Pairando sobre um recife no mar de Abrolhos, o biólogo Rodrigo Leão Moura aponta para uma colônia desbotada de corais-de-fogo, depois arrasta o dedo indicador como uma navalha pela própria garganta, num sinal de guilhotina. A visibilidade debaixo d'água não é das melhores, mas a mensagem é clara: o coral está morto. E nem é preciso abrir uma investigação para determinar a causa. As evidências estão espalhadas à nossa volta por todo o recife, na forma de corais anêmicos, brancos como fantasmas.
É um cenário fúnebre. Por trás de nossas máscara de mergulho, nos sentimos como parentes ansiosos numa sala de hospital, observando pacientes na UTI por uma parede de vidro.
O fenômeno, conhecido como branqueamento, é causado pelo superaquecimento da água do mar. Quando a temperatura passa de 28 °C por vários dias seguidos, os corais perdem as microalgas simbiontes (chamadas zooxantelas) que lhes dão cor e são responsáveis por realizar a fotossíntese dentro de suas células; exercendo uma função equivalente à dos cloroplastos nas células vegetais. Sem elas, os corais não conseguem produzir energia suficiente para sustentar seu metabolismo e ficam debilitados, como se fossem árvores sem folhas no verão. O resultado pode ser passageiro ou pode ser fatal, dependendo da duração do evento e de uma combinação de fatores ambientais e genéticos que os cientistas ainda não compreendem totalmente.
Moura e seus colegas da Rede Abrolhos de pesquisa estão na água justamente por isso. Eles querem entender como os corais de Abrolhos estão resistindo (ou não) ao branqueamento, e o que isso significa num cenário de longo prazo, em que as mudanças climáticas prometem tornar eventos de anomalia térmica como esse cada vez mais frequentes.
“O que a gente está vendo é um sinal claro de perda de saúde do ecossistema”, alerta Moura, professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em ecologia e conservação de organismos marinhos.
É natural que eventos de branqueamento ocorram de tempos em tempos, sem maiores consequências para os recifes. O que preocupa os pesquisadores é a frequência desses eventos, a quantidade de corais afetados e o acúmulo disso com outros fatores de estresse ambiental — como sobrepesca, poluição e proliferação de algas —, que reduzem a capacidade dos corais de sobreviver ao branqueamento. “Desde 1997 eu venho pra cá praticamente todos os anos e essa escalada de degradação está cada vez mais intensa, cada vez mais rápida”, alerta Moura.
Localizado entre o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, com 46 mil quilômetros quadrados , o Banco dos Abrolhos é a região de maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul. Abriga uma série de ecossistemas recifais únicos, com espécies e configurações estruturais que não existem em nenhum outro lugar do mundo.
“O branqueamento em massa dos recifes de Abrolhos mostra que esse ecossistema está se aproximando de um colapso de grandes proporções”, completa Moura. “Caso os episódios de anomalias térmicas desse tipo se tornem mais intensos e frequentes, os corais não vão resistir.”
Entenda como funciona o processo de branqueamento, que enfraquece o coral e pode levá-lo à morte
Entenda como funciona o processo de branqueamento, que enfraquece o coral e pode levá-lo à morte
Esse foi o primeiro evento de branqueamento em massa registrado na região desde que os pesquisadores da rede passaram a monitorar sistematicamente os recifes de Abrolhos, em 2003. Antes disso, há um registro de 1994, feito pelo pesquisador Clovis Castro, do Museu Nacional da UFRJ; e é provável que algo semelhante tenha ocorrido em 1998, quando houve um grande evento global de branqueamento — mas não houve monitoramento em Abrolhos naquele ano. O fenômeno costuma ocorrer em anos de El Niño intenso, como foi o caso agora.
Desde o fim de 2014, a Agência Nacional Atmosférica e Oceânica (NOAA) dos Estados Unidos vinha alertando para o risco de um novo ciclo global de branqueamento, que poderia durar mais de dois anos. As previsões se confirmaram ao longo de 2015 — o ano mais quente já registrado pelo homem —, com relatos de branqueamento em massa de corais em várias regiões do Índico e do Pacífico.
No início deste ano, a ameaça chegou a Abrolhos. As previsões do Coral Reef Watch, o sistema de monitoramento global da NOAA, era de que o risco de branqueamento seria altíssimo a partir da última semana de março. Pesquisadores da Rede Abrolhos, que já haviam feito sua expedição de rotina à região em fevereiro, voltaram para a água em maio e encontraram exatamente o que a agência americana havia previsto: águas superaquecidas e uma quantidade imensa de corais branqueados, espalhados por todo o Banco dos Abrolhos.
A preocupação foi imediata. Naquele mesmo período, notícias e imagens chocantes vindas do outro lado do mundo, na Austrália, indicavam que 80% da Grande Barreira de Corais estava branqueada, com índices altíssimos de mortalidade. Seria esse também o destino dos recifes de Abrolhos? O branqueamento já era uma realidade. Faltava saber se os corais sobreviveriam a ele.
Os corais são a base biológica fundamental de todo o ecossistema recifal. Sem eles, o recife deixa de ser um estrutura viva, dinâmica, em constante transformação, e passa a ser uma estrutura inerte, equivalente a um amontoado de pedras. E se em cima disso desaparecem os peixes herbívoros, o recife passa a ser dominado por algas filamentosas de crescimento rápido, deflagrando um processo gradual de deterioração da biodiversidade de todo o sistema. É como se uma floresta tropical fosse substituída por um terreno baldio.
Efeito prolongado
No fim de junho, os cientistas voltaram à região para uma nova inspeção, acompanhados pela reportagem do Estado; e mais uma vez se assustaram com o que viram. Sensores instalados nos recifes mostravam que a temperatura da água já estava normal (por volta de 26 °C) desde o início de maio; e ainda assim havia muitos corais branqueados por toda parte. “A duração do evento me surpreendeu. Não esperava chegar aqui em junho-julho e encontrar um nível ainda tão alto de branqueamento”, declarou Moura, ao voltarmos de um mergulho no recife Sebastião Gomes, 15 quilômetros ao largo de Caravelas, no extremo sul da Bahia.
Sua estimativa preliminar é que todas as espécies de coral da região foram afetadas pelo branqueamento, em maior ou menor grau; e 20% delas sofreram algum nível de mortalidade. Fazer um diagnóstico mais preciso é difícil, pois a resposta dos corais ao branqueamento foi extremamente variada, não só no tempo e no espaço, mas também entre espécies e indivíduos. Em vários pontos encontramos colônias vizinhas de corais da mesma espécie, sendo que uma delas estava branqueada e a outra não, apesar de ambas estarem expostas às mesmas condições ambientais.
Áthila Bertoncini/Rede Abrolhos
A explicação para isso pode estar relacionada a características individuais de cada colônia, segundo o pesquisador Paulo Salomon, especialista em ecologia e microbiologia marinha da UFRJ. Da mesma forma que algumas pessoas são mais saudáveis do que outras, alguns corais podem ser individualmente mais resistentes ao branqueamento do que outros — o que é bom para os corais, mas torna ainda mais difícil para os cientistas prever o que vai acontecer com eles numa próxima anomalia térmica.
“Que bom seria se a natureza fosse simples, mas não é”, diz Salomon. O conhecimento científico sobre essas interações biológicas e ambientais entre microalgas e corais em Abrolhos ainda é limitado. “É um cenário de muitas perguntas e poucas respostas, por enquanto”, avalia Moura.
O grupo mais afetado pelo branqueamento desta vez foi o dos corais-de-fogo do gênero Millepora, muito comuns no topo dos chapeirões — os enormes recifes verticais, em forma de cogumelo, que são uma das marcas registradas de Abrolhos. Em maio, eles estavam quase que totalmente branqueados, como arbustos fantasmagóricos espalhados pelo topo e pelas bordas dos recifes. Dois meses depois, quando os cientistas voltaram à cena, parte das colônias estava morta, especialmente nos recifes mais próximos da costa, enquanto que outras estavam recuperadas ou parcialmente coloridas, com prognóstico ainda incerto.
Os corais-de-fogo são os únicos corais ramificados do Atlântico Sul, e por isso atendem a uma demanda ecológica essencial nos recifes de Abrolhos, servindo de refúgio para peixes jovens e outros pequenos organismos que precisam se esconder de predadores. Uma vez mortos pelo branqueamento, eles são rapidamente cobertos por algas e perdem essa função protetora.
A boa notícia é que os famosos corais-cérebro da espécie Mussismilia braziliensis, que só existem no Brasil e são espécies-chave dos recifes de Abrolhos, não foram afetados tão duramente pelo branqueamento, apesar de também haver variabilidade nas respostas. A espécie Montastraea cavernosa, muito abundante nas paredes dos chapeirões e outras áreas menos iluminadas e mais profundas dos recifes, também parecia estar se recuperando bem, apesar de ter sido fortemente branqueada. “Talvez não seja hora de acender as velas do fim do mundo ainda”, pondera Moura.
Essas avaliações são baseadas em metodologias padronizadas de monitoramento, em que os cientistas visitam as mesmas áreas dos recifes regularmente para registrar o estado de saúde dos corais, quantidade de algas, abundância de peixes e outros parâmetros importantes de qualidade ambiental. Os dados colhidos nessas últimas expedições estão sendo computados para fazer um diagnóstico mais preciso da situação.
Pesquisa
Em todas as expedições, os pesquisadores coletaram amostras de corais branqueados e não branqueados de várias espécies. Algumas amostras foram levadas embora vivas, dentro de saquinhos plásticos com água do mar. Outras foram submetidas a um processo de raspagem, em que o tecido do coral é macerado até virar uma gosma e acondicionado em tubinhos, para realização de análises genéticas e caracterização das microalgas presentes no coral.
Salomon já tem uma coleção de quase 20 linhagens de zooxantelas sendo cultivadas em seu laboratório, na Ilha do Fundão (RJ), que ele utiliza para uma série de experimentos, com o intuito de entender melhor sua biologia e a maneira como elas reagem a diferentes condições ambientais. Está claro que a simbiose delas com os corais se desfaz quando a temperatura da água ultrapassa 28 °C por um determinado período de tempo (uma a duas semanas), mas os mecanismos físicos e bioquímicos que controlam esse processo são variados e ainda não foram totalmente elucidados. Não se sabe ao certo, por exemplo, se as zooxantelas são expulsas pelo coral, saem por conta própria, morrem, ou se tudo isso acontece ao mesmo tempo em diferentes espécies. “Estamos separando as peças do sistema e testando cada uma isoladamente para tentar explicar o que está acontecendo”, diz Salomon.
Não há como impedir que o branqueamento ocorra, dizem os pesquisadores, mas é possível influenciar a capacidade dos corais de sobreviver a esses eventos — a chamada resiliência do sistema. O aumento da temperatura da água é o principal gatilho ambiental, mas não é o único. Outros fatores, como o excesso de radiação solar e a exposição a poluentes, podem influenciar tanto a ocorrência quanto a resistência dos corais ao fenômeno.
O impacto do branqueamento foi nitidamente maior nos recifes mais desprotegidos e próximos da costa — mais acessíveis aos pescadores — do que nos recifes mais afastados e protegidos do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, onde a pesca é proibida. Segundo os pesquisadores, isso pode estar relacionado tanto ao efeito da poluição costeira (incluindo o aporte de sedimentos oriundos das operações de dragagem na barra de Caravelas) quanto à menor densidade de budiões e outros peixes herbívoros nesses ambientes costeiros, por causa do excesso de pesca.
Pode-se pensar nesses peixes como jardineiros, que controlam a proliferação de “ervas daninhas” nos recifes. Sem a ajuda deles, as chances de os corais serem sobrepujados pelas algas num momento de fraqueza é muito maior.
“Temos que manter o ecossistema o mais próximo possível de um estado de equilíbrio, sempre, para que ele tenha condições de se recuperar sozinho quando pressionado”, diz o biólogo Gilberto Amado Filho, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que também participa da Rede Abrolhos.
Mudança de fase
O maior medo dos pesquisadores é que Abrolhos esteja num processo de “mudança de fase”, que seria a transformação de um sistema saudável, dominado por corais e onde predomina a construção recifal (impulsionada pela constante biomineralização de carbonato de cálcio), para um sistema dominado por algas e outros organismos oportunistas, onde predomina a erosão. “O recife é como um condomínio em construção, que deve estar sempre crescendo”, compara Amado Filho. “Quando os corais morrem, as algas tomam conta e a construção dá lugar à erosão. O recife passa a ser destruído, literalmente.”
Branqueamentos esporádicos e de baixa intensidade não são um problema. Mas o aumento da frequência de El Niños, em função do aquecimento global, somado a um agravamento das ameaças locais, cria um cenário preocupante; especialmente para os recifes mais próximos da costa. “Temos que diminuir a erosão costeira, diminuir as dragagens, coibir a sobrepesca”, alerta Amado Filho.
Ainda que nenhum país tenha condições de conter o aquecimento global sozinho, os estudos deixam claro que é possível agir localmente para minimizar seus efeitos sobre os recifes coralíneos. “O que vai acontecer com esse ecossistema daqui para frente é responsabilidade da nossa geração; não adianta empurrar esse problema para frente”, avalia Moura.
Protetor solar
A alta concentração de recifes de coral no sul da Bahia deve-se a um prolongamento da plataforma continental nessa região, que proporciona condições ideais para o desenvolvimento dessas estruturas: águas rasas, quentes e razoavelmente transparentes. O fato de não serem tão cristalinas quanto as do Caribe ou da Austrália pode ser desfavorável ao turismo, mas pode também ser um ingrediente essencial da resiliência desses ecossistemas brasileiros ao branqueamento.
A turbidez da água funciona como uma espécie de “filtro solar”, que protege os corais de uma exposição excessiva à radiação ultravioleta — que, associada ao aumento de temperatura, pode desencadear ou agravar o branqueamento, segundo o pesquisador Clovis Castro, professor do Museu Nacional da UFRJ e coordenador do Projeto Coral Vivo. “Muitas vezes é a luz que leva a um quadro mais grave”, explica.
Outra possibilidade é que os corais brasileiros, por uma questão evolutiva de adaptação a essas condições de água mais turva, sejam menos dependentes de zooxantelas para sua sobrevivência. “Já tivemos vários eventos de branqueamento no Brasil e até hoje ninguém relatou uma mortalidade em massa de corais”, pondera Castro.
Cento e cinquenta quilômetros ao norte do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, também seguindo o alerta da NOAA, cientistas do Projeto Coral Vivo fizeram um monitoramento sistemático dos efeitos do branqueamento no Parque Natural Municipal do Recife de Fora, em Porto Seguro. Amostras de corais foram coletadas a cada 15 dias durante seis meses; antes, durante e depois do evento.
Alguns pontos do recife foram mais afetados do que outros; mas no geral, a recuperação dos corais foi bastante positiva, segundo Castro. “Como nos outros eventos, não detectamos nenhuma mortalidade significativa. Pouco tempo depois do evento, as colônias já estavam recuperando a cor.”
Um cenário bem diferente do observado nos recifes da Grande Barreira de Corais da Austrália, onde estima-se que mais de 20% dos corais tenham morrido em decorrência do branqueamento no mesmo período — com a mortalidade podendo chegar a 80% em alguns recifes mais impactados.
“Felizmente os recifes do Brasil não estão sofrendo tanto quanto os do exterior”, suspira Castro. “Mas não sabemos até quando.”