O Brasil já tem participação garantida em dois deles, que estão em construção: o Giant Magellan Telescope (GMT), um telescópio de 24,5 metros de diâmetro, três vezes maior do que os maiores telescópios atuais; e o Large Synoptic Survey Telescope (LSST), um telescópio de 8,4 metros de diâmetro e equipado com uma câmera de 3.200 megapixels, projetado para fazer uma varredura completa da abóbada celeste a cada três noites.
Quinhentos quilômetros mais ao norte, no topo já aplainado de uma montanha chamada Cerro Armazones, é onde começa a brotar a maior incógnita de todas: o European Extremely Large Telescope (E-ELT), projetado para ser o maior e mais avançado telescópio que já existiu, tanto no espaço quanto na terra, com um espelho primário de 39 metros de diâmetro, do tamanho de um ginásio escolar.
Para ser sócio do E-ELT, o Brasil precisa se juntar ao European Southern Observatory (ESO), o consórcio europeu responsável pelo projeto e pela operação de vários outros telescópios de ponta no Deserto do Atacama. Um acordo de adesão foi assinado em dezembro de 2010, e aprovado em maio de 2015 pelo Senado Federal, mas falta ainda o carimbo da Presidência da República para concluir a transação — que custaria ao Brasil cerca de R$ 1 bilhão em dez anos.
Não há prazo previsto em lei para a ratificação, mas o tempo está se esgotando assim mesmo. O contrato de construção do telescópio foi assinado em 25 de maio, com um grupo de empresas italianas, e o ESO precisa com urgência de uma definição do Brasil sobre sua participação no projeto. “Ainda existe uma janela aberta, mas ela está se fechando rapidamente”, disse ao Estado o diretor geral do ESO, Tim de Zeeuw.
Uma vez iniciada de fato a construção do telescópio, em 2017, a indefinição brasileira passa a ter consequências práticas não só para a astronomia nacional, mas para todos os membros do consórcio, que inclui 15 nações europeias, mais o Chile. O ESO precisa saber até o fim deste ano se o Brasil vai mesmo cumprir o que prometeu em 2010, pois isso impacta diretamente a execução do projeto.
Pelo contrato original, o país arcaria com 10% dos custos do E-ELT, de aproximadamente EU$ 1,1 bilhão — e não há um substituto em linha para cobrir o rombo. Ou seja: sem o Brasil, o ESO só tem recursos suficientes para construir 90% do telescópio, e a data de conclusão das obras ainda teria de ser adiada em dois anos, de 2024 para 2026. Um prejuízo de proporções astronômicas, que poderia fechar de vez as portas para o Brasil dentro do consórcio.
O Estado visitou, no início deste ano, o sítio de construção do E-ELT e dois dos principais observatórios do ESO, além de dois outros telescópios de grande importância para a astronomia brasileira no Deserto do Atacama: Soar e Gemini Sul, que impulsionaram a produção científica e a capacitação tecnológica do Brasil nessa área nos últimos 15 anos.
Essa reportagem retrata os bastidores da ciência e as polêmicas que giram em torno desses grandes telescópios, num momento de decisões cruciais para o futuro da astronomia brasileira.
As difíceis escolhas do Brasil
Já passam das 20h30 quando o Sol finalmente toca a linha do horizonte no norte do Chile, pintando o céu cristalino do Deserto de Atacama de um laranja intenso. Dois mil e seiscentos metros acima do nível do mar, no topo do Monte Paranal, quatro olhos gigantes de vidro começam a abrir suas pálpebras de aço para a chegada da noite. Lentamente, as cúpulas prateadas do Very Large Telescope (VLT) se abrem e giram de um lado para o outro, com se estivessem acordando após um longo dia de sono.
Não há um minuto a perder; assim que as primeiras estrelas despontarem no céu noturno, os telescópios têm de estar prontos para trabalhar. O brasileiro Bruno Dias assiste ao desabrochar das cúpulas com o entusiasmo de um adolescente, apesar de já ter presenciado a cena dezenas de vezes. “Esses telescópios são nossos grandes olhos para o universo”, diz o pesquisador, de 30 anos, que desde julho de 2015 é pós-doutorando do European Southern Observatory (ESO), a organização europeia responsável por este e vários outros observatórios de ponta espalhados pela paisagem lunar do deserto chileno, considerado um dos melhores lugares do mundo para a prática da astronomia.
