Telegrama enviado por Euclides da Cunha ao 'Estado'. Clique para ver no acervo

Carta

Carta enviada por Euclides da Cunha ao 'Estado'. Clique para ver no acervo

Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1888. Clique para ver no acervo

A Pátria e a Dinastia

Euclides da Cunha

Os últimos acontecimentos demonstram eloquentemente que o governo atual, apeado ao terreno infecundo dos expedientes, abandonou consciente da própria esterilidade a verdadeira política, desviando de todo o seu espírito da elaboração elevada das verdades sociológicas imediatamente, adaptadas à direção positiva da nossa nacionalidade. Ignorante, diante das noções mais rudimentares do direito constitucional e além disto profundamente incompatibilizado com o elevado destino da política americana, a sua posição até então indefinida - perante a civilização - começa a assumir um caráter nimiamente agressivo. No entretanto, nenhuma quadra melhor se apresentaria a receber o influxo, a ação poderosa de uma política francamente progressista que aproveitando e orientando racionalmente a vitalidade da Pátria, criasse, através da comunhão necessária dos interesses a grandiosa harmonia, a ligação indispensável de seu futuro ao de suas coirmãs da América.

Nada disto, porém, sequer intentou realizar.

Erguido ao poder a fim de ser, felizmente, o redator autômato da vontade popular, literalmente expressa no decreto de 13 de Maio; coagido pela própria evolução da sociedade - a ser grande; orientado - quando devia orientar; nivelado, quase involuntariamente, às ideias de seu tempo - o governo não soube ou não quis aproveitar a grandeza ocasional em que se achou e longe de seguir o único programa civilizador de que pode dispor - conservar melhorando -, emergiu agora da inércia em que deperecia, para implantar no seio da sociedade, que lhe confiou o futuro, abruptamente, uma apreensão séria que se refletirá do modo mais deplorável, em todos os ramos de sua atividade.

Como explicar esse imprevisto movimento de armas, agora - em que se devia iniciar a convergência de todas as atividades para a luta prodigiosa da paz e do trabalho?...

Não acreditamos que seja uma medida de ordem puramente administrativa - nem que o governo inspirando-se nas teorias do eminente criador do poder moderador - pretenda entregando aos cidadãos armados, à guarda nacional, a segurança interior do estado, investir a força arregimentada de sua verdadeira função que é defendê-lo no exterior. Esta medida seria precipitada sobre ser extemporânea. A guarda nacional é entre nós um mito - e que o não fosse pior ocasião não se poderia apresentar, para esse movimento assustador de dez mil baionetas na direção de uma fronteira - já de si fortalecida pela debilidade da nação limítrofe.

Se pretende fazer sentir nos destinos das nacionalidades em litígio a sua influência, no peso da espada de um marechal ilustre - patenteia um triste retrocesso mental, fere de frente o direito constitucional, que negando-lhe a faculdade de declarar a guerra impede-lhe, portanto, de originar-lhe causas e indica limpidamente ter a mentalidade trancada ao maior ideal da política moderna, feito pela sistematização de todos os princípios generosos, em que a supremacia mental inspira e onde a fortaleza das ideias concorre vitoriosamente com o frágil vigor das espadas. Colocou, além disto, de um lado ou doutro dos próximos beligerantes, ou entre ambos, dez mil homens, dez mil temperamentos, expostos a todas as emoções, à magia e às esperanças da glória e dos combates - é ocasionar a guerra, o estéril dispêndio no exterior - agora - em que assoberba-o, crescente, no interior - a anarquia econômica!

Pretenderá dar ao nosso século - o escândalo de uma guerra de conquista?... Acreditamos que não.

A causa, a verdadeira causa talvez - da ação teatral do governo - já está de há muito desvendada.

Sentindo desaparecer dia a dia, o automatismo que por tanto tempo aniquilou a orientação digna da maioria dos atos da sociedade brasileira; compreendendo, diante do espírito nacional vigorosamente alentado por novas aspirações, a fragilidade do cômodo regime que o sustenta; notando - o que é mais sério - que a fronte do soldado, banhada nas correntes iluminadas do espírito contemporâneo, ousava cometer um delito, não previsto pelo conde de Lippe - racionar, o que transmudava-o numa força, força que se traduzia num movimento desassombrado e harmônico com o da sociedade; temendo, sobretudo, esse consórcio do pensamento com a espada - aliança que coloca esta ao lado do futuro e da liberdade - o governo resolveu antepor à política da Pátria a política imperial. E adotou a norma banal de dispensar para enfraquecer. Dispensa o exército, e tendo-o assim, não podendo destruir-lhe no cérebro a noção digna que começa a ter do futuro - excita-lhe a ambição com a imagem encantadora de futuras glórias. Santa ilusão, porém, em tudo isto!...

Desiluda-se o governo. A civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; emanada imediatamente de um fato, que assume hoje na ciência social o caráter positivo de uma lei - a evolução - o seu curso, como esta, é fatal, inexorável, não ha tradições que demorem-lhe a marcha, nem revoluções que a perturbem - tanto assim é que atravessando o delírio revolucionário de 93 e tendo pela frente - impugnadora - a espada de Bonaparte, onde irradiavam as gloriosas tradições do maior povo do mundo - emerge-o tranquilo no vasto deslumbramento do século XIX.

Desiluda-se pois, o governo; a evolução se opera na direção do futuro - e quer o governo queira, quer não, embora voltado para o passado, caminhará com ela, para a frente, mas como os covardes - recuando.

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Publicado originalmente no jornal “A Província de S.Paulo” em 22 de dezembro de 1888.

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No artigo de estreia, ataques ao regime

Por Walnice Nogueira Galvão

Foi em decorrência de um incidente em que se envolveu no Rio nos estertores do Império, que Euclides da Cunha veio passar uns tempos em São Paulo, enquanto a crise amainava. Contava então 22 anos de idade. O futuro escritor era aluno da Escola Militar da Praia Vermelha, foco de agitação republicana. Nos anos de sua formação como engenheiro militar, participou da mais brilhante fase de ativismo político da escola, então uma das mais avançadas do Brasil.

O incidente derivou do seguinte. O corpo discente tinha combinado ir esperar o tribuno republicano Lopes Trovão no cais do porto, para aguardar seu desembarque do navio em que fora à Europa fazer propaganda da causa, angariando apoios e adeptos. O ensejo abrigaria um comício e se passaria num domingo. Ao tomar conhecimento, a direção da escola transferiu para esse dia o protocolo da inspeção das tropas que seria efetuada pelo ministro da Guerra, por uma autoridade imperial, portanto. Revoltados, os estudantes conspiraram para realizar um ato de protesto na ocasião, que consistiria, em vez de desembainhar e erguer os sabres ao comando de “Apresentar armas”, atirá-los ao chão. Só Euclides executou o gesto. Preso na Fortaleza de Santa Cruz, ficou alguns dias aguardando uma decisão.

Enquanto isso, o incidente tomou a primeira página dos jornais e passou a ser discutido no Parlamento. Ameaçado de ser submetido a conselho de guerra, por fim seria apenas expulso, graças, dizem, a um pedido de indulto pessoal dirigido por seu pai ao imperador Pedro II. Euclides então prefere sair de cena, mudando-se por uns tempos para São Paulo, onde foi acolhido de braços abertos pelo cenáculo republicano que se reunia na redação do jornal A Província de S. Paulo. Data daí o início de sua colaboração com a folha de Julio Mesquita, que perduraria por toda a sua vida.

Este é seu artigo de estreia. Outros se seguiriam. A tônica seria a de virulentos ataques contra o regime, aqui aludido como a dinastia – a de Bragança, portuguesa, a que pertencia a casa real brasileira. Neste artigo, Euclides se dedica a criticar inflamadamente a recente movimentação de tropas ordenada pelo governo, sob pretexto de defender as fronteiras do País. Segundo o autor, o pretexto encobria a tentativa de dividir as forças armadas, maciçamente pela República, para enfraquecê-las, esgarçando o tecido de sua coesão – aliás, em vão, como os acontecimentos viriam a comprovar.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1888. Clique para ver no acervo

Questões Sociais: Revolucionários

Euclides da Cunha

O republicano brasileiro deve ser sobretudo eminentemente revolucionário. Expliquemos o paradoxo.

A noção elevada da Pátria, despida da feição sentimental que a caracterizava, assume hoje as proporções de uma brilhante construção cerebral em que entram, como elementos únicos, necessários e claramente correlativos as concepções do tempo e do espaço.

Mais, talvez, do que filho de uma região o homem da modernidade – é filho do seu tempo.

Vinculado ao território pelas tradições e pela família, a humanidade que é a generalização desta e a história que é a síntese racional daquelas, vinculam-no a seu século.

Da perfeita harmonia destas concepções resulta o homem moderno.

Compreender a Pátria, isolando qualquer destes elementos, é incompatibilizar-se com o movimento evolutivo do progresso: é partir do egoísmo infecundo e criminoso de Bismark ao altruísmo exagerado – ao cosmopolitismo não menos infecundo de Anacharsis Clootz, declarando-se cidadão do mundo!

A marcha das sociedades traduz-se melhor pelo equilíbrio dinâmico destas duas concepções.

Devendo aos esforços comuns das gerações passadas a altitude prodigiosa de sua individualidade; preso pelas impressões do presente ao território da Pátria – o cidadão moderno, na elevação enorme em que o princípio geral da relatividade o obriga a colocar seu espírito – desde que pense no futuro – elevação a que só atingirá pela ciência – dominado pelo cosmopolitismo desta, irmana-se forçosamente a seus coevos.

É uma fraternidade que se estabelece pelo cérebro e pelo coração; é um sentimento orientado pelo raciocínio, cuja existência se demonstra com a mesma frieza, tão positivamente como um princípio de mecânica e do qual a feição mais característica se chama – civilização.

É esta, de fato, a nossa pátria no tempo.

Negá-la é negar a função mais elevada da ciência; da ciência que além de estabelecer pelo desenvolvimento filosófico de suas teorias, a vasta solidariedade do espírito humano, sob a sua forma, empiricamente útil, como arte, subordina inteiramente a esta solidariedade as grandes exigências da vida moderna.

Pois bem; a política do século XIX chama-se democracia; de há muito a colaboração de todas as ciências e das tendências naturais do nosso temperamento, despiu-a do frágil caráter de uma opinião partidária, para revesti-la da fortaleza, da lógica inquebrantável de uma dedução científica. Em sociologia, eu creio, que observando profundamente as energias, as ligações e o movimento do complicado sistema social, chega-se a ela tão naturalmente como na matemática Lagrange à fórmula geral da dinâmica. Assim, não é uma forma de governo que se adota, é um resultado filosófico que se é obrigado a adotar; forma-se um democrata como se faz um geômetra, pela observação e pelo estudo; e, nesta luta acirrada dos partidos, por fim o republicano não vencerá – convencerá; e tendo, enfim, dominado os adversários, não os enviará à guilhotina, manda-los-à para a escola. A democracia é pois como uma teoria científica inteiramente desenvolvida, simboliza uma conquista da inteligência, que a atingiu na Sociologia, depois de se ter vigorado pela observação metódica da vasta escala da fenomenalidade inferior; síntese final de todas as energias racionais (podemos assim dizer) que impulsionaram as evoluções políticas de todas as nacionalidades e definindo – na Política – o fastígio da mentalidade humana, é hoje impossível, com abstração dela, uma compreensão exata da civilização.

Pois bem; se tudo isto se dá, se de fato ninguém deve fugir à ação de seu tempo e se a democracia é a forma de governo mais em harmonia com ele – é claro que lutarmos pela sua realização, equivale a lutarmos para que se complete o nosso título de cidadãos – porque ela é, de fato, o complemento moral da Pátria. Essa luta, porém – é francamente reacionária.

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Publicado originalmente no jornal “A Província de S.Paulo” em 29 de dezembro de 1888.

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Pela República, contra a Monarquia

Por Walnice Nogueira Galvão

Perseverando na missão de fustigar o regime monárquico, Euclides, que logo regressaria ao Rio de Janeiro após breve temporada paulista, escreverá com frequência em A Província de S.Paulo, até a derrubada do trono em 15 de novembro de 1889.

No presente artigo, expressa-se como um digno aluno da Escola Militar, consciente de que a corporação a que pertence, o exército, comanda no momento o processo político e será responsável pela deposição do imperador. Consequência da Questão Militar, tudo remonta à guerra do Paraguai, quando de fato as forças armadas, antes fracas, dispersas, pouco profissionais e de pequena visibilidade, se tornaram o principal protagonista do país.

Concluída a guerra, constatou-se que o comportamento dos militares mudara. Mostravam-se mais imbuídos do senso da própria importância e ansiavam por opinar sobre os destinos do país, enfrentando autoridades e desafiando a hierarquia. Deslanchando um processo que nada conseguiria reverter, infringiam a disciplina fazendo declarações em público, sobretudo através da imprensa.

Punidos por seus superiores, passaram a desafiá-los e a transgredir as instruções recebidas. A crise foi-se avolumando, com crescentes manifestações coletivas de descontentamento. No processo, o futuro marechal Deodoro da Fonseca, que viria a ser o primeiro presidente da República, iria assumir uma liderança inconteste. Ao tornar-se ele próprio alvo de punições, acarretaria a queda do ministro da Guerra, em seguida a de todo o gabinete, e por fim a do próprio imperador.

Neste artigo, Euclides chama às falas os camaradas de armas adeptos do republicanismo, conclamando-os a assumir seu papel de revolucionários, cujo dever é primeiro destruir para depois construir. A seu ver, a democracia, pela qual optam, é calcada na ciência, e por isso sua objetividade não se discute. Ao mesmo tempo, têm uma missão ilustrada, pois a revolução que pretendem efetuar deverá se deter antes de passar a excessos, como o do Terror na Revolução Francesa. Esta, modelo sempre à vista na Escola Militar, onde era estudada em pormenor, fornece os requisitos para a definição do “cidadão armado”, aquele encarregado pela História de implantar a democracia e a civilização – convicção sempre verificável nos escritos de Euclides.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1892. Clique para ver no acervo

Dia a dia

Euclides da Cunha

Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa...

Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.

Abandonam o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira...

Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.

O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob a guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos - transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história - pensa!

Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos dias - a burguesia triunfante.

Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento.

E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços.

E que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso bocejo...

Sem entrarmos na analise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora.

O quarto estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.

Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.

Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de estupidez - Ravachol.

Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.

Realmente, a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica - chegamos as vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina.

Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.

Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.

Pela segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro.

Seja qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.

Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.

Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido - o Exército - abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 1° de maio de 1892.

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Sem a Monarquia, uma crise de identidade

Por Walnice Nogueira Galvão

A proclamação da República a 15 de novembro de 1889 trouxe a reabilitação de Euclides, com reintegração na Escola Militar: em 1892 já era oficial do exército e detentor do diploma de engenheiro militar. Entre março e julho desse ano, assinaria uma série de 27 crônicas, sob o título geral de “Dia a dia”.

Pelo mesmo lance, Euclides ficara de um momento para o outro privado de seu adversário, a monarquia, a quem atacara sem cessar através de artigos em A Província de S. Paulo, desde que fora expulso da Escola Militar.

A série “Dia a dia” deixa transparecer uma certa crise de identidade, patenteando como foi especialmente desnorteante deixar de escrever contra o Antigo Regime e passar a escrever a favor da República. Arrefeceu a verve de combate: fora mais fácil pertencer à oposição. E tampouco era simples acompanhar esses inícios, em que os senhores do momento se engalfinhavam nas facções em atrito, empenhadas em golpes e contragolpes. Assim foi sob Deodoro e sob Floriano.

Tratava-se doravante de participar do processo de construção do novo regime, tarefa a que Euclides se consagraria com entusiasmo, ansioso por oferecer sua contribuição, criticando as iniciativas que lhe pareciam equivocadas e principalmente o desvirtuamento dos ideais republicanos.

O novo regime mostrou-se mais acolhedor a figurões veteranos, dispostos a tudo para continuar participando do poder, do que a incorporar adeptos fervorosos da República que tinham lutado para trazê-la à luz, como é o caso de Euclides. As referências contidas em sua correspondência não são nada abonadoras nem lisonjeiras para os poderosos recém-chegados, entregues a conchavos e transações dos mais escusos.

Neste artigo, Euclides aproveita a efeméride, o Dia do Trabalho, para fazer uma homenagem ao proletariado industrial. Tece considerações sobre o fato de que, ainda incipiente no Brasil, nos países da Europa já constitui uma classe ponderável, capaz de parar a máquina do mundo se cruzar os braços. Impressiona aqui seu talento visionário, que surgirá com força nos livros que escreverá, em sua capacidade de criar com palavras vívidos quadros que evocam a legião dos operários saindo das trevas do passado para ocupar seu lugar na História, à luz da liberdade futura.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1892. Clique para ver no acervo

Instituto Politécnico

Euclides da Cunha

Sem nos filiarmos a escolas filosóficas - o que é um verdadeiro absurdo na mocidade, na quadra exuberante em que, para a formação imprescindível da consciência, nos voltamos indistintamente para todas as ideias, abrindo com igual interesse e igual curiosidade todos os livros, ouvindo com igual respeito todas as crenças e tributando igual veneração a todos os sábios - vamos definir o nosso modo de pensar acerca do projeto apresentado pelo sr. dr. Paula Souza ao congresso do Estado, assistindo-nos, a nós que estas linhas traçamos, para isso, mais do que o fato insignificantissimo de um bacharelado em matemática e ciências físicas, o direito de crítica, dessa crítica ousada e intransigente, destinada a desaparecer no futuro - mas que é ainda um mal necessário, o defeito mais brilhante e indispensável das sociedades modernas.

Levamos a imparcialidade mesmo ao ponto de afastar do início do assunto, a questão fundamental que se refere à intrusão do Estado no desenvolvimento do ensino. Está hoje limpidamente demonstrado que este cresce na razão inversa da proteção daquele; e que os programas oficiais, estáveis, mudando-se com intervalos mais ou menos longos, por meio das reformas periódicas, imobilizam a instrução, no meio da movimentação sempre ascensional e crescente dos conhecimentos. Muito menos estabeleceremos em abono destas ideias, o paralelo entre as universidades francesas - sem autonomia, afogadas pelo protecionismo oficial, esterilizadas por uma uniformidade aniquiladora de métodos imutáveis - e as escolas alemãs, quase que autônomas, em cujo seio para cada ramo de conhecimentos existem muitas vezes duas ou três cadeiras rivais - estabelecendo assim franca a máxima variação de métodos, uma grande concorrência de ideias, o que na crise moderna, é de muito mais fecundidade do que a estagnação da rotina.

Realmente, todos compreendemos que se faz infelizmente necessária entre nós, povo afeito à passividade hibernante do passado regime - a ingerência do Estado nas questões mais simples do nosso progresso, embora acerca do que diz respeito à instrução superior, a iniciativa individual já tenha despontado, com sensível eficácia, na criação das faculdades livres de direito.

Segundo a judiciosa observação de um pensador contemporâneo, em todas as agitações sociais existe sempre uma estreita solidariedade entre as instituições políticas, que se transformam, e as disciplinas pedagógicas. Assim é que o primeiro esboço da secularização do ensino pelas universidades, decorre, no século XIII, do alevantamento do proletariado à existência civil - e a criação de escolas profissionais , a especialização do ensino, decretada pela convenção auxiliada pela brilhante elaboração científica dos séculos XVII e XVIII, foi como que o coroamento indispensável da grande revolução. O que desta sorte, assim se evidencia, nas mutações que afetam em geral a todas as sociedades, dá-se do mesmo modo em cada uma delas especialmente.

Desde que a reforma política tende para um estado mais elevado da existência civil, há como que a imprescindível necessidade de por ele nivelar os espíritos, pela íntima subordinação inegável da política à filosofia.

Daí a tendência notável de todos os legisladores que se voltam, nas quadras de reorganização social, afanosamente, para questões sérias e interessantes do ensino.

Esta tarefa porém, altamente louvável, é altamente difícil.

Temos disto uma prova irrecusável e eloquentíssima no desastroso projeto, apresentado agora ao congresso do Estado, e que é entretanto amparado por um nome respeitável por muitos títulos.

Trata-se da criação de um instituto politécnico - no qual as diferentes profissões irradiam de uma vasta base subjetiva, comum, de verdades científicas.

Nada realmente mais necessário, do que o projeto uniforme da filosofia pairando sobre todas as formas da atividade; somente ele as esclarece e orienta, imprimindo-lhes os mais elevados destinos.

Da mesma sorte que as nossas teorias científicas abstratas, gerais, embora nos permitam previsões racionais - não se podem tornar úteis, pela modificação do meio de harmonia com as nossas necessidades, sem a intervenção dos processos práticos que, modificando as leis adquiridas pela abstração, as aproximam da realidade objetiva; - do mesmo modo a prática, nas suas indagações, nada pode produzir sem as indicações teóricas que lhe limitam e fortalecem a ação.

Um curso preparatório, eminentemente teórico, de onde defluam as verdades amplamente gerais da ciência, deve presidir portanto aos cursos especiais, que criam as profissões.

Estas breves considerações, indicando a maior harmonia de vistas acerca da ideia fundamental que parece caracterizar o projeto do sr. Paula Souza, não impedem, apesar disto, que vejamos nele, tal qual se acha elaborado, uma coisa desastrosa, que, se for convertida em lei, definirá de um modo deplorável a feição superior da nossa mentalidade.

Deixando de parte as incorreções imperdoáveis, que ressaltam de pronto à simples leitura do artigo 1º do projeto, pelo qual fica criada em S. Paulo uma escola superior de matematicas e ciencias aplicadas às artes e indústrias, etc. como se houvesse mais de uma matemática e não fosse ela a única ciência a adquirir, num de seus ramos, a Mecânica, um caráter de inteira unidade; como se ela não fosse a mesma, do mais simples cálculo de valores às mais sérias das questões da Termologia; deixando de parte isto e a desnecessária redundância artes e indústrias - como se a indústria não fosse uma modalidade das artes técnicas - consideremos o art.3º do projeto, aonde vêm explícitas as matérias constituintes da escola preparatória; copiemo-las tal qual ali se acham respeitando a ordem em que estão formuladas.

Estas matérias são: “Língua portuguesa, álgebra elementar e superior, geometria plana e no espaço, trigonometria plana e esférica, geometria descritiva e geometria analítica e geometria superior e cálculo diferencial e integral, mecânica racional, física experimental, química geral, inorgânica e orgânica, topografia e geodésia, desenho de mão livre, linear, de ornamentação e topográfico.

Compreendendo que estas diferentes matérias não poderiam ter uma sucessão ilógica, de uma a outra, e convictos da impossibilidade - no estado atual do espírito humano - da iniciação de estudos superiores, sem o indispensável critério de uma classificação científica - procuramos entre as inúmeras classificações de ciências alguma que justificasse a colocação da Geometria Analítica antes do cálculo transcendente e a da Geodésia depois da Química e nem a de Bacon, nem a de Ampère, nem as modernas de Bordeau, Spencer e Augusto Comte, nos satisfizeram o espírito inexperiente e ávido de conhecimentos.

Não acreditamos, apesar disto, que um legislador eminente e que intenta o levantamento mental de seus pais, perdesse tão boa ocasião de se definir acerca do encadeamento indispensável dos conhecimentos científicos, lançados a esmo, num projeto sujeito à discussão, disciplinas que, estamos acostumados a ver subordinadas a uma certa hierarquia.

Prosseguindo, vemos logo após à geometria plana e no espaço, (o que conhecemos em ciência sob a designação de Geometria Especial) a trigonometria retilínia e a esférica, guindadas à categoria de ciência, quando não passam de soluções analíticas do triângulo retilíneo e do ângulo triedro, e nesse caráter nada mais são do que capítulos da própria Geometria Especial. É no entanto isto uma coisa facilmente compreensível e que já ninguém discute.

Logo após a Geometria analítica o projeto nos patenteia uma novidade - a Geometria superior. Não tripudiemos, porém, sobre este erro lamentável. Acreditemos que o ilustre legislador se quis referir à geometria diferencial e integral; realmente não existe na matemática esta geometria superior, a não ser por uma designação caprichosa e por isto mesmo altamente reprovável.

Notamos, após isto, entre as matérias indicadas a ausência da Astronomia, a ciência ilustre por excelência, representando, na frase de D’ Alenbert, o monumento mais incontestável do sucesso a que se pode elevar por seus esforços a inteligência humana.

Porque este inteiro abandono da cosmologia celeste, quando o projeto dá o máximo desenvolvimento à cosmologia terrestre e o estudo do movimento e da figura dos astros é uma aplicação constante e fecunda das teorias gerais estabelecidas anteriormente, no domínio da matemática?

Numa escola preparatória, destinada à construção ideal de mentalidades formadas para a orientação de elevadíssimas atividades técnicas, é imensamente criminosa a exclusão da ciência aonde se esboça e se desenvolve sistematicamente a observação, e aonde o método indutivo, que tão vigorosamente reage sobre as ciências superiores, se estabelece definitivamente.

Já que este curso preparatório tende sobretudo a criar uma base subjetiva de conhecimentos às diferentes profissões esta exclusão equivale à sua mutilação a mais dolorosa, porque além da ação filosófica que imprime às demais ciências, a Astronomia é, em muitos pontos, a base científica da Geodésia, apontada no projeto, e cujo estudo, baseado quase todo no conhecimento das teorias astronômicas, é verdadeiramente impossível, sem o influxo da ciência fundamental.

É verdadeiramente consternadora a leitura do projeto que cria o Instituto Politécnico de S. Paulo.

Vazio de orientação, incorretíssimo na forma, e filosoficamente deficiente, repelimos de todo a ideia que ele possa vir a modelar a nossa mentalidade futura.

É de fato para espantar que um projeto, ostentando tanto luxo de erudição, e intentando um preparo científico anterior às especializações técnicas, tenha olvidado o conhecimento geral da Biologia e da Economia Política, ciências igualmente preparatórias e indispensáveis a todas as carreiras.

Nos diferentes cursos especiais não existe o de engenharia geográfica, embora a existência da geodésia, no curso preparatório, tenha legitimado a sua aparição. Porque razão esquecê-la, quando nos é totalmente desconhecida a metade do país e somente ela pode desvendá-la?

Tudo isto seria ainda desculpável, se sobre o projeto em questão se refletisse o brilho de uma orientação segura - o que é a garantia mais robusta da ação legislativa.

Procuramo-la debalde. Nada há mais ali além da enumeração arbitrária de matérias e a fixação do prazo de três anos, em que devem ser estudadas, segundo programas organizados pelo futuro diretor da escola.

O legislador abdica, assim, num terceiro, que pode ser um incompetente. De sorte que a organização do projeto pertencerá afinal a este e não ao poder legislativo que a devia formular.

Já que temos um congresso destinado a legislar, semelhante incompetência, tacitamente formulada - é um desastre e uma profunda desilusão para todos.

Daí é possível que estejamos em erro.

Abandonando ainda ontem uma academia, somente agora começamos realmente a estudar.

Este protesto balbuciante, pois, não tem a pretensão de abalar si quer um projeto - fruto de um espírito mais experiente, que deve ser mais solidamente constituído e infinitamente mais lúcido do que o nosso.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 24 de maio de 1892.

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Comentário a “Instituto Politécnico”

Por Walnice Nogueira Galvão

Foi em 1892 que o recém-formado Euclides, extraviando-se um pouco de sua ardente preocupação de todos os dias com a política, resolveu criticar o projeto de criação de um Instituto Politécnico em São Paulo – onde essa escola, futuramente famosa, teria longa vida e se salientaria como uma das melhores instituições docentes do país. Como boa parte do currículo coincidia com o que estudara na Escola Militar, também votada à formação de engenheiros, percebe-se que se sentiu à vontade para expor sua crítica.

São pormenores de currículo o que critica – entre outros, a ausência da Astronomia – mas o faz com tal veemência, que chega a qualificá-lo de “desastroso” por duas vezes. Talvez não tivesse maior interesse o artigo, publicado em duas partes, se não tivesse, agora sim, um peso desastroso no futuro de Euclides.

Já há algum tempo cogitava em abandonar a farda, o que faria aos 30 anos, em 1896. Tornou-se, então, engenheiro civil, na qualidade de funcionário público da Superintendência de Obras do Estado de São Paulo, profissão que exerceria por vários anos. Foi por isso que lhe coube o encargo de reconstruir a ponte de São José do Rio Pardo, que uma enchente levara de roldão. Assim ligaria para sempre sua pessoa e sua obra a essa cidade, onde até hoje se realiza anualmente a Semana Euclidiana, pois foi lá que escreveu Os sertões, numa cabana a beira-rio, enquanto supervisionava os trabalhos de engenharia. A cabana está preservada como lugar de memória.

O magistério foi uma opção que atraiu suas preferências: afora o Instituto, tentou sucessivamente a Escola Militar do Rio Grande do Sul, tanto quanto os ginásios de Campanha e de Campinas. Quando morreu, finalmente, era professor de Lógica no Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, cargo que ocupou apenas por poucos meses.

Espírito irrequieto, desistiu do exército, reclamava da engenharia civil, interessou-se pelo magistério e aspirou a um cargo político. Tal percurso pode ser melhor acompanhado em sua correspondência, à qual, por ser confidencial, era mais inclinado a revelar o que pensava. Saiu-lhe cara a tentativa de intervenção nos destinos do Instituto: nunca conseguiu lá entrar, embora continuasse tentando durante doze anos, até 1904.

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A Nossa Vendéia - I

Euclides da Cunha

O relatório apresentado em 1888 pelo Sr. José C. de Carvalho sobre o transporte do meteorito de Bendegó, os trabalhos do ilustre professor Caminhoá e algumas observações de Martius e Saint-Hilaire fazem com que não seja de todo desconhecida a região do extremo norte da Bahia determinada pelo vale do Irapiranga ou Vaza Barris, rio em cuja margem se alevanta a povoação que os últimos acontecimentos tornaram histórica - Canudos.

Pertencente ao sistema huroniano ou antes erigindo-se como um terreno primordial indefinido entre aquele sistema e o laurenciano, pela ocorrência simultânea de quartzitos e gnaisses graníticos característicos, o solo daquelas paragens, arenoso e estéril, revestido, sobretudo nas épocas de seca, de vegetação escassa e deprimida, é, talvez mais do que a horda dos fanatizados sequazes de Antônio Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas.

Embora com a regularidade que lhes é inerente passem sobre ele impregnadas de umidade adquirida em longa travessia do Atlântico, na direção de noroeste, os ventos alísios - a ação benéfica destes é em grande parte destruída, simultaneamente, pela disposição topográfica e pela estrutura geognóstica da região.

Assim é que falta a esta, talvez, correndo em direção paralela à costa, uma alta cadeia de montanhas - destinadas na física do globo a individualizar os climas, segundo a expressão sempre elegante de Humboldt - na qual refletindo ascendam aquelas correntes às altas regiões onde um brusco abaixamento de temperatura, determinado pela dilatação num meio rarefeito, origine a condensação dos vapores e a chuva.

A observação do relevo da nossa costa justifica em grande parte esta hipótese despretensiosamente formulada. De fato, terminada a majestosa escarpa oriental do planalto central do Brasil, a serra do Mar, que desaparece na Bahia, diferenciada em serras secundárias, acentua-se de modo notável para o norte a depressão geral do solo de ondulações suaves, patenteando num ou noutro ponto apenas, sem continuidade, as massas elevadas do interior.

Por outro lado, a estrutura geognóstica daquela região, composta em grande parte de rochas dotadas de alto poder absorvente para o calor, determina naturalmente a ascensão quase persistente de grandes colunas de ar, ardentíssimas, que dissipam os vapores ou afastam as nuvens que encontram.

Da concorrência de tais fatos, acreditamo-lo, resulta provavelmente a causa predominante das secas que periodicamente assolam aquelas paragens, estendendo-se com maior intensidade aos estados limítrofes do interior.

Daí a aridez característica, em certos meses, dos sertões do norte.

Nessas quadras a relva requeimada, através da qual, como única vegetação resistente, coleiam cactos flageliformes reptantes e ásperos, dá aos campos, revestidos de uma cor parda intensa, a nota lúgubre da máxima desolação; o solo fende-se profundamente, como se suportasse a vibração interior de um terremoto; as árvores desnudam-se despidas das folhagens, com exceção do Juazeiro de folhas elípticas e coriáceas, - e os galhos que morreram ficam por tal modo secos que, em algumas espécies, basta o atrito de um sobre outro para produzir-se o fogo e o incêndio subsequente de grandes áreas.

E sobre as chapadas desertas e desoladas levantam-se quase que exclusivamente os mandacarus (cereus) silentes e majestosos; árvores providenciais em cujos galhos e raízes armazenam-se os últimos recursos para a satisfação da sede e da fome ao viajante retardatário - cactáceas gigantes que revestidas de grandes frutos de um vermelho rutilante e subdividindo-se com admirável simetria em galhos ascendentes, igualmente afastados, patenteiam a conformação típica e bizarra de grandes candelabros firmados sobre o solo...

“Então, diz Saint-Hilaire, um calor irritante acabrunha o viajante, uma poeira incômoda alevanta-se sob seus passos e algumas vezes mesmo não se encontra água para mitigar a sede. Há toda a tristeza de nossos invernos com um céu brilhante e os calores do verão.”

Sem transição apreciável, entretanto, a estas secas intensas e nefastas, sucedem, bruscamente às vezes, as quadras chuvosas e benéficas: impetuosas correntes rolam sobre o leito de rios que dias antes ainda completamente secos davam ideia de largas estradas tortuosas, lastradas de quartzo fragmentado e grés duríssimo, conduzindo a lugares remotos do sertão.

E sobre os campos, em cujo solo depauperado vingavam apenas bromélias resistentes e cactos esguios e desnudos, florescem o imbuzeiro (Spondias tuberosa) de saboroso fruto e folhas dispostas em palmas; a jurema (acácia) predileta dos caboclos e os murungús interessantíssimos em cujos ramos tostados e sem folhas desdobram-se como flâmulas festivas grandes flores de um escarlate vivíssimo e deslumbrante.

“O ar que então se respira, diz o ilustre professor Caminhoá, tem um aroma dos mais agradáveis e esquisitos. Uma temperatura de 16° a 18° à noite e pela manhã obriga a procurar agasalho aos que poucos dias antes dormiam ao relento e com calor. As aves que tinham emigrado para as margens e lugares próximos dos rios e mananciais voltam a suas habitações. Foi ali que compreendemos quanto é bem dado aos papagaios o nome específico de festivus. Com efeito, quando chegam os bandos destas aves a gritarem alegremente, acompanhadas de um sem número de outras, começam logo a se animar aquelas paragens e como que a natureza desperta.

Então, o sertanejo é feliz e não inveja nem mesmo os reis da terra!”

Como se vê naquela região, intermitentemente, a natureza parece oscilar entre os dois extremos - da maravilhosa exuberância à completa esterilidade. Este último aspecto, porém, infelizmente, parece predominar.

A este inconveniente alia-se um outro, derivado da disposição geral do terreno. Assim é que de todo contraposta à topografia habitual dos nossos campos do Sul - ligeiramente ondulados e descambandos em suaves declives para os inúmeros vales que os rendilham, caracterizam-se aqueles pelas linhas duras e incisivas das fundas depressões, terminando os tabuleiros bruscamente em escarpas abruptas, separando-se os serros por desfiladeiros estreitos, flanqueados de grotas cavadas à pique...

Com muito maior intensidade que no Sul observa-se ali a ação modificadora dos elementos sobre a terra.

Nos lugares em que a ação mecânica das águas determinando uma erosão mais enérgica faz despontar a rocha granítica subjacente, observa-se quase sempre um fenômeno interessante. Esta última apruma-se, largamente fendida em direções quase perpendiculares dando a ilusão de lanços colossais e semiderruídos de ciclópica muralha, nos quais as lajes enormes dispõem-se às vezes umas sobre outras, com admirável regularidade. Este fato, largamente observado por Livingstone nas baixas latitudes africanas, traduz a inclemência do meio.

Patenteia a alternativa persistente do calor dos dias ardentíssimos e o frio da irradiação noturna de onde resulta a disjunção da rocha em virtude deste jogo perene de dilatações e contrações.

Estes rudes monumentos, nos quais não se equiparam talvez os dolmens da Bretanha, quebram em grande parte a monotonia da paisagem avultando, solenes, sobre o plano das chapadas...

É sobre estes tabuleiros recortados por inúmeros vales de erosão, que se agitam nos tempos de paz e durante as estações das águas, na azáfama ruidosa e álacre das vaquejadas os rudes sertanejos completamente vestidos de couro curtido - das amplas perneiras ao chapéu de abas largas - tendo a tiracolo o laço ligeiro a que não escapa o garrote mais arisco ou rês alevantada e pendente, à cinta, a comprida faca-de-arrasto, com que investe e rompe intrincados cipoais.

Identificados à própria aspereza do solo em que nasceram, educados numa rude escola de dificuldades e perigos, esses nossos patrícios do sertão, de tipo etnologicamente indefinido ainda, refletem naturalmente toda a inconstância e toda a rudeza do meio em que se agitam.

O homem e o solo justificam assim de algum modo, sob um ponto de vista geral, a aproximação histórica expressa no título deste artigo. Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina as suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do Império.

A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se, completam-se. O chouan fervorosamente crente ou o tabaréu fanático, precipitando-se impávido à boca dos canhões que tomam a pulso, patenteiam o mesmo heroísmo mórbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados.

A justeza do paralelo estende-se aos próprios reveses sofridos. A Revolução Francesa que se aparelhava para lutar com a Europa, quase sentiu-se impotente para combater os adversários impalpáveis da Vendéia - heróis intangíveis que se escoando céleres através das charnecas prendiam as forças republicanas em inextrincável rede de ciladas...

Entre nós o terreno, como vimos, sob um outro aspecto embora, presta-se aos mesmos fins. Este paralelo será, porém, levado às últimas consequências. A República sairá triunfante desta última prova.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 14 de março de 1897.

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Com Canudos, um novo rumo para o autor

Por Walnice Nogueira Galvão

Com um par de artigos de mesmo título, este e o seguinte, Euclides ousa dar um passo que decidirá seu destino: ao opinar sobre a guerra de Canudos, definiria os rumos de sua vida e de sua carreira. Homem complexo, de espírito aventuresco, com vocação para desbravador, abrigava anseios de amplidão. É o que demonstraria em vários lances, culminando quando, já famoso, insistiria em partir numa expedição de 18 meses ao Alto Purus, na Amazônia. Precocemente, manifestara em poemas juvenis o desejo de embrenhar-se pelos sertões. O título do artigo equipara Canudos à província que se sublevara em 1793 contra a Revolução Francesa, com base numa aliança católica entre camponeses e nobres. Feliz achado, seria repetido por todos e intitularia provisoriamente Os Sertões.

Até então, ninguém prestara atenção às duas primeiras expedições, de âmbito estadual, que se passavam no remoto sertão da Bahia. Mas dez dias antes, a 4 de março, a 3ª. Expedição contra Canudos, ao deslanchar sua investida contra o arraial, debanda e bate em retirada. As forças engajadas tinham vindo de todo o Brasil e eram comandadas pelo coronel Moreira César, que se ilustrara no combate à Revolução Federalista no Sul do país, onde ganhara o apelido de “Corta-pescoço”.

O pânico que se alastrou pela nação, explorado pelos políticos e pelos jornais, dava a entender que uma conspiração monarquista de âmbito internacional, visando à restauração do trono, tinha seu foco em Canudos. Motins de rua mobilizaram-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. O clamor pelo extermínio dos canudenses tornou-se geral.

Euclides achava-se abalizado a opinar, já que tinha analisado campanhas bélicas na Escola Militar. Abalança-se aqui a examinar a natureza do sertão, pois lhe parece um adversário pior que os conselheiristas. Evoca o solo pedregoso e estéril, o relevo e o calor ambiente, a seca endêmica na região, a vegetação mirrada da caatinga. O vezo estilístico da representação de uma natureza inóspita já adquire o teor dramático que dará a nota em Os sertões. A exemplo de todos, não manifesta a menor simpatia pelos canudenses. Ao contrário, chama-os de “horda dos fanatizados sequazes de Antonio Conselheiro”, postura que se desdobrará no artigo seguinte.

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A Nossa Vendéia - II

Euclides da Cunha

Sob este título, há tempos, ao chegar a notícia de lamentável desastre, descrevemos palidamente a região onde nesta hora, com extraordinário devotamento, batem-se as forças republicanas.

Adotemo-lo de novo.

Infelizmente prevíamos os perigos futuros e aquela aproximação histórica, então apenas esboçada, acentua-se definitivamente.

A situação não pôde, entretanto, surpreender a ninguém.

Os tropeços que se antolham às forças da República, a morosidade das operações de guerra e os combates mortíferos realizados, surgem naturalmente das próprias condições da luta, como um corolário inevitável.

O nosso otimismo impenitente, porém, que preestabelecera às marchas das colunas do general Arthur Oscar, a celeridade e o destino feliz das legiões de César, mal sofreia uma nova desilusão e caracteriza como um insucesso, como um prenúncio inequívoco de derrota, o que nada mais é do que um progredir lento para a vitória.

Esquecemo-nos de exemplos modernos eloquentíssimos. A Inglaterra enfrentando os zulus e os afegãos, a França em Madagascar e a Itália recentemente, às arrancadas com os abissínios, patenteiam-nos entretanto revezes notáveis de exércitos regulares aguerridos e bravos e subordinados a uma disciplina incoercível, ante os guerrilheiros inexpertos e atrevidos, assaltando-os em tumulto, desordenadamente e desaparecendo, intangíveis quase, num dédalo impenetrável de emboscadas.

A profunda estratégia europeia naquelas paragens desconhecidas é abalada por uma tática rudimentar pior do que a tática russa do deserto.

De fato, nada pode perturbar com maior intensidade o mais seguro plano de campanha do que esse sistema de guerra que sem exagero de frase se pode denominar – a tática da fuga – na qual, adaptadas de um modo singular ao terreno e invisíveis como misteriosas falanges de duendes, as forças antagonistas irrompem inopinadamente de todas as quebradas, surgem de modo inesperado nas anfractuosidades das serras, nas orlas ou nas clareiras das matas e, fugindo sistematicamente à batalha decisiva, diferenciam e prolongam a luta, numa sucessão ininterrupta de combates rápidos e indecisos.

A organização mais potente de um exército, que é um organismo superior com órgãos e funções perfeitamente especializadas, vai-se, assim, em sucessivas sangrias, deperecendo até a adinamia completa, ante as hostes adversárias, de uma organização rudimentar, cuja força está na própria inconsistência, cujas vantagens estão na própria inferioridade e que, desbaratados hoje, revivem amanhã, dos próprios destroços, como pólipos.

Ora, quem observa, esclarecido embora por escassas informações, a disposição topográfica desse trecho dos sertões da Bahia, para o qual se dirige agora toda a atenção do nosso país, reconhece de pronto, que ele se presta de modo notável à guerra de recursos com todo o seu cortejo de revezes.

Sem um sistema orográfico definido, na significação rigorosa do termo, a região caracteriza-se, de um modo geral, pela feição caótica e acidentada que lhe imprimiu o tumulto das águas nas épocas remotas em que a ação violenta destas, arrastando as camadas de grés que a revestiam, desnudou-a em muitos pontos, aprofundando-se em outros segundo a resistência variável das rochas até aos terrenos mais antigos.

Daí o seu aspecto bizarro e selvagem.

Em que pese à sua imobilidade aparente, a natureza, ali, nas linhas vivas dos plateaux que terminam bruscamente em paredões a prumo, separados pelos vales profundos a que ladeiam escarpas abruptas e a pique, cindida pelas quebradas ou pelos desfiladeiros que recortam as serras, aprumando-se mais longe em afloramentos imensos de gnaisses "cujas formas fantásticas recordam ruínas ciclópicas" - parece haver estereografado toda a desordem, toda a ação violenta e atumultuada dos elementos que a assaltaram.

A serra do Aracati, agremiação incoerente de serrotes, contornando as caatingas que se desdobram até o Irapiranga, na direção média de NE, inflete vivamente antes de chegar a Monte Santo, numa direção perpendicular à anterior e subdividindo-se em morros isolados, mas próximos, determina entre aquela localidade e a de Canudos a linha mais acidentada, talvez, de toda a zona.

Prolongando-se para o Norte, ao atingir o morro da Favela, eixo das operações do nosso exército, os grandes acidentes de terreno derivam para leste e depois para o norte e subsequentemente para noroeste, como que estabelecendo em torno de Canudos um círculo de cumeadas, cortado pelo Vaza-Barris em Cocorobó.

A marcha do exército republicano opera-se nesse labirinto de montanhas.

Não é difícil aquilatar-se a imensa série de obstáculos que a perturba.

Por outro lado, na quadra atual, sob o influxo das chuvas, revestem-se os amplos tabuleiros, as encostas das serras e o fundo dos vales, de uma vegetação exuberante e forte, vegetação intensamente tropical, cerrados extensos impenetráveis, em cujo seio a trama inextrincável das lianas se alia aos acúleos longos e dilacerantes dos cactos agrestes.

Vestido de couro curtido, das alparcatas sólidas ao desgracioso chapéu de abas largas e afeiçoado aos arriscados lances da vida pastoril, o jagunço traiçoeiro e ousado, rompe-os, atravessa-os, entretanto, em todos os sentidos, facilmente, zombando dos espinhos que não lhe rasