterrânea. Mas afirmam que, se pudessem, não fariam parte dela. Valquíria preferia estar empregada. Janete gostaria de ter sua confeitaria, com tudo certinho no papel.

 

Ao se distanciar dos gráficos e planilhas para se aproximar de casos como esses, o professor Hélio Zylberstajn costuma dizer que, o que chamam de “informalidade”, ele prefere chamar de “vida”. “É claro que o aumento do trabalho informal é ruim para economia, porque as pessoas estão produzindo bens e serviços às margens do sistema tributário”, diz. “Mas não dá para criticar. Elas estão fazendo, simplesmente, o que dá para fazer. É uma estratégia de quem precisa ganhar a vida.”

 

 

 

Eles perderam
o emprego e viraram
motoristas do Uber


UMA INTÉRPRETE, QUE JÁ FOI COMISSÁRIA DE BORDO,
E UM EX-VENDEDOR DA CASAS BAHIA AGORA PAGAM
SUAS CONTAS COM AS CORRIDAS DO APLICATIVO

 

Informal. Ex-vendedor da Casas Bahia, agora Vagner Rocha, de 33 anos, garante sua renda com o Uber.  ALEX SILVA/ESTADÃO

 

Eles não se conhecem. Ela mora sozinha no bairro de Perdizes, num apartamento alugado e já visitou quatro continentes nos dez anos em que foi comissária de bordo. Graduada em Letras e com fluência em inglês, virou tradutora e intérprete. Ele mora em São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, num terreno com três casas em que vivem a mulher, a filha de três anos, os avós e os pais. Vendedor desde a adolescência, ele nunca fez uma viagem internacional, nem fala uma palavra de inglês – mas está se preparando para começar um cursinho.

 

Érika Castellão tem 39 anos. Vagner Rocha, 33. Com histórias de vida distintas e trajetórias profissionais que dificilmente se cruzariam, os dois agora estão no mesmo barco. Ficaram desempregados no início deste ano e, sem perspectiva de voltar ao mercado de trabalho, viraram motoristas do Uber, o polêmico aplicativo que conecta motoristas particulares e passageiros.

 

O sistema chegou ao Brasil há um ano, com a Copa do Mundo, e até agora não existe uma norma para regular esse serviço. Os governos de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte dizem que o Uber é ilegal. Na capital paulista, os vereadores aprovaram por unanimidade o projeto de lei que proíbe a atuação de serviços como o Uber na cidade. No próximo dia 9, o texto passa por uma nova votação e segue para o gabinete do prefeito Fernando Haddad, que pode vetar ou transformar em lei o projeto. Enquanto isso não se concretiza, a fiscalização municipal tem ordem para apreender os carros que estiverem a serviço do Uber na cidade.

 

Os principais críticos do aplicativo são os taxistas. Eles temem pelo fim da atividade, sob o argumento de que não podem concorrer com uma empresa que presta o mesmo serviço sem precisar cumprir as mesmas obrigações regulatórias. Nas ruas, já há casos de motoristas do Uber que foram agredidos por taxistas. Por isso, Érika preferiu não ser fotografada para a reportagem. Rocha não se importa em aparecer e diz não ter medo dos concorrentes.

 

Foram eles, aliás, que praticamente o empurraram para o Uber. Em fevereiro, Vagner Rocha foi demitido da Casas Bahia, onde trabalhava havia quatro anos como vendedor em uma unidade da Zona Leste. A notícia não o abalou, porque já fazia planos de conseguir outro emprego. Com as vendas mais fracas, as comissões também encolheram e o salário que já chegou a R$ 3,5 mil não estava passando de R$ 1,2 mil por mês. Por sugestão de um amigo que tem um alvará de táxi, Rocha se matriculou em um curso para virar taxista. “Só que lá, eles não falavam de outra coisa que não fosse o Uber”, diz. “Eu nunca tinha ouvido falar disso, fiquei curioso, fui atrás e vi que seria bem mais simples para mim.”

 

Para trabalhar como motorista do Uber é preciso apresentar um atestado de antecedentes criminais, ter seguro que dê cobertura ao passageiro e carteira de habilitação com autorização para exercer atividade remunerada. Além disso, o veículo usado pelo motorista deve seguir os padrões exigidos por cada uma das categorias do Uber. O Black só aceita carros sedãs, pretos e com até três anos de uso. O X, mais modesto, permite veículos compactos, com até cinco anos de uso, e de qualquer cor que não seja branca.

 

A empresa fica com 20% de cada corrida e o motorista com os 80% restantes. É com esse dinheiro que Érika tem conseguido pagar as contas. Depois de trabalhar por dez anos como comissária de bordo, mais da metade desse período na Qatar Airways, ela decidiu abandonar a carreira para ter uma rotina mais estável no Brasil. Na volta, estudou Letras e começou a trabalhar como tradutora e intérprete. Seu último emprego foi numa empresa australiana de galvanização de zinco, onde começou ajudando os gringos a se comunicarem com clientes no País e terminou como “faz tudo”.

 

Na última sexta-feira, um estudo publicado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) concluiu que não há elementos econômicos que justifiquem a proibição de serviços de transporte individual de passageiros, como a Uber. O estudo foi divulgado um dia depois da presidente Dilma Rousseff ter afirmado que o aplicativo contribui para o desemprego de taxistas e que precisa ser regulado. “Análises econômicas sugerem que, sob a ótica concorrencial e do consumidor, a atuação de novos agentes tende a ser amplamente positiva”, disse o órgão, em nota à imprensa.ESTUDO DO CAD É FAVORÁVEL AO UBER

 

Há três meses, a multinacional decidiu dar um tempo do Brasil até as coisas se acalmarem por aqui e a economia voltar a crescer. “O problema é que, quando meu contrato foi encerrado, o mercado para intérpretes já estava muito ruim”, conta Érika. “Não há vaga em lugar nenhum, nem para freelancer.” Com a prestação de um carro zero para pagar, não foi difícil tomar a decisão de aderir ao Uber. Ela é livre para trabalhar nos dias em que quiser e por quantas horas desejar.

 

Essas condições, segundo o próprio aplicativo, são uma dos fatores que descaracterizam o vínculo empregatício entre a empresa e os motoristas. Mas essa relação também é polêmica. Na semana passada, um juiz federal em San Francisco, nos Estados Unidos, deu status de ação coletiva a um processo movido por três condutores da empresa, que querem ser reconhecidos como funcionários e não como prestadores de serviço. “Essa é uma questão bem sensível para a companhia”, diz a coordenadora do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito, Mônica Guise Rosina. “Afinal, ela consegue ganhar dinheiro justamente porque não contrata ninguém.”

 

No Brasil, esse tipo de contestação ainda não começou a aparecer. Os motoristas não têm carteira assinada, nem precisam emitir nota fiscal, portanto, se não quiserem, também não são obrigados a declarar seus rendimentos, nem a recolher impostos. “Eu, por enquanto, sou informal mesmo e não faço planos de me formalizar”, diz Rocha. “Nem sei como seria isso, para falar a verdade.”

 

 

US$ 53 bilhões

é em quanto o Uber está avaliado

 

 

A pesquisadora da FGV, usuária frequente do Uber em São Paulo, e entrevistadora contumaz dos motoristas com quem tem contato, diz que muitos deles se declaram autônomos. “Como é tudo muito recente fica difícil tirar conclusões, mas acho complicado que ele seja informal”, diz Mônica. “Como o pagamento não é feito em dinheiro, a transação com o passageiro fica registrada de alguma forma.”

Em nota, o aplicativo informou que “não existe nenhum tipo de ingerência ou controle do Uber com relação aos motoristas parceiros, que são totalmente autônomos e livres para exercer suas atividades da forma como melhor lhes convém”. Segundo a empresa, “os motoristas não são, portanto, considerados empregados e não existe terceirização de serviços”.

 

Tanto Érika quanto Rocha não entram muito nessa discussão. Por enquanto, o que importa para os dois é que o dinheiro está caindo na conta. A diferença é que, para ela, a Uber é temporário – um bico até que as empresas voltem a contratar intérpretes. Para Rocha, que tem trabalhado até 12 horas por dia na rua, o aplicativo virou um projeto de vida – tanto que quer aprender a falar inglês para se comunicar com os gringos que pedirem seus serviços. “É dele que eu vou tirar o sustento da minha família daqui para frente.”

Capítulo 2

ELES PEDIRAM DEMISSÃO PARA EMPREENDER