Fruto de uma parceria entre 15 nações europeias, o ESO é a menina dos olhos de grande parte da comunidade astronômica brasileira, que há anos sonha em entrar para o consórcio e, dessa forma, garantir acesso integral a todas as suas instalações. Entre elas, o European Extremely Large Telescope (E-ELT), maior telescópio de todos os tempos, que está para nascer no topo de uma outra montanha, 20 quilômetros ao leste de Paranal; e o Alma, maior observatório de radioastronomia já construído no planeta, 300 quilômetros mais ao norte. Um sonho que está próximo de se realizar há tanto tempo que já começa a tomar contornos de pesadelo.
Em dezembro de 2010, o então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação assinou um acordo com o ESO que previa uma taxa de adesão de € 132 milhões, parcelada em dez anos, mais uma anuidade de valor proporcional ao tamanho da economia brasileira (hoje ela seria de € 12,5 milhões, comparado a € 16,8 milhões em 2010). Desde então, mesmo sem nunca ter recebido um centavo do Brasil, o ESO vem tratando o país como membro interino, sem poder de voto nas decisões, mas com acesso a todos os seus telescópios.
Se o objetivo final da gentileza era acelerar a tramitação do acordo dentro do governo brasileiro, não funcionou. Mesmo com apoio massivo da comunidade científica nacional, o projeto nunca ganhou força em Brasília. A Casa Civil levou dois anos para encaminhar o acordo ao Congresso; e o Senado levou mais dois anos e meio para ratificá-lo, em maio de 2015 — aparentemente, mais como uma pauta-bomba do que pelo seu valor científico. Só o que falta agora é uma assinatura presidencial, mas o cenário político e econômico nunca foi tão desfavorável a uma conclusão.
O momento, por outro lado, nunca foi tão decisivo. Passados cinco anos e meio da assinatura do acordo, a paciência dos europeus parece estar chegando ao fim. E a dos astrônomos brasileiros, também. No caso dos europeus, porque a partir de 2017 a não ratificação do acordo passa a prejudicar diretamente a construção do E-ELT — um projeto de € 1,1 bilhão, previsto para ser concluído em 2024, e que foi planejado contando com a participação do Brasil. No caso dos astrônomos brasileiros, porque a incerteza sobre o destino desse “namoro” com o ESO — se vai terminar em casamento ou separação — inviabiliza qualquer planejamento de longo prazo para o setor.
“O maior problema nessa história é a indecisão”, diz o astrônomo Bruno Castilho, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Itajubá (MG). “Já passou a hora de o governo brasileiro bater o martelo sobre isso”, diz.
A recomendação de entrar para o ESO partiu da comunidade científica, que elencou a adesão ao consórcio como uma das prioridades do Plano Nacional de Astronomia (PNA), publicado em outubro de 2010, com validade de cinco anos. Uma nova versão do plano já deveria ter sido feita em 2015, observa Castilho, “mas enquanto essa questão do ESO permanecer em aberto, não há como planejar nada”.
A adesão conta com apoio da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB) e da maior parte da comunidade científica da área, mas é rejeitada por um pequeno — porém influente — grupo de pesquisadores sêniores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo, que criticam a relação custo-benefício do acordo.
“Acreditamos que o Brasil possa adotar uma estratégia diferente para o desenvolvimento científico, a um custo dez vezes menor do que a conta que o país deverá pagar ao ESO. Essa estratégia de associação com o ESO nos parece ser uma má escolha para o uso de dinheiro público”, escreveram os astrônomos João Steiner, Laerte Sodré, Augusto Damineli e Cláudia Mendes de Oliveira em um artigo na Revista USP, em março de 2011. Sete meses depois, eles submeteram à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) uma proposta de adesão ao Giant Magellan Telescope (GMT), um projeto concorrente do E-ELT previsto para entrar em operação em 2021.
A proposta foi aprovada em julho de 2014, e a Fapesp entrou para o projeto com um investimento de US$ 40 milhões, que garantirá à fundação paulista 4% do tempo de uso do telescópio. Com um conjunto de espelhos primários de 24,5 metros de diâmetro, o GMT está sendo construído 500 km ao norte de Santiago, no cume do Monte Las Campanas, por um consórcio de instituições americanas, australianas e da Coreia do Sul. A expectativa é que ele produza imagens com uma resolução 10 vezes maior do que a do telescópio Hubble.
“É um telescópio de vanguarda e extremamente competitivo, que trará benefícios extraordinários para a próxima geração de cientistas”, afirma Steiner, ressaltando que não será ele o beneficiário do telescópio. “Temos de nos preocupar com o que essa nova geração de cientistas estará fazendo em 2030. Parece que é um futuro distante, mas não é”, completa o pesquisador, de 66 anos. “Estamos jogando na primeira divisão da ciência internacional, e se quisermos continuar assim, os investimentos tem de ser feitos hoje; não dá para esperar.”
Segundo Steiner, “do ponto de vista pragmático”, o GMT é o único entre os telescópios gigantes sendo projetados ao redor do mundo que oferece um custo acessível ao Brasil. Por isso a escolha.
“Ter acesso a pelo menos um telescópio dessa nova classe de 30 metros é fundamental, e isso já está garantido”, diz o astrônomo Eduardo Cypriano, professor associado do IAG-USP e membro do Comitê de Assessoramento Científico do GMT. “É óbvio que ter acesso ao ESO seria uma coisa positiva; mas acho que o Brasil ainda vai ter acesso a telescópios capazes de garantir que uma comunidade do tamanho da nossa tenha um acesso bem razoável a instrumentos de ponta”, argumenta Cypriano, que estuda aglomerados de galáxias e cosmologia. “É claro que quanto mais, melhor. Mas temos de ser realistas.”
Nem todos estão de acordo. A Sociedade Astronômica Brasileira continua a defender a adesão ao ESO como um investimento estratégico para o País. “A lacuna que vai ser deixada se a gente não entrar para o ESO vai ser enorme. As futuras gerações vão olhar para trás e perguntar: Por que a gente não faz parte disso?”, diz o astrônomo Marcos Diaz, presidente da entidade e também professor do IAG-USP. “Claro que a situação é difícil, mas não podemos deixar de investir em ciência, tecnologia e educação, porque é isso que dar retorno para o país, é isso que vai ser o nosso diferencial.”
Contemplando o futuro do topo do Monte Paranal, com o sol poente incendiando as cúpulas dos telescópios a sua volta, Bruno Dias concorda. “O Brasil só tem a ganhar com a entrada no ESO. É uma oportunidade de ouro; o trem está passando e o Brasil tem que embarcar nessa”, sinaliza o astrônomo. “O ESO sem o Brasil vai continuar produzindo ciência de ponta. O Brasil sem o ESO vai ficar estancado no status atual, que não é mal, mas a gente precisar pensar no futuro.”
Um pouco mais abaixo, na sala de controle do observatório, outro brasileiro também torce pela adesão do País ao consórcio. “Acho que vai mudar completamente o crescimento da astronomia do Brasil”, diz Dimitri Gadotti, astrônomo residente do ESO em Paranal. Ao redor dele, telas de computador brilham com números e gráficos sobre a luz de mais de uma centena de estrelas que estão sendo observadas simultaneamente por um instrumento chamado Flames, que funciona acoplado ao telescópio VLT 2. “Não é só pelo acesso aos telescópios, mas pelo acesso à informação e às pessoas que estão aqui. Isso muda completamente a qualidade da pesquisa que pode ser feita”, observa Gadotti, que se formou astrônomo na USP e está no ESO desde 2009.
A frase que mais se ouve na sala de controle do observatório é “Não há motivo para alarme”, anunciada pelos computadores toda vez que o sistema de ótica adaptativa dos telescópios deixa momentaneamente de funcionar. “Mas provavelmente haverá”, anuncia ironicamente a máquina, alguns segundos depois, quando o sistema volta ao normal. Uma boa analogia para a instabilidade política que o Brasil vive frente ao consórcio, considerando que o diretor do ESO, Tim de Zeeuw, já teve de apresentar o projeto para seis ministros de Ciência e Tecnologia desde que o acordo foi assinado, menos de seis anos atrás.
Com o processo de impeachment, surge agora o desafio de conquistar a simpatia de um novo governo. A presidente Dilma Rousseff disse mais de uma vez que apoiava o acordo, mas não chegou a ratificá-lo.
Procurado pela reportagem, o novo ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, emitiu nota reconhecendo que “o tema é de inegável importância não apenas para a astronomia brasileira, como também para os pesquisadores de todos os continentes”. Ele ressalta, porém, haver argumentos contra e a favor da adesão na comunidade científica. “Portanto, uma análise aprofundada da questão se faz necessária e, diante da importância do ESO, solicitei aos secretários do MCTIC minucioso parecer para posterior decisão.”
Para de Zeeuw, o que está em jogo não é só o dinheiro do Brasil ou o cronograma do E-ELT, mas a chance de estabelecer uma parceria de longo prazo e benéfica para ambas as partes. Segundo ele, é compreensível que a adesão ao consórcio não seja uma prioridade política para o governo brasileiro neste momento de crise, mas é preciso levar em conta que “oportunidades estão sendo perdidas”, e que a porta não ficará aberta para sempre. Membros do consórcio já consideram a possibilidade de revogar o status de membro interino do Brasil (o que resultaria na perda de acesso aos telescópios); e o prejuízo para a reputação do país frente à comunidade astronômica internacional é palpável.
“O pior que pode acontecer é nada acontecer”, diz a astrônoma Beatriz Barbuy, professora titular do IAG-USP, que ajudou a escrever o Plano Nacional de Astronomia e sempre foi uma das maiores defensoras da entrada do Brasil no ESO. “Nossa produção científica está estagnada; o número de artigos não está crescendo e as citações são baixas.”
Segundo ela, há um “desânimo generalizado” na comunidade por conta dessa indefinição, que não se dissipará com a adesão ao GMT — uma parceria positiva, diz Beatriz, mas que não supre as demandas de crescimento e diversificação da astronomia brasileira. “O ESO é o único observatório com características que atendem às necessidades de toda a comunidade”, concorda Diaz.
Além de a parcela do tempo de observação no GMT ser pequeno (4%), e tratar-se de um único telescópio — comparado ao ESO, que oferece uma grande variedade de telescópios e instrumentos em diferentes observatórios, tanto para astronomia ótica quanto radioastronomia —, há uma preocupação de que apenas astrônomos paulistas poderão submeter projetos, já que a parceria é com a Fapesp e não com o governo federal. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação chegou a dizer em 2014 que daria uma contrapartida ao investimento da Fapesp, de modo a abrir o telescópio para toda a comunidade científica, mas essa promessa não se concretizou.
“O GMT não preenche toda a lacuna, porque o acordo, por enquanto, é só para o Estado de São Paulo”, diz o diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica, Bruno Castilho. Ele não acha, porém, que a parceria com o ESO seja indispensável ao crescimento da astronomia brasileira. “A maioria da comunidade acha que é o melhor caminho, mas não é o único.”
Enquanto o GMT não fica pronto e a situação com o ESO segue indefinida, o desafio é otimizar o uso da infra-estrutura existente. O maior equipamento astronômico disponível no Brasil é um telescópio de 1,6 metro de diâmetro no Observatório do Pico dos Dias (OPD), instalado 1.864 metros acima do nível do mar, num braço mineiro da Serra da Mantiqueira, entre Itajubá e Campos do Jordão.
Inaugurado em 1980, o OPD foi fundamental para semear desenvolvimento da astronomia nacional nas décadas de 1980 e 1990, e segue sendo produtivo, sob a gestão do LNA. Mas é um observatório de pequeno porte. Construir algo maior em território brasileiro faria pouco sentido, visto que as condições climáticas e geográficas do Brasil são desfavoráveis à astronomia. As partes secas são muito baixas, e as partes altas são muito úmidas.
“Não temos capacidade financeira nem tecnológica para termos equipamentos próprios e exclusivos, e não há a menor necessidade disso”, avalia Steiner, da USP. “O que nós precisamos é continuar participando de consórcios internacionais.” E os melhores lugares para se fazer isso, diz ele, são o topo do vulcão Mauna Kea, no Havaí, no Hemisfério Norte; e o Deserto do Atacama, no Hemisfério Sul — lugares altos, secos e escuros.
Razão pela qual, nos anos 1990, o Brasil se associou a dois consórcios internacionais para construção de observatórios nesses dois locais: o observatório Gemini, com dois telescópios gêmeos de 8,1 metros, um no Havaí e outro no Chile; e o observatório Soar, com um telescópio de 4,1 metros, no Chile.
O Soar é especialmente importante por ter o Brasil como sócio majoritário, com 31% do tempo de observação (cerca de 90 noites por ano) — comparado a 6,5% no Gemini. Além do impacto na produção científica, o observatório abriu ao país a oportunidade inédita de gerir um observatório de classe internacional e desenvolver sua própria instrumentação científica para ele.
Instalado a 2,7 mil metros de altitude na crista do Monte Pachón, na parte mais ao sul do Deserto do Atacama (vizinho ao Gemini), o Soar foi oficialmente inaugurado em fevereiro de 2005, mas só começou a funcionar cientificamente em agosto de 2006, por conta de problemas técnicos. Desde então, a produção científica do observatório vem crescendo gradativamente, à medida que novos instrumentos de pesquisa são desenvolvidos e instalados no telescópio.
Aos dez anos de idade, o observatório está finalmente “atingindo a curva de maturidade”, diz o pesquisador do LNA e gerente de operações científicas do Soar, Alberto Ardila. “A gente precisava de um telescópio porte médio, num excelente sítio, e que pudesse atender às necessidades da ciência brasileira, com uma fração de tempo maior. O Soar preencheu essa lacuna”, afirma.
Nesse contexto, o Soar tem servido como uma espécie de “observatório-escola” para jovens astrônomos brasileiros, que o utilizam para desenvolver projetos e ganhar experiência no uso de telescópios gradativamente mais sofisticados. “São projetos que não podem ser desenvolvidos no Brasil, no telescópio de 1,6 metro, e que subtilizariam um telescópio de 8 metros”, explica Ardila. “Cada telescópio tem o seu papel. O Soar tem o seu nicho e em momento algum vai ser relegado a um segundo plano”, completa ele, referindo-se à possibilidade de o telescópio se tornar menos relevante, caso o Brasil entre para o ESO.
“A produção científica do Soar e do Gemini está evoluindo de forma absolutamente sadia, e atualmente crescendo a uma taxa de 17% ao ano”, destaca Steiner, que sempre foi um protagonista da parceria brasileira com esses observatórios. “Nós usamos 5,5% do tempo do Gemini, usando os mesmos equipamentos dos americanos, canadenses, australianos e outros países; e participamos da publicação de 12,3% dos papers. Ou seja, temos um uso bastante competitivo desses telescópios.”
Nos últimos dez anos, segundo dados compilados por Steiner, a participação brasileira nesses observatórios rendeu 256 publicações científicas (169 no Gemini e 87, no Soar). E a tendência é que a produtividade só aumente, com a chegada de instrumentos mais sofisticados.
Ainda assim, é pouco para a astronomia brasileira, argumenta Diaz. “Tanto o Soar quanto o Gemini são muito benéficos, mas não comportam a demanda da comunidade por recursos diversificados”, diz o presidente da SAB, cujo número de associados saltou de 190 em 2000 para 738, em 2014; e está previsto para passar de 2 mil em 2025 — refletindo o crescimento da comunidade astronômica nacional.
Beatriz concorda. A produção científica do Brasil no ESO, segundo ela, é maior do que a dos observatórios Gemini, Soar e Pico dos Dias juntos, com 456 trabalhos publicados entre 2006 e 2015. Isso, apesar de o Brasil ainda não ser membro efetivo do consórcio. Sem acesso a essas instalações, ela acredita que a astronomia nacional terá dificuldades para se desenvolver.
Além da chegada de novos instrumentos, mais sofisticados, uma novidade que deve impulsionar a produção científica da dupla Gemini-Soar é um novo telescópio, de altíssima tecnologia, que está sendo construído na mesma montanha que eles: o Large Synoptic Survey Telescope (LSST).
Com um espelho primário de 8,4 metros, acoplado a uma câmera de 3,2 mil megapixels (a maior câmera digital do mundo), o LSST foi projetado para “escanear” o céu noturno continuamente, em alta resolução, de modo a produzir uma imagem completa do universo visível do Hemisfério Sul a cada três noites, durante dez anos. Softwares superssofisticados vão comparar as imagens em tempo real, e qualquer variação — seja na posição, cor, brilho, velocidade ou órbita de um objeto — será notificada na forma de um alerta. É o que os astrônomos chamam de “telescópio de varredura”, usado para detectar alvos interessantes de pesquisa, que podem, então, ser investigados mais a fundo por outros telescópios — como o Soar.
Cerca de 37 bilhões de estrelas e galáxias serão monitoradas pelo LSST, e a expectativa é que 10 milhões de alertas sejam gerados diariamente. A quantidade de dados será tão grande (15 terabytes por noite) que a rede de internet do Chile não terá condições de comportar tudo sozinha. Daí surgiu uma oportunidade para o Brasil.
Em 2012, o consórcio do LSST — liderado pela Fundação Nacional de Ciências e pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos — ofereceu ao Brasil a possibilidade de ter acesso aos dados do telescópio, ao custo de US$ 20 mil por ano para pesquisadores individuais, ou US$ 10 milhões para toda a comunidade científica brasileira até 2030. O LNA encaminhou a segunda opção ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, mas nunca obteve resposta.
O LSST, então, fez uma nova proposta, e acabou fechando negócio com o LNA, o Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA), a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e a Academic Network at São Paulo (ANSP). As quatro instituições darão suporte à transmissão de dados do LSST desde o Chile até os Estados Unidos (com taxas de até 100 gigabytes/segundo). Em contrapartida, dez pesquisadores brasileiros poderão ser credenciados para usar o banco de dados do LSST.
“Esses dez são a ponta de lança, para mostrar que o Brasil está interessado e tem uma contribuição científica para dar ao projeto”, afirma Castilho, diretor do LNA. Passado esse momento de crise, ele ainda espera convencer o governo brasileiro a bancar o acesso integral para toda a comunidade. “Esperamos que até 2022 consigamos demonstrar a importância de o Brasil participar desse telescópio”, completa ele, referindo-se ao ano previsto de entrada em operação do LSST. O projeto todo está orçado em US$ 1 bilhão.
O fato de o Brasil estar sendo chamado para participar desses grandes projetos internacionais, segundo Castilho, é prova da qualidade da astronomia brasileira. “O Brasil é convidado não só por poder pagar, mas porque tem pesquisadores que podem trabalhar em par com os outros que já estão lá”, diz. “Eles precisam de dinheiro? Sim; mas precisam também de parceiros que podem dar uma contribuição científica.”
Equipados com essas novas ferramentas de investigação cósmica, cientistas acreditam que a astronomia está a caminho de produzir uma enxurrada de novas descobertas nos próximos anos. Entre elas, a descoberta de planetas semelhantes à Terra na órbita de outras estrelas, novos detalhes sobre a origem do universo, sobre o funcionamento de buracos-negros e, quem sabe, algumas pistas sobre a natureza da misteriosa “energia escura” que parece impulsionar a expansão do universo. Além, é claro, das descobertas inesperadas “sobre coisas que a gente nem imagina”, observa Castilho.
Se o Brasil quiser participar dessas descobertas, além de garantir presença no Deserto do Atacama precisa garantir a sustentabilidade de seus recursos humanos e financeiros em casa. O LNA sofreu cortes orçamentários severos nos últimos anos, que deixaram seus pesquisadores sem ar condicionado e sem dinheiro para participar de reuniões internacionais. “Tivemos que fazer cortes drásticos, mas felizmente conseguimos definir prioridades e as pesquisas prioritárias do LNA não foram afetadas”, diz Castilho.
O que mais preocupa, segundo ele, é a perda de pessoal. Fundado em 1985, o LNA ainda funciona em grande parte com sua equipe original de funcionários, que está envelhecendo e se aposentando, sem perspectivas de reposição. A última contratação foi em 2012, e só neste ano Castilho já assinou sete aposentadorias — o que representa 10% da sua equipe.
“Entendemos que há uma crise financeira no país, mas se não investir em pessoal, essa crise só vai piorar; porque depois que passar a crise financeira a gente vai ter uma crise de cérebros”, diz Castilho. “Precisamos investir em ciência justamente para sair da crise.”
“O cenário geral é ruim a curto e médio prazo. A longo prazo, é uma incógnita”, resume o presidente da SAB, Marcos Diaz.
Parte da viagem do repórter ao Chile foi realizada a convite do ESO.