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A infância

“Caim, onde está o teu irmão?” Jorge Bergoglio martelava a multidão em silêncio na Lampedusa ensolarada com a pergunta feito por Deus no Gênesis. “Caim, onde está o teu irmão?” O altar de onde se ouvia a frase havia sido montado em cima dos destroços de um navio, uma embarcação que transportava imigrantes clandestinos - quase todos negros, quase todos muçulmanos - que se despedaçara diante da pequena ilha italiana.

“Caim, onde está o teu irmão? A voz do teu sangue grita até mim.” Dez mil pessoas em silêncio escutavam a pergunta feita pelo papa Francisco. “Essa não é uma pergunta feita aos outros, mas a mim, a ti e a cada um de nós. Esses nossos irmãos e irmãs tentavam sair de uma situação difícil para encontrar um pouco de serenidade e de paz, procuravam um lugar melhor para eles e suas famílias, mas encontraram a morte.” Bergoglio saiu de Roma para encontrar a periferia da Itália, onde a Europa mais se aproxima da África. E disse que a sociedade se “esquecera da experiência de chorar, de sofrer com os outros”.

Perón

Juan Domingos Perón foi o mais influente político argentino do século 20. Como coronel, tornou-se secretário do Trabalho em 1943, depois de um golpe militar. Tornou-se presidente em 1946 e foi deposto em 1955. Continuou no exílio a influenciar a política argentina até que em 1973 foi autorizado a voltar ao país. Os peronistas chegaram ao poder novamente naquele ano. Perón tornou-se novamente presidente em 1974 e morreu no poder, sendo substituído no cargo por sua mulher, Isabelita Perón, que foi deposta pelos militares em 1976. Desde a redemocratização da argentina, em 1983, somente em dois períodos o país não foi governado por peronistas – de 1983 a 1989 e de 1999 a 2001.

Francisco, o papa que veio do fim do mundo, resolveu que a Igreja deve reaprender a andar. A Buenos Aires de Bergoglio começava a chorar a morte de Carlos Gardel quando o futuro papa nasceu em 17 de dezembro de 1936 - uma quinta-feira. Bergoglio foi o primeiro dos cinco filhos do contador Mario José Francisco Bergoglio e da dona de casa Regina María Sívori. A família ocupava a casa 531 da Rua Membrillar, no bairro de Flores. E era toda de origem italiana - o pai era piemontês, a mãe, filha e neta de italianos.

A capital argentina aprendia a conhecer a figura de Juan Domingos Perón, que dominaria a política nacional pelas próximas décadas, quando Rosa Margarita Vasallo começou a ensinar o neto primogênito a rezar, o que a fez marcar para sempre a fé do futuro papa. O país conhecia um período de prosperidade que o tornaria socialmente muito diverso de seus vizinhos. Na infância de Bergoglio não faltaram o pão ou a roupa. Não conhecera excessos.

O pai acreditava que os filhos deviam trabalhar e Bergoglio o obedeceu sem deixar os estudos - formou-se técnico em química. O despontar do peronismo - e o antagonismo por ele despertado, o culto a Gardel e ao tango e a mania popular pelo futebol marcariam profundamente o ambiente no qual o futuro papa cresceria.

Se a avó Rosa foi responsável pela , foi por meio do pai que Francisco conheceu sua paixão pelo San Lorenzo, o time de futebol nascido no bairro de Almagro. Quando o contador Mário José ia jogar basquete no clube, o menino e os irmãos o acompanhavam. Aos poucos, passou a jogar também, mas o que ele gostava mesmo era de ir ao estádio assistir aos jogos de futebol.

A família toda comparecia para apoiar o San Lorenzo. Foi assim em 1946, quando a equipe sagrou-se campeã argentina pela segunda vez. “Eram outros tempos. O máximo que se dizia ao árbitro era vagabundo, sem-vergonha, vendido... Ou seja, nada em comparação com os epítetos de agora”, contou a Sergio Rubin e a Francesca Ambrogetti, os autores do livro El Jesuita.

Aos sábados, contou Bergoglio em uma de suas raras entrevistas, a família acompanhava as transmissões de óperas da Rádio Del Estado. O menino cresceu, colecionou selos, jogou bola na praça do bairro e começou a namorar. Logo depois de sua eleição como papa, a história do amor de Jorge e Amália foi assim relatada pela jornalista Adriana Carranca, de O Estado:

Papa Francisco - Namorada de infância “Ali, sob a sombra de uma árvore, declarou seu amor de menino a Amália Damonte. Então com 12 anos, eles moravam a quatro casas de distância, trocavam olhares e mensagens, mas poucas palavras, às escondidas.
Quando o pai descobriu em posse da filha uma carta de amor, deu-lhe uma surra e a proibiu de sair, o que teria levado Bergoglio a fazer a primeira de muitas promessas que viriam: 'Ou você se casa comigo ou vou ser padre', conta Amália, sob flashes de fotógrafos, no jardim do sobrado onde nasceu há 76 primaveras. 'Sinto orgulho das nossas origens e de vê-lo agora se tornar papa', disse ao Estado.”


Leia o texto completo.

Bergoglio contou que Amália fazia parte de um grupo de amigos com quem costumava dançar. E disse a razão pela qual terminou o namoro: “Descobri minha vocação religiosa.”

Papa Francisco - Fé
A igreja de São José, no bairro de Flores: vocação foi descoberta ali.

Uma experiência religiosa mudou a vida de Bergoglio. O jovem tinha 17 anos e caminhava com a namorada e os amigos quando sentiu vontade de se confessar ao passar em frente da igreja São José de Flores. Separou-se do grupo, que seguiu à festa da primavera. Era 21 de setembro de 1954. Em A Vida de Francisco, a jornalista argentina Evangelina Himitian, reproduz a versão do papa Francisco sobre o episódio em uma entrevista que o então cardeal Bergoglio deu a uma rádio comunitária de sua arquidiocese:

“Eu frequentava essa igreja. E simplesmente entrei ali. Senti que tinha de entrar. Essas coisas que você sente por dentro. Que não sabe como. E olhei. Estava escuro nessa manhã de setembro. E vi que um padre vinha caminhando. Não o conhecia. Não era da igreja. Sentou-se no último confessionário, à esquerda, olhando para o altar. E aí eu já não sei o que me aconteceu... Senti como se alguém me agarrasse por dentro e me levasse ao confessionário. Não sei o que aconteceu ali. Evidentemente lhe contei minhas coisas, me confessei. Mas não sei o que aconteceu. E, quando terminei de confessar, perguntei ao padre de onde era, porque não o conhecia. Disse-me: 'Sou de Corrientes e estou morando perto, no lar sacerdotal. Venho celebrar missa aqui, na paróquia, de vez em quando'. Tinha câncer, uma leucemia. Morreu no ano seguinte. Ali senti que tinha de ser padre. Não hesitei, não hesitei.”

Bergoglio não tem dúvida. Deus o esperava e foi ao seu encontro, pois está sempre um passo a frente. O jovem contou ao pai e depois à mãe que ia ser padre. Enfrentou a contrariedade materna. “Não sei... Não o vejo padre. Vai ter de esperar um pouco. Você é o mais velho. Continue trabalhando, vai acabar a faculdade.” O jovem se trancava no quarto e, em vez de livros de medicina, Bergoglio se debruçava nos livros de teologia e filosofia. Ao 21 anos entrou finalmente no seminário arquidiocesano. Pouco tempo depois, entrou para a Companhia de Jesus. Decidira tornar-se um jesuíta.

Mal entrara para a vida religiosa e o futuro papa foi acometido por uma pneumonia grave, que quase o matou. A doença mudaria seu destino. Deixou de ser missionário no Japão porque acreditava-se que a falta de parte do pulmão direito o incapacitaria para o trabalho no Oriente. Francisco foi ordenado padre em 13 de dezembro de 1969. E desde então passou a se apresentar dizendo: “Eu sou Jorge Bergoglio, padre”. Os jesuítas são os únicos integrantes de uma ordem religiosa que, além dos votos de pobreza, obediência e castidade, fazem um quarto, o de obediência ao papa. Os três primeiros são vitalícios. Quando são ordenados ao término de 14 anos de formação, assumem ainda o compromisso de renunciarem a todos as dignidades da igreja, do bispado ao cardinalato. Apenas duas exceções são previstas: no caso de um dos integrantes da Companhia de Jesus ser enviado à uma terra de missão ou por pedido expresso do papa.

Durante sua formação, o papa estudou e viveu no Chile, na Espanha e na Alemanha. Era o tempo em que a Igreja fora sacudida pela decisão de Angelo Roncalli, o papa João XXIII, de convocar o Concílio Vaticano II. Tempo da encíclica Populorum Progressio, do sucessor de Roncalli no trono de Pedro, o papa Paulo VI. Não bastava mais a ação caridosa para salvar almas. Era preciso que a Igreja se inserisse na realidade que se vivia.

Em 1968, para atualizar a Igreja da América Latina, os bispos da região se reuniram em Medellín, na Colômbia. Caminhava-se para afirmar a opção preferencial pelos pobres, mesmo que para tanto se usasse uma hermenêutica marxista. Era dever de todo católico - leigo ou religioso - intervir na realidade que o cercava, ainda mais no continente em que era preciso mudar suas estruturas, pois aqui “a injustiça era institucionalizada”. Nascia a Teologia da Libertação e uma Igreja fortemente marcada pela oposição aos regimes militares instalados na região nos anos 1960 e 1970, que contou com mártires no Brasil, na Argentina, no Chile, na Colômbia e em El Salvador, entre eles d. Oscar Romero, o arcebispo assassinado por um comando paramilitar da direita salvadorenha durante uma celebração na catedral de San Salvador

Enquanto assistia a essa reviravolta na Igreja de seu continente, Bergoglio estudava. Como todo jesuíta. Também se tornou professor. Entre 1964 e 1965, deu aulas no tradicional Colégio da Imaculada Conceição, na cidade de Santa Fé. Tinha 28 anos quando chegou ao lugar para ensinar literatura, psicologia e arte. Um dia surpreendeu um aluno com um dos volumes da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino. Achou fantástico que o jovem Jorge Milia consultasse aquele livro com cheiro de umidade. Mas o advertiu: “Você está louco, quer se suicidar.” Futuro jornalista e escritor, Milia ficou de exame certa vez e sua banca contava com Bergoglio. A cena é descrita por Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti em El Jesuíta:

“-‘Vejamos, garoto, que bolinha escolhe?’, perguntou um dos integrantes. ‘Nenhuma!’, respondeu seu professor por ele. E acrescentou, em meio ao desconcerto dos presentes: ‘Ele vai falar da matéria toda’. O terceiro da mesa, para descontrair, disse ironicamente: ‘O bom disso é que não há nada que tenha estudado inutilmente’.

No fundo da classe ouviu-se um murmúrio e um dos colegas, lacônico, prognosticava: ‘Vão crucificá-lo’. Entretanto, os integrantes da mesa não interromperam a exposição do jovem nem fizeram perguntas. Por fim, seu professor falou: ‘A nota que lhe caberia seria dez, mas temos que lhe dar nove, não para castigá-lo, mas para que sempre se lembre de que o que conta é o dever cumprido dia a dia: realizar o trabalho sistemático, sem permitir que se torne rotina: construir tijolo a tijolo, mais que o arroubo improvisador que tanto seduz’.”

Siglo de Oro

Assim é conhecido o período áureo do teatro espanhol, que compreende desde o renascimento (século XV) até o barroco (século XVII) e inclui autores como Lopes de Vega (autor de Fuenteovejuna e Los Locos de Valencia), Calderón de la Barca (La vida es sueño), Miguel de Cervantes (La Numancia) e Tirso de Molina (El burlador de Sevilla).

De origem italiana, Bergoglio tem uma coisa em comum com o papa emérito Joseph Ratzinger: a paixão pela Commedia de Dante Alighieri e pela obra de Dostoievski. O papa, que foi professor de literatura, é apaixonado por Alessandro Manzoni (I Promessi Sposi, que ele leu quatro vezes) e pela poesia de Hölderlin. Do Siglo de Oro a García Lorca, nada escapava ao professor. Prova disso foi que em sua visita a Lampedusa, o papa Francisco usou a literatura espanhola para admoestar a indiferença diante da tragédia dos imigrantes clandestinos mortos em um naufrágio. Lembrou então da história de Fuente Ovejuna, a peça de Lopes de Vega, que conta a história da cidade que quis se livrar do governador e o matou sem que ninguém soubesse quem era o autor. E quando o juiz quis saber quem cometera o crime, todos responderam: “Fuente Ovejuna, señor”. Bergoglio concorda com a filósofa Hanna Arendt sobre os crimes cometidos pelo regime nazista: “Onde todos são culpados, ninguém o é verdadeiramente”. Ou como disse Francisco: “Não é negócio meu, não me interessa, não me diz respeito.”

Papa Francisco - Jorge Luis Borges

Tudo, menos a indiferença ou a soberba, o pecado que mais o repugna. Ainda professor em Santa Fé, Bergoglio conheceu Jorge Luis Borges, um exemplo para o futuro papa.

“- Borges tinha a genialidade de falar praticamente de qualquer coisa sem alardear.”

- Borges era agnóstico...

- Um agnóstico que todas as noites rezava o pai-nosso, porque o prometera a sua mãe, e que morreu assistido religiosamente.”
(El Jesuita)

A política

Papa Francisco - bandeira argentina

O telefone do padre tocou. Do outro lado, uma militante comunista pedia ao sacerdote que fosse à sua casa dar a extrema unção a um parente. Tudo parecia estranho naquele país. A violência política o convulsionara de tal forma que a decisão de os militares de consertá-lo na marra em 1976 pareceu normal. Ela desataria a espiral de uma insanidade totalitária que almejava o fim dos antagonismos sociais, o que só poderia construir uma ordem desumana.

O golpe que depôs Isabelita Perón em 24 de março de 1976 instalou uma junta militar formada pelo general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando Ramon Agostí. O regime resolveu tratar como inimigo de guerra toda oposição ao governo. Sequestrou, torturou e matou 30 mil argentinos e manteve outros milhares em campos de concentração como La Perla e a Escola Mecânica da Armada (Esma) e se desfez das pessoas jogando seus corpos no mar.

A militante comunista que telefonara para Bergoglio se chamava Esther Ballestrino de Careaga. O religioso conhecera Esther nos anos 50, quando trabalhava em uma empresa de análises químicas. Esther era sua superiora e marcou profundamente a formação de Francisco com sua ética para o trabalho. Queria que o então padre fosse à sua casa, pois precisa se livrar de livros de sua filha – ela havia sido detida e libertada e temia que voltassem a prendê-la.

As mães dos desaparecidos começaram a se reunir na Igreja de Santa Cruz, no bairro de San Cristóbal – o grupo daria origem às Mães da Praça de Maio. Lá estava Esther entre elas. Nos dias 8 e 10 de dezembro de 1977, militares comandados pelo capitão da Marinha Alfredo Astiz sequestraram 12 pessoas do grupo, levando-as para a Esma. As freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet, Esther e os demais integrantes do grupo foram torturados, dopados, colocados em um avião da Marinha e jogados vivo ao mar. Dias mais tarde o corpo de Esther apareceu em uma praia

A esquerda armada argentina

Durante os anos 1970 e 1980, dois grandes grupos nascidos do peronisno (Montoneros) e do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, o PRT (Exército Revolucionário do Povo, o ERP) decidiram aderir à luta armada. A forte influência do guevarismo e a crítica em relação às direções tradicionais dos partidos – como o comunista – levaram à decisão de fazer a revolução pela armas. O ERP tentou criar um foco guerrilheiro em Tucumán, prontamente desbaratado pelo Exército argentino. Com os Monteneros, sequestraram empresários para financiar a guerrilha e mataram militares e policiais, como o general Pedro Eugênio Aramburu, ex-presidente argentino. Cada um desses grupos contou com cerca de 5 mil militantes mortos e desaparecidos durante os anos de chumbo.

O sofrimento pela perda da amiga foi ofuscada pelo mais polêmico caso envolvendo a vida de Bergoglio. Trata-se do sequestro dos jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics. Era 23 de maio de 1976 quando os dois sacerdotes foram sequestrados no bairro Rivadavia, no Bajo Flores, ao lado da favela Villa 1-11-14. Os dois foram levados por um comando da Marinha para a Esma, onde os torturaram. Queriam saber da suposta ligação deles com uma catequista com quem haviam trabalhado – ela se havia ligado à guerrilha. Os padres foram transferidos em seguida para outro cárcere clandestino onde permaneceram durante cinco meses vendados e algemados até serem libertados. Quatro catequistas e seus maridos sequestrados no mesmo dia com os padres nunca mais apareceram.

Considerados “esquerdistas” pelos militares, os padres eram suspeitos de ligação com a guerrilha, uma das mais fortes e atuantes da América Latina. Esta contava com dois grandes grupos: o Exército Revolucionário do Povo (ERP) e os Montoneros. O sequestro deles ocorreu no momento em que ambos estavam em conflito com a direção da Companhia de Jesus na Argentina – o provincial da ordem desde 5 de agosto de 1973 era Jorge Bergoglio.

Papa Francisco
Militantes das Mães da Praça de Maio com o cartaz em homenagem às fundadoras; no cartaz, Esther Careaga é a primeira à esquerda

Bergoglio havia ordenado aos dois que deixassem a comunidade em que viviam. Eles se negaram durante quase dois anos. Os dois jesuítas recorreram ao seu superior: Pedro Arrupe, que decidiu dissolver a comunidade em fevereiro de 1976. Quando o golpe veio, os dois Yorio e Jalics estavam suspensos. Nascia a suspeita de que o provincial os havia deixado desprotegido, expostos aos militares, de acordo com o jornalista Horácio Verbitsky, o maior acusador do novo papa. Teria feito mais: teria dito que os dois tinham ligações com a guerrilha.

Bergoglio teve de se explicar mais tarde, durante o processo judicial que mandou para a cadeia 17 militares acusados de sequestros e assassinatos cometidos na Esma - 12 condenados à prisão perpétua e cinco a penas que iam de 18 a 25 anos de prisão. Ouvido como testemunha, disse que tentou por quatro vezes interceder pela libertação dos padres. Encontrou-se com dois integrantes da junta – o almirante Massera e com o general Videla. Insistiu para que fossem libertados. Depois, ajudou-os a deixar a Argentina. Yorio morreu em 2000. Jarlics é vivo. Após a eleição de Francisco, isentou o papa de qualquer responsabilidade em sua prisão.

Em 2005, um exame de DNA mostrou que o corpo enterrado como indigente em Buenos Aires era de Esther Ballestrino de Careaga, a amiga do papa. O então cardeal arcebispo de Buenos Aires intercedeu para que o desejo da família da amiga fosse cumprido: enterrá-la no jardim da igreja de Santa Cruz, em que ela, as freiras francesas e as militantes pelos direitos humanos Maria Ponce de Bianco e Azucena Villaflor haviam sido sequestradas pelos militares.

A Igreja e a ditadura

Em 2000, a Igreja argentina pediria perdão por causa da ligação de muitos de seus bispos com o regime. Um padre – Christian Von Wernich – transformou-se no símbolo da colaboração da Igreja Católica com a ditadura. Ele foi o primeiro padre a ser condenado por crimes contra a Humanidade em toda a História das Américas. Von Wernich foi condenado a prisão perpétua por 7 homicídios, 31 casos de torturas e 42 sequestros durante o regime militar.

“Lembro uma reunião com uma mulher levada por Esther Balestrino de Careaga, aquela mulher que, como contei antes, foi minha chefe no laboratório, que tanto me ensinou de política, depois sequestrada e assassinada e hoje enterrada na igreja portenha de Santa Cruz. A senhora, oriunda de Avellaneda, na Grande Buenos Aires, tinha dois filhos jovens com dois ou três anos de casados, ambos trabalhadores de militância comunista, que haviam sido sequestrados. Viúva, os dois rapazes eram as únicas pessoas que tinha na vida. Como essa mulher chorava! Essa imagem não vou esquecer jamais. Fiz algumas averiguações que não me levaram a lugar nenhum, e com frequência me recrimino por não ter feito o bastante.”
(Jorge Bergoglio em El Jesuita)

A redemocratização do país, após a derrota na guerra das Malvinas, surpreenderia o papa em seu desterro no interior da Argentina. Os militares de seu país haviam então lançado mão de uma carta arriscada: a invasão das Ilhas Malvinas, domínio britânico no Atlântico sul. A Grã-Bretanha reagiu, mandou sua armada, retomou a ilha e impôs uma derrota humilhante aos argentinos, abrindo caminho para o fim do regime. O governo de Raul Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR), levou ao banco dos réus os chefes das juntas militares – a maioria condenada à prisão perpétua pelo regime de terror que instalaram no país. Mas as pressões dos quartéis levaram Alfonsín assinar as leis do Punto Final e da Obediência Devida, que bloquearam milhares de processos. O fim de seu governo foi marcado pelas ações dos militares carapintadas e pelo ataque em 1989 ao quartel de La Tablada, liderado pelo Movimento Todos pela Pátria (MPT), um grupo de esquerda guevarista liderado por Enrique Gorriarán Merlo, ex-dirigente do ERP. Em meio ao ambiente conturbado, tomou o peronista Carlos Menem foi eleito e tomou posse do governo argentino. Assinou então uma anistia aos integrantes das juntas militares, que só seria cancelada no século seguinte, durante o governo do também peronista Néstor Kirchner, que chegou a ser preso pela ditadura.

Papa Francisco

Cardeal

Papa Francisco cozinhando

Em 1980, o jovem provincial da Companhia de Jesus perdeu seu cargo. As tensões dentro da ordem, dividida entre conservadores e progressistas, levaram à mudança. Tornou-se o confessor de uma igreja em San Miguel, na província de Córdoba e reitor do Colégio Máximo da Faculdade de Filosofia e Teologia. Alimentou os porcos e acostumou-se a fazer sua própria comida.

“- O senhor cozinha atualmente?
- Não, não tenho tempo. Mas quando vivia no colégio Máximo, de San Miguel, como aos domingos não havia cozinheira, eu cozinhava para os estudantes.
- E cozinha bem?
- Bem, nunca matei ninguém... (El Jesuita)"

Seis anos mais tarde, foi para Alemanha, onde pretendia escrever sua tese. O tema era a obra do teólogo italiano Romano Guardini. A tese ficou inacabada, pois a Companhia de Jesus o chamou de volta à Argentina. Os planos acadêmicos se foram e o sacerdote, que não gostava de sair nem mesmo de sua cidade natal, voltou para seu país. Estava ali, em Córdoba, quando o arcebispo de Buenos Aires, Antonio Quarracino, ouviu-o falar em um encontro espiritual. O prelado decidiu que aquele sacerdote era o homem que ele procurava para transformá-lo em bispo-auxiliar. Enfrentou resistência ao indicar Bergoglio para o cargo e só conseguiu fazê-lo quando se encontrou com o papa João Paulo II, em Roma, em 1992. Pouco depois, o desejo do velho cardeal de Buenos Aires se tornava realidade. Mais uma vez, Bergoglio conta sua nomeação:

“Depois de uma conversa com o Núncio, ele me informa: 'Ah… uma última coisa… o senhor foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires e a designação se tornará pública no dia 20…' Assim, sem mais, ele me comunicou.
- E qual foi a sua reação?
- Fiquei bloqueado. Como expliquei antes, sempre fico bloqueado diante de um golpe, bom ou mau.”
(El Jesuita)

 

O novo bispo começou sua missão visitando as paróquias da região sul da capital argentina, encarregado do vicariato de Flores. É uma região pobre. O homem batiza os fiéis, ouve confissões, lava os pés dos humildes e vai às villas, as favelas bonaerenses, e incentiva os padres a viver entre os mais pobres em busca do que chama de piedade popular.

Torna-se conhecido por seu estilo de vida frugal. Anda de metrô e de ônibus - que ele prefere para ver a paisagem – e prefere se informar lendo jornais. O homem que fala francês, italiano e alemão. “O que sempre foi mais difícil foi o inglês, especialmente a fonética, porque não tenho bom ouvido”, conta o papa, que prefere o rádio para ouvir música.

“Entre as que mais admiro está a abertura Leonora nº 3 de Beethoven, na versão de Furtwängler. É, a meu entender, o melhor diretor de algumas de suas sinfonias e das obras de Wagner.”

Nossa Senhora Desatadora dos Nós
Quadro de Nossa Senhora Desatadora dos Nós

Foi durante o período em que era bispo auxiliar que Bergoglio se transformou no grande propagador do culto de Nossa Senhora Desatadora dos Nós na Argentina. Uma réplica imagem original - que está na Alemanha – foi entronizada na igreja de San José del Talar em 8 de dezembro de 1996. Em pouco tempo, o culto se espalhou pela Argentina e cresceu, atingindo outros países, como Brasil.

Foi uma decisão do papa João Paulo II nomear Bergoglio arcebispo coadjutor de Buenos Aires a fim de que ele ocupasse o cargo assim que este ficasse vago – o cardeal Quaracino estava doente e prestes a completar 75 anos. Esse dia foi 28 de fevereiro de 1998. A morte de Quarracino deixou para Bergoglio não só o mais importante arcebispado argentino, mas também a função de primaz da Igreja daquele país.

Foi nesse cargo que um mês depois, na Quinta-Feira Santa de 1998, ele deixou aos bispos auxiliares a tarefa de lavar os pés dos que aproximavam da Catedral Metropolitana para a missa – o futuro papa foi a um hospital lavar os pés de doentes com Aids. Fez o mesmo em um presídio no ano seguinte e depois com jovens usuários de crack em uma favela. Tentava assim ensinar humildade.

O QUE É TE DEUM

Te Deum é um hino litúrgico tradicional de louvor a Deus, de agradecimento. O nome se refere às suas palavras iniciais, Te Deum laudamos, (A vós, ó Deus, louvamos). Seu texto foi musicado por vários compositores, entre eles Mozart, Haydn, Berlioz, Bruckner e Dvorák. Antigamente era comum. Quando dom João VI chegou ao Brasil, após desembarcar foi à catedral e lá houve o Te Deum. Dom Pedro, I Dom Pedro II visitavam as cidades e eram recebidos com o canto do Te Deum, ao qual se acrescia uma homilia, uma celebração litúrgica. Atualmente é prescrito para o Ofício Divino aos domingos e festas e solenidades e equivale ao Glória da missa. Os papas Paulo VI e João Paulo II iam à igreja dos jesuítas, Igreja do Jesus, em Roma, no último dia do ano e dirigiam o Te Deum. Muitas vezes o Te Deum se faz durante a exposição do Santíssimo Sacramento.

No começo de 2001, tornou-se cardeal. O ano seria marcado pelo atentado contra o World Trade Center, em Nova York. A ação da Al-Qaeda provocou uma reviravolta na vida de Bergoglio. O cardeal de Nova York, Edward Egan, não pôde comparecer ao primeiro sínodo do milênio, do qual seria o relator-geral da Assembleia. Seu lugar acabou ocupado pelo recém-nomeado Bergoglio. JOão Paulo II pediu aos bispos que fossem efetivamente pobres a fim de serem críveis para os excluídos. Bergoglio se saiu tão bem na relatoria que se acabou sendo o mais votado entre os 252 participantes do sínodo para compor o conselho pós-sinodal como representante do continente americano. O futuro papa passara a ser conhecido e reconhecido pelos líderes da Igreja em todo o mundo.

Durante a crise que levou à renúncia do presidente Fernando De La Rúa, iniciou uma série de diálogos com políticos, empresários e lideranças religiosas de vários credos. Convencera-se da necessidade de uma cultura do encontro, estender pontes com dignidade. Em uma Argentina que via a miséria e o desemprego crescerem, Bergoglio incentivou seus padres a trabalhar nas favelas. Aos políticos continuou a enviar suas mensagens ásperas. A do Te Deum de 2003 fez com que o então presidente Néstor Kirchner nunca mais comparecesse a uma celebração feita pelo cardeal. Tornara-se para muitos o “líder da oposição” ao governo. Parecia rumar para uma aposentadoria como os demais cardeais. Roma surgiu, então, no caminho de Francisco.

O sucessor

Capela Sistina

Localizada dentro do Palácio Apostólico, a Capela Sistina foi pintada no século XV por alguns dos principais nomes do Renascimento italiano, como Botticelli, Rafael e Michelangelo. Os afrescos que tomam conta de todo o ambiente representam cenas bíblicas, como a criação de Adão e a vida de Moisés e de Jesus Cristo.
Além de ser um dos pontos turísticos mais visitados do Vaticano, a capela é o palco de conclaves da Igreja Católica desde 1492. Até hoje, 52 papas já foram eleitos dentro desse espaço. Em alguns casos, a eleição foi tão longa que demorou mais de 5 meses para ser concluída – como ocorreu em 1961, quando o escolhido foi Inocêncio XII.

“Que Deus os perdoe pelo que fizeram”, disse Jorge Bergoglio a um grupo de cardeais durante um jantar nas dependências da Santa Sé. O argentino se referia ao que havia acontecido algumas horas antes, dentro da Capela Sistina, onde ao menos 77 desses cardeais o escolheram para liderar a Igreja Católica em um dos momentos mais cruciais da sua história. Nessa ocasião, sua eleição foi uma grande surpresa. Mas ele já havia sido considerado um dos papáveis mais fortes 8 anos antes disso.

Isso ocorreu exatamente na sua primeira viagem à Itália para participar de um conclave. Escolhido em 1978 como sucessor de Pedro, o papa João Paulo II conduziu a Igreja Católica por longos 27 anos, o maior período desde meados do século 19. Sua morte, em 2005, acendeu uma árdua disputa entre os cardeais - praticamente todos nomeados por ele - em relação à sua sucessão.

De um lado, havia um grupo mais conservador, que desejava poucas mudanças na rede de poder tecida no Vaticano durante o papado de João Paulo II. O cardeal alemão Joseph Ratzinger, que ocupava um cargo na cúria romana há mais de 20 anos (a chefia da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão que substituiu a antiga Inquisição), era considerado o favorito desse grupo.

Do outro, estavam os cardeais reformistas, que defendiam com menor e maior grau de adesão mudanças mais profundas no processo decisório do Vaticano - como dar maior relevância à opinião dos bispos - ou mesmo adaptações na doutrina da Igreja para se adequar melhor aos tempos modernos. Bergoglio foi visto como um dos possíveis líderes desse grupo.

O cardeal argentino estava rezando uma missa em uma favela de Buenos Aires, no dia 2 de abril de 2005, quando soube da morte de João Paulo II, segundo a jornalista argentina Evangelina Himitian, autora do livro "A Vida de Francisco". Alguns dias depois, ele já estava no Vaticano se preparando para sua participação no conclave. Nesses dias que antecederam a escolha, começou a ser mencionado por jornalistas do mundo inteiro como um dos favoritos do grupo dos reformadores e seu nome logo passou a figurar entre os líderes de apostas nas casas de jogo europeias.

A votação começou no dia 18 de abril daquele ano. Eram 115 eleitores, todos cardeais que tinham menos de 80 anos na época, como determinam as normas do Vaticano. A escolha ocorre dentro da Capela Sistina e, segundo a fé católica, é influenciada pelo Espírito Santo. Cada cardeal vota secretamente no seu candidato favorito e os escrutínios se repetem até que alguém obtenha 77 indicações. Em 2005, foram quatro votações até a fumaça branca sair pela chaminé da capela anunciando que o número mínimo havia sido atingido.

Oficialmente, tudo o que se sabe é que o escolhido foi Ratzinger, que decidiu adotar o nome de Bento XVI. Mas relatos extraoficiais publicadas por jornais europeus e latino-americanos na época trouxeram mais detalhes do que pode ter ocorrido no conclave, já que o Vaticano proíbe que os cardeais divulguem qualquer informação sobre esse processo. Essas versões têm algumas divergências, mas a maioria aponta que Bergoglio teria conseguido uma razoável quantidade de votos até o último escrutínio, sobretudo por ter conquistado o apoio de cardeais progressistas simpáticos ao italiano Carlo Maria Martini, que estava doente na época.

Uma lista publicada pela revista italiana Limes retirada de um suposto diário de um cardeal que participou do conclave mostrou que Ratzinger já teria tido 47 votos logo na primeira votação, contra dez de Bergoglio. Na terceira, o alemão teria tido 65 votos, ante 40 de Bergoglio. Segundo o jornalista italiano Vittorio Messori, considerado um dos principais conhecedores do Vaticano, Bergoglio teria então pedido aos seus pares que deixassem de votar nele em favor de Ratzinger, para não alimentar a divisão que parecia se acentuar em torno dos dois candidatos.

O argentino jamais falou sobre o que ocorreu no conclave. Sobre esse episódio, afirmou em uma ocasião que sentiu "pudor" e "vergonha" quando soube que seu nome estava sendo cotado na imprensa como um dos favoritos. "Pensei que os jornalistas estavam loucos", disse em entrevista a Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti, alguns anos depois.

A renúncia

Visto como um dos cardeais mais próximos do papa João Paulo II e aclamado por seu importante papel como teólogo, Ratzinger assumiu o pontificado aplaudido pelos milhares de fiéis que ansiosamente esperavam o 'habemus papam" na Praça de São Pedro. Ninguém ali imaginava que, apenas oito anos depois, esse mesmo homem fosse renunciar ao papado. Afinal de contas, já haviam se passado quase 600 anos desde a última renúncia de um papa.

Cardeal Bergoglio
Então cardeal, Bergoglio caminha pelas ruas de Roma

Mas foi justamente isso que ocorreu. No dia 11 de fevereiro de 2013, o papa Bento XVI anunciou sua saída do trono de Pedro. Ela foi concretizada no dia 28 do mesmo mês. Logo, os 115 cardeais que participaram do novo conclave começaram a chegar em Roma para a eleição do sucessor - entre eles, claro, Bergoglio. Mas muita gente ainda se perguntava o que levou o religioso alemão a decidir pela renúncia e, até hoje, várias das respostas ainda não estão totalmente esclarecidas.

Um dos principais motivos apontados para explicar essa decisão é uma recente crise política que estourou no Vaticano durante o seu papado. Foram vários episódios, mas talvez o mais simbólico tenha sido o escândalo que ficou conhecido como "Vatileaks". Ele se tornou público em janeiro de 2012, quando um jornalista italiano publicou cartas internas trocadas entre membros da cúria romana que apontavam indícios de corrupção e prevaricação com o dinheiro do Vaticano.

Documentos continuaram a ser vazados nos meses seguintes, trazendo cartas assinadas inclusive pelo próprio papa e que, segundo a imprensa italiana, mostravam intrigas entre facções da Igreja e até denúncias de subornos para se marcar audiências com Bento XVI. Essa história culminou com a prisão do mordomo particular do papa desde 2006, Paolo Gabriele - acusado de ter vazado os documentos -, e com o afastamento do então diretor do Banco do Vaticano, também acusado de irregularidades.

Tudo isso, somado à fragilidade de sua saúde aos 85 anos, teria acabado por influenciar sua decisão de renunciar ao papado, segundo publicou o jornal italiano La Repubblica. O periódico também divulgou um suposto relatório feito por uma comissão cardinalícia nomeada por Bento XVI para diagnosticar os principais problemas da cúria romana. No documento, cuja autenticidade não foi confirmada nem negada pelo Vaticano, estariam histórias de chantagem e até de exploração sexual envolvendo nomes da cúpula da Igreja em Roma.

A renúncia, portanto, seria uma oportunidade para que um novo líder fizesse as reformas necessárias para encerrar essas intrigas e disputas internas. "No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado", disse Bento XVI no anúncio da sua saída.

O conclave

O cardeal argentino Jorge Bergoglio se dirigiu ao Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, e embarcou rumo à Itália no dia 26 de fevereiro de 2013, uma terça-feira. Para quem perguntasse, ele desconversava sobre qualquer chance de não voltar em poucos dias à capital argentina - a passagem de volta, inclusive, já estava comprada e marcada para o dia 23 de março, segundo contou a jornalista Evangelina Himitian. Ele chegou no Aeroporto de Fiumicino, em Roma, e logo partiu para o hotel na Via della Scrofa, onde ficou alojado até o início do conclave.

Dessa vez, seu nome não figurou na lista dos papáveis dos principais jornais europeus, como havia acontecido em 2005. A rádio oficial do Vaticano chegou a preparar 30 perfis dos candidatos mais bem cotados para disparar assim que a o nome do escolhido fosse anunciado. Entre esses nomes, estava o do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, mas não o de Bergoglio. Ambos são latino-americanos, e vários analistas viam como alta a possibilidade de que um cardeal não europeu fosse eleito, algo que reforçaria a ideia de renovação vista como necessária por grande parte dos religiosos.

Evangelina conta que, um ano antes dessa viagem, o cardeal argentino chegou a decidir que iria se aposentar, por causa da sua idade. Aos 75 anos, queria dedicar a vida à oração e à meditação e teria enviado ao Vaticano uma carta de renúncia. Bento XVI, no entanto, não aceitou o pedido e estendeu seu cardinalato por mais dois anos. Para a jornalista, isso teria sido um gesto de deferência do alemão para quem em 2005 teria pedido aos cardeais que deixassem de votar em seu nome a favor de Ratzinger.

A desistência da disputa naquela ocasião teria aumentado suas chances no conclave de 2013, já que teria ganho a simpatia de cardeais que defendiam o fim das disputas internas vaticanas. Seu apoio à renúncia de Bento XVI também teria contado pontos ao seu favor, pois deixou claro que era um candidato de consenso, e não da divisão. "Fala-se de um papa conservador. Mas o dele foi um gesto revolucionário, uma mudança em 600 anos de história", disse Bergoglio ao saber da desistência de Bento XVI.

Papa Francisco - Conclave
Papa Francisco - Conclave

 

Em uma das várias reuniões pré-conclave que servem para ajudar os cardeais a definirem seus votos, uma fala de Bergoglio aumentou ainda mais a simpatia que sua imagem conquistava entre seus pares. Ele afirmou que a Igreja deveria deixar de concentrar-se em si mesma e que sua razão de ser deve voltar a ser a evangelização. Por outro lado, o brasileiro Scherer, visto como o candidato do status quo da cúria romana, teria usado seu espaço de maneira a reforçar esse estereótipo, segundo Evangelina. Isso teria lhe custado votos de alguns cardeais.

Segundo relatos, o nome de Bergoglio começou a aparecer desde a primeira votação. Foram cinco até que ele conseguisse todos os 77 votos necessários para se consagrar papas. Ao atingir tal número, o arcebispo emérito de São Paulo, d. Claudio Hummes, amigo pessoal do argentino, parabenizou-lhe e aconselhou: "Não se esqueça dos pobres." Com isso na cabeça, Bergoglio aceitou a decisão dos cardeais e escolheu o nome Francisco, em homenagem ao santo que se tornou símbolo da austeridade e da pobreza.

Passou, então, à Sala das Lágrimas, onde vestiu um dos trajes brancos reservados para o escolhido. Em seguida, se dirigiu à varanda central da Basílica de São Pedro, onde seu nome já havia sido anunciado como o novo papa. Às 20h30 de Roma do dia 13 de março, apareceu e saudou a multidão que esperava na praça logo embaixo. "Vós sabeis que o dever do conclave era dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo. Eis-me aqui!", afirmou.

Os gestos

Francisco mostrou qual será a principal marca do seu papado logo no seu primeiro dia como pontífice. Na manhã seguinte à sua eleição, ele fez questão de ir pessoalmente ao hotel em Roma onde havia se hospedado assim que chegou de Buenos Aires e pagar a conta relativa a esses dias. Em seguida, ele abdicou de dormir no luxuoso apartamento papal para continuar em um quarto comum da residência Santa Marta, complexo construído por João Paulo II para abrigar os cardeais que vão à Santa Sé para participar do conclave.

Segundo Evangelina Himitian, ele chegou a telefonar ao seu jornaleiro portenho para avisar que não voltaria mais tão cedo à cidade e, por isso, pediu para cancelar a assinatura dos jornais.

Os gestos de simplicidade, que chamaram a atenção da imprensa e dos fiéis de todo o mundo, são compatíveis com seu modo de vida simples adotado desde que decidiu ser jesuíta, ordem que preza tanto o voto de pobreza que chega a proibir que seus sacerdotes aceitem cargos superiores na Igreja. A exceção para essa proibição é apenas quando a promoção é exigida pelo próprio sumo pontífice - ou, no caso do conclave, quando é o colégio de cardeais que elege o jesuíta ao posto de papa.

Essa postura do novo papa também está relacionada com o seu desejo já declarado de focar o seu pontificado na evangelização. Analistas religiosos dizem que Francisco acredita que a Igreja deve se aproximar o máximo possível dos católicos e abandonar a distância criada pela pompa excessiva, além de ajudar os pobres sem esquecer dos ensinamentos da Bíblia. "Francisco de Assis é para mim o homem da pobreza, o homem da paz. O homem que ama e toma conta de toda a criação, o homem pobre... e eu quero uma igreja pobre para os pobres", afirmou Bergoglio, em um dos dias logo depois da sua eleição.

Suas atitudes nos dias seguintes também seguiram a mesma lógica. No dia 14, pediu publicamente que os argentinos que planejavam viajar a Roma para sua missa inaugural desistissem da viagem e doassem esse valor aos pobres. Duas semanas depois, na Quinta-feira Santa, foi à detenção de menores Casa del Marmo, na periferia de Roma, e lavou o pé de adolescentes infratores. E, na sua primeira viagem fora de Roma como sumo pontífice, foi a Lampedusa, ilha italiana que recebe anualmente milhares de imigrantes clandestinos vindos em barcos precários da costa norte da África, chorar pelos que morreram nessas travessias. "Perdemos o sentido da responsabilidade fraterna e esquecemo-nos de como chorar os mortos no mar", declarou.

Ainda que timidamente, Francisco começou também a realizar mudanças na administração do Vaticano nos seus primeiros meses como papa. Ele recebeu em suas mãos o relatório elaborado pela comissão de cardeais nomeadas por Bento XVI e, segundo relatos de pessoas próximas, começou a elaborar um plano de mudanças na cúria romana voltado a enxugar os gastos. "É importante que possamos viver a relação com a liturgia e com a fé com simplicidade e sem superestruturas, porque vivemos excessivamente da burocracia, inclusive a Igreja", declarou o papa em um encontro com bispos italianos, no início de julho.

Em relação ao banco do Vaticano, o papa nomeou uma nova comissão para fazer um raio-x da atual situação da entidade, o que levou à pronta renúncia do diretor geral Paolo Cipriane e do seu vice, Massimo Tulli, logo em seguida. Ele também decretou mudanças nas regras penais do Vaticano, aumentando a pena para casos de abuso infantil, que poderão render até 12 anos de prisão. Além disso, foi criada uma pena de oito anos para quem roubar documentos confidenciais, uma resposta ao escândalo do Vatileaks.

O legado

A Basílica de São Pedro, durante cerimônia presidida pelo papa Francisco

Qual será a Igreja que Francisco deixará no término do seu papado? Com apenas alguns poucos meses desde sua eleição, ainda é cedo para se afirmar com certeza qual será o rumo e a profundidade das reformas que vários esperam do primeiro papa latino-americano da história. Até agora, há tanto sinais que indicam a possibilidade de reforma abrangentes na Igreja - que são exaltados por teólogos mais progressistas - quanto razões para se acreditar que não deverá haver mudanças brucas em temas como fé e moral, já que Bergoglio sempre se mostrou ortodoxo em termos de doutrina.

Sua primeira encíclica papal Lumen Fidei, publicada no começo de julho e escrita em conjunto com Bento XVI, trata da importância da fé para os católicos e reitera a importância dos sacramentos da Igreja, como o casamento "entre homem e mulher." Esse tema é um exemplo de uma opinião firme do argentino, que foi contra a decisão do seu país de legalizar o casamento homossexual.

D. Claudio Hummes

O cardeal d. Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, é muito próximo de Francisco. Em reuniões oficiais no Vaticano, como o último conclave, o cardeal brasileiro e o argentino Jorge Bergoglio sentavam-se lado a lado nos últimos anos. “Acabei me tornando um grande amigo dele. Ele já o disse, está dito”, resumiu o brasileiro, em evento realizado no fim de junho, em São Paulo.
A amizade de ambos foi demonstrada em gestos públicos importantes – quando Bergoglio foi apresentado como papa, em 13 de março, fez questão de que Hummes estivesse ao seu lado – o brasileiro teria sido o mentor do nome Francisco. E deve se manifestar em parcerias políticas – Hummes é cotado para assumir um posto estratégico na administração da Igreja.

Em outros pontos da doutrina, porém, Bergoglio já se posicionou de maneira mais aberta. No livro "Sobre o céu e a terra", o argentino rechaçou o fundamentalismo religioso e afirmou que a liberdade de escolha individual - mesmo em relação à sexualidade - deve sempre ser respeitada. E, apesar de se dizer a favor do celibato, afirmou que essa regra tem origem cultural, e não de fé, e que isso é algo passível de mudança. Por isso, até o cardeal d. Claudio Hummes, seu amigo pessoal, disse confiar que Francisco não deixará de enfrentar os principais temas do catolicismo. "O papa diz que a Igreja deve ser menos moralista", afirmou.

Por outro lado, a maioria dos analistas acredita que são grandes a chances de ocorrerem mudanças administrativas no Vaticano durante o seu papado. O teólogo Leonardo Boff é um deles. Em entrevista ao Estado no dia da eleição de Francisco, ele afirmou que acredita que o novo papa descentralizará a Igreja e ativará um órgão criado no concílio Vaticano II, de 1961, mas que havia sido esvaziado pelos últimos dois papas: o Sínodo dos Bispos, corpo que se reúne a cada três anos para, juntamente com o papa, decidir sobre os principais rumos a serem tomados pela Igreja. Durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, a entidade teve apenas poder consultivo e não apresentou nenhuma importante função decisiva.

A própria decisão de se manter menos isolado no Vaticano, com menos regalias e mais próximo dos fiéis pode ser um sinal de que Francisco quer diminuir a influência que a burocracia da Santa Sé têm na determinação da agenda do papa. Uma das possibilidades é diminuir o poder da Secretaria de Estado, que, durante o papado de Bento XVI, foi ocupada pelo cardeal Tarcísio Bertone, apontado como um dos pivôs da crise interna na Igreja Católica que culminou na renuncia do alemão.

Concílio Vaticano II

Convocado pelo papa João XXIII, o Concílio Vaticano II ocorreu em quatro sessões, entre 1962 e 1965. Os mais de 2 mil participantes discutiram e regulamentaram vários temas da Igreja Católica: da abertura do diálogo com outras religiões à língua latina, que deixou de ser obrigatória nas celebrações. Ao destacar a importância do papel pastoral da Igreja, o concílio ressaltou o protagonismo do trabalho dos católicos leigos em suas comunidades. As decisões tomadas durante esse período resultaram em quatro constituições, nove decretos e três declaraçõe, no que foi considerado uma das principais reformas no catolicismo nos últimos séculos. Até Bento XVI, todos os papas que sucederam João XXIII participaram do concílio, seja como consultores teológicos, seja como padres conciliares.

Outra pista de que mudanças importantes podem acontecer na Santa Sé durante o pontificado de Francisco foi sua decisão pessoal de canonizar (tornar santo), sem a necessidade de um segundo milagre,o papa João XXIII, o último que levou a cabo uma reforma na Igreja durante o concílio Vaticano II. Além disso, o papa mandou descongelar o processo de beatificação do arcebispo de El Salvador, d. Oscar Romero, morto em 1980 na catedral por um grupo paramilitar de direita. Romero é o maior símbolo dos mártires sociais da Igreja já que, na época, El Salvador vivia uma guerra civil e era governado por uma ditadura militar.

Apesar de todas essas expectativas, a principal marca do seu papado poderá estar ligada justamente ao que Bergoglio defendeu no discurso anterior ao conclave de 2013 e que teria lhe conquistado a simpatia de vários cardeais eleitores: a evangelização e a aproximação dos fiéis. O foco nessas medidas representa a vontade de reverter - ou ao menos estancar - a perda de fiéis em regiões estratégicas para o catolicismo, fenômeno que se iniciou ao longo do século 20 e que se acentuou na última década.

Só na Europa, a porcentagem da população que se declarava católica caiu de 38,5% em 1970 para 23,7% em 2010, segundo estudo do Gordon-Conwell Theological Seminary, dos Estados Unidos. Mas a principal preocupação do Vaticano se dá com a América Latina, onde se encontra quase metade do 1,2 bilhão de católicos espalhados pelo globo. Só no Brasil, maior país católico do mundo, a porcentagem de professantes dessa religião caiu de 90% para 64% nesse mesmo período, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A eleição de um papa latino-americano e jesuíta - ordem com importante histórico de evangelização -, portanto, poderia ajudar a atrair novos fiéis para o catolicismo. "Ele não deve construir muros, mas sim pontes. Pontes até os pobres, pontes até a cultura de hoje, pontes até outras religiões", disse d. Claudio Hummes. No Brasil, isso poderá começar a acontecer justamente na primeira viagem para fora da Itália desse novo papado: a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), no Rio.

A Igreja no País

Em sua primeira viagem intercontinental, o papa Francisco encontrará o País com o maior número de católicos da Terra: o Brasil, que ele conhece tão bem - seja por ter nascido na vizinha Argentina, seja por ter participado de um evento importante aqui, em 2007, seja por ter amigos brasileiros, como o cardeal d. Claudio Hummes.

Nas últimas décadas, a Igreja Católica passou por grandes transformações no Brasil. Se antes o País tinha bispos conhecidos por forte participação política e social, como d. Hélder Câmara, d. Paulo Evaristo Arns, d. Eugênio Sales, d. Aloísio Lorscheider e d. Luciano Mendes de Almeida, hoje o catolicismo brasileiro é conduzido por conservadores, como d. Odilo Scherer, e moderados, como d. Raymundo Damasceno e d. Orani Tempesta.

Santuário Nacional de Aparecida

Mudanças políticas à parte, especialistas acreditam que movimentos religiosos de cunho social, como a Teologia da Libertação, legaram à Igreja local sensibilidade e preocupação com os pobres - um espírito missionário muito defendido na Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida em 2007, e que teve o cardeal Jorge Bergoglio como relator. "E isto é o que norteia o comportamento, o pensamento e as ações de Francisco", avalia o padre Antonio Manzatto, da Faculdade de Teologia da PUC-SP.

D. Damasceno: "Eu nenhum momento vi o papa preocupado com as manifestações"

O papa Francisco também precisa estar preparado para lidar com o povo brasileiro. No último mês, uma onda de manifestações políticas e sociais tomou as ruas do País - sem lideranças definidas, os jovens que empunharam bandeiras verde-amarelas e entoaram gritos de protesto tinham em comum um profundo descrédito pelas instituições. A Igreja Católica pode se tornar um alvo dos manifestantes durante a visita de Francisco?

"É difícil prever alguma coisa. Mas não esperamos que algo aconteça porque as reivindicações não têm a ver com a visita do papa. Têm a ver com o nosso governo. Por isso supomos que não haverá grandes problemas", acredita o cardeal d. Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo. "Acredito que o papa será muito concreto se eventualmente tiver de ter algum contato com os manifestantes. Vamos aguardar como vai ser isso. Mesmo se houver alguma manifestação, acredito que será pacífica, porque o povo tem muito bom senso."

Cardeal arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer lembrou que a JMJ é um evento que costuma atrair diferentes tipos de manifestações, sobretudo dos jovens. "Provavelmente, algo vai ocorrer por aqui. Só espero que não atrapalhem o evento. Pelo contrário, que a presença do papa seja a ocasião para que os jovens possam ouvir também uma palavra da Igreja a respeito das muitas questões que estão sendo postas em jogo", comentou.

O maior País católico do mundo tem hoje 123 milhões de pessoas que se declaram seguidores da Igreja de Roma, conforme o censo de 2010. São 275 dioceses e prelazias, 10.720 paróquias territoriais e ambientais, 47.805 centros de atendimento espalhados pelo Brasil, animados por 472 bispos, 22.119 padres - diocesanos e religiosos -, 2.711 diáconos casados, 3.863 irmãos religiosos, 31.591 irmãs consagradas, e 526.749 catequistas - majoritariamente mulheres.

CNBB

"Não há números pesquisados dos jovens participantes ativos nas comunidades católicas, mas não é menor do que 500 mil participantes", estima o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer, do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o número de católicos vem caindo no País - de 2000 para 2010, o censo registrou uma queda de 13%. E a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) ocorre justamente no Estado com a menor proporção de católicos: apenas 45% dos habitantes do Rio se declaram seguidores da Igreja de Roma. "O Rio foi escolhido como sede por ser o Rio de Janeiro, mundialmente conhecido, uma cidade que atrai por si só", comenta d. Odilo Scherer. "Que a Jornada possa despertar o interesse de outros pela fé católica, esperamos que sim."

Os peregrinos

Peregrinos de 190 países começaram a chegar ao Brasil três semanas antes da JMJ e se espalharam pelas dioceses. "É a primeira vez na história das jornadas que todas as dioceses do país-sede estão engajadas na Semana Missionária", diz d. Odilo Scherer, sobre os eventos previstos na semana anterior à JMJ.

Em São Paulo,15 escoceses foram os primeiros a chegar, ainda em 29 de junho. Os jovens vieram acompanhados de duas mães e um padre da paróquia da região de Falkirk. A estada prolongada foi estimulada pelo padre Neil Charles Crombie, que é escocês e se mudou para o Brasil em 1974. Ele é atualmente vigário geral da região da Brasilândia e coordena trabalhos sociais na zona norte. De acordo com a Arquidiocese de São Paulo, dos que ficaram na cidade na Semana Missionária, a maioria é de nacionalidade italiana.

José de Anchieta

Evangelizador, mestre-escola, enfermeiro, literato, comediógrafo, guerreiro, refém, herói e estrategista. Em 25 anos de trabalho no Brasil, o jesuíta José de Anchieta deixou a marca da sua presença em quase tudo: ajudou a fundar São Paulo e o Rio de Janeiro, foi precursor da literatura brasileira e por duas vezes foi combatente. Na primeira, defendeu São Paulo de Piratininga de ataques tamoios e, na segunda, combateu os franceses ao lado de Estácio de Sá. Nessa guerra, para evitar perdas de vida, ofereceu-se como refém aos índios tamoios (aliados dos franceses) e conseguiu que os ajustes de paz chegassem a bom termo. Nascido na ilha de Tenerife, nas Canárias, em 1534, Anchieta chegou ao Brasil com a Companhia de Jesus, aos 19 anos. Assistiu, em 1554, à primeira missa celebrada no Pátio do Colégio do Planalto de Piratininga, onde lecionou latim, castelhano, doutrina cristã e língua brasílica. Escreveu duas obras especializadas: Gramática da Língua Brasílica e Vocabulário Tupi-Guarani. Foi autor ainda de mais de quatro mil versos escritos nas areias de Iperoig, em louvor à Virgem Santíssima. Trabalhou no Rio, Bahia e Espírito Santo, onde morreu em 1597.

A Arquidiocese de São Paulo reuniu cerca de 10 mil jovens ao longo da semana - outros 5,3 mil foram acolhidos nas dioceses de Santo Amaro e Campo Limpo, na zona sul, e São Miguel Paulista, na zona leste.

A mesma Salvador que, 464 anos atrás, recebeu os primeiros jesuítas enviados ao Brasil, tornou-se porta de entrada da maior excursão de jovens ligados à ordem religiosa que já passou pelo País.

Se em 1549 desembarcaram na então capital brasileira, tripulantes da armada de Tomé de Sousa, seis religiosos da Companhia de Jesus - os padres Manuel da Nóbrega, Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro, Vicente Rodrigues, Antonio Pires e o irmão Diogo Jácome - em julho, vieram mais de 2 mil jovens jesuítas ou simpatizantes da ordem.

Batizado de Magis, o evento existe desde 1997 e sempre precede a JMJ, no país-sede. A edição brasileira começou no dia 12 de julho. Os jovens ficaram até o dia 14 na capital baiana e depois foram enviados, em grupos de 20 a 30, para 40 cidades, em missões ecológicas, educacionais, religiosas e culturais. Só então, reencontram-se no Rio. Partilham as experiências vividas e integram-se aos milhares de outros participantes da JMJ.

A liturgia não podia ser mais oportuna. "O Senhor escolheu outros setenta e dois e enviou-os, dois a dois, à sua frente, a toda cidade e lugar para onde ele mesmo devia ir. E dizia-lhes: 'A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos'", diz o trecho do capítulo 10 do Evangelho de São Lucas.

Era essa a leitura do dia 7 de julho. Na ocasião, na Catedral da Sé, d. Odilo Scherer celebrava a missa de envio dos jovens voluntários paulistas que vão trabalhar na JMJ - no total, o evento deve contar com 60 mil voluntários. "Vocês estão aqui em um grupo mais ou menos do tamanho desse do Evangelho", comparou o cardeal. "Uma boa Jornada para todos. Vocês terão muito trabalho pela frente", disse o cardeal d. Geraldo Majella Agnelo, arcebispo emérito de Salvador, co-celebrante da missa.

Entre os jovens voluntários, católicos de todos os tipos. Alguns com experiências em outras jornadas, como a estudante Ana Paula Medeiros Silva, de 33 anos, que participou da edição de Madri, em 2011. E, entre bandeiras do Brasil e da JMJ, destacava-se o estudante de engenharia André Otani, de 22 anos, empunhando a flâmula do Império do Brasil. "Sou monarquista porque a família imperial brasileira era um exemplo de devoção. Vou levar essa bandeira para o Rio porque espero encontrar lá outros amigos monarquistas católicos", afirmou.

A visita a Aparecida

O Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi inaugurado em 1980 pelo papa João Paulo II, o primeiro sumo pontífice a pisar em solo brasileiro. Em 2007, recebeu a visita de Bento XVI. Agora é a vez de o maior santuário mariano do mundo estar no caminho de Francisco, no próximo dia 24.

Mapa - Aparecida

 

História da santa

A imagem de Nossa Senhora Aparecida foi encontrada por pescadores em 1717, no porto de Itaguaçu. Em 2012, duzentos e noventa e cinco anos após ser encontrada no Rio Paraíba por três pescadores, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat). A santa de 39 centímetros, de estilo barroco é feita de barro cozido e tem uma coroa presenteada pela Princesa Isabel.

Conhecida como "basílica nova", a igreja é o terceiro templo que foi construído na cidade em honra a Nossa Senhora Aparecida. O primeiro foi inaugurado em 1745. O segundo, em 1888.

Dirigido pelos Missionários Redentoristas da Congregação do Santíssimo Redentor, o Santuário recebeu por duas vezes a Rosa de Ouro, uma das mais antigas e nobres condecorações papais - a primeira, em 1967, pelo papa Paulo VI, em comemoração aos 250 anos do aparecimento da imagem de Nossa Senhora; a segunda em 2007, por Bento XVI.

"Não tenham medo de vir a Aparecida. Todos terão a oportunidade de ver o papa muito de perto, seja nos telões, seja na tribuna, seja no percurso pelo papamóvel", conclama o cardeal d. Raymundo Damasceno, arcebispo de Aparecida e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). "O papa aceitou uma proposta minha e, após a missa, deverá sair para a tribuna para rezar com o povo, saudar o povo."

"O papa quis vir a Aparecida"

"A visita a Aparecida foi um pedido pessoal do papa Francisco, já que possui uma devoção pública por Maria, mãe de Jesus", lembra o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer, do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. Ir ao maior santuário católico do Brasil, que recebe romeiros de todas as partes do País, também tem muito a ver com o que acredita Francisco: o encontro com o povo, a valorização da religiosidade popular, o incentivo às devoções mais puras.

Ao contrário do que se pretendia inicialmente, o papa Francisco celebrará uma missa dentro do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, para 15 mil fiéis, e não no pátio externo, para 250 mil - o Vaticano assim determinou alegando razões de segurança. Dos 15 mil que poderão acompanhar a missa no interior da igreja, cerca de 3 mil serão convidados, autoridades e religiosos. As outras 12 mil pessoas terão de madrugar para conseguir um lugar. A entrada é por ordem de chegada e todos terão de passar pelo detector de metais. As portas abrirão às 5h30 e a celebração começará às 10h30.

Estacionamento da Basílica de Aparecida

No dia 24, o papa Francisco viaja, de helicóptero, do Rio para Aparecida. Ele celebrará a missa às 10h30 e, em seguida, aparecerá na Tribuna Bento XVI, na entrada principal do Santuário, para abençoar o povo e rezar. Francisco utilizará o papamóvel para percorrer o pátio da Basílica.

Depois da missa, o papa vai para o Seminário Bom Jesus, onde almoçará com sua comitiva, bispos, padres e seminaristas. Fará um repouso na Pousada Bom Jesus, onde ficaram João Paulo II e Bento XVI, e receberá religiosas de mosteiros de clausura. No fim da tarde, embarcará de volta ao Rio.

Então cardeal arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio esteve em Aparecida pela última vez em 2007, para a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe.

A Jornada Mundial da Juventude

Organizada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, pelo Setor Juventude da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pelo Pontifício Conselho de Leigos, do Vaticano, esta é a 14ª edição da JMJ, considerando apenas os eventos internacionais. O lema da vez é "ide e fazei discípulos entre todas as nações", trecho do capítulo 28 do Evangelho de São Mateus.

O primeiro encontro do papa com a juventude foi em 1984, em Roma, no pontificado de João Paulo II. De lá para cá, houve edições em cidades como Manila, nas Filipinas, Sydney, na Austrália e Denver, nos Estados Unidos. Foram dez JMJ com a presença de João Paulo II e três com Bento XVI. É a primeira vez que o Brasil sedia o evento.

"Estamos felizes por receber Francisco"

De modo simbólico, a JMJ do Rio começou em 18 de setembro de 2011, quando a "cruz peregrina" começou a viajar por todas as 275 dioceses brasileiras e por cidades de alguns países vizinhos. Participam do evento representantes de 190 países - são quase 400 mil inscritos, mas a expectativa é que participe 1,5 milhão de pessoas.

A programação da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é extensa. Catequeses serão realizadas em 26 idiomas diferentes - pregações de 250 bispos de diversos países estão previstas. Os pontos altos da JMJ deverão ser a grande vigília de jovens com o papa Francisco, no dia 27, e a missa no Campus Fidei, na manhã do dia 28.

Guaratiba

No dia 25 pela manhã, o papa Francisco vai ao encontro dos pobres. Ele vai conhecer a comunidade de Varginha, dentro do Complexo de Manguinhos, recentemente pacificada. "Depois de 33 anos, um papa volta a visitar uma comunidade carente", comenta o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer, do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. "Desta vez, ao invés do Vidigal, na zona sul do Rio, onde passou João Paulo II, em 1980, a visita será a uma favela da zona norte." No mesmo dia, Francisco será acolhido pelos jovens na orla de Copacabana, onde deve fazer um discurso.

Quatro jovens vão se confessar com o papa na manhã do dia 26. Em seguida, o sumo pontífice se encontrará com detentos e, no fim da tarde, participa da Via Sacra com os jovens, em Copacabana.

via sacra
Praia de Copacana, onde ocorrerá a Via Sacra

São sete as línguas oficiais da JMJ: espanhol, italiano, francês, inglês, alemão, polonês e português.

Às 19h do dia 28, após uma cerimônia de despedida no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, o papa Francisco voltará para Roma. Qual será o legado deixado pela JMJ?

"O importante da JMJ é que se possa fazer uma experiência da fé, da vida eclesial dos jovens vindos de tantas partes do mundo", afirma o cardeal arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer. De acordo com o padre Antônio Ramos Prado, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a expectativa é que após a JMJ seja revitalizada a Pastoral Juvenil no País - um encontro nacional está previsto para dezembro. A Igreja pretende se aproximar mais do jovem, sobretudo os pobres, doentes e marginalizados.

Grupos de jovens

O número de grupos de jovens também encolheu nas paróquias de São Paulo. Apenas 40% delas contam atualmente com uma Pastoral da Juventude (PJ) oficialmente organizada e atuante. Dados das dioceses da capital mostram ainda que a maior parte desses grupos está na periferia, e não se alimenta apenas de religião

Um legado concreto também será deixado. No dia 24, o papa Francisco deve participar da inauguração do Polo Atenção Integrada da Saúde Mental (PAI), voltado para a recuperação e dependência química, no Hospital São Francisco da Tijuca (antigo Ordem Terceira da Penitência).

De volta a Roma, Francisco deve começar implementar mudanças que serão marca de seu pontificado. A viagem ao Brasil, seu primeiro contato mais intenso com o público, terá essa importância simbólica no coração e na mente do papa argentino. Se até o sisudo Bento XVI se emocionou ao ser abraçado por cinco crianças em Guaratinguetá, quais gestos não aguardam o carismático Francisco?

Ele já avisou que não vai tirar férias em agosto, como os papas tradicionalmente costumam fazer. Quer trabalhar. E serviço não falta.

Uma coisa é certa: de volta à Casa de Santa Marta, em suas orações e reflexões, o centro continuará sendo a periferia. A Igreja virou uma página. Resta saber se o 1,2 bilhão de católicos em todo o mundo estão acompanhando esta leitura. Ou, mais que acompanhando, se vão topar escrever as novas páginas com o papa Francisco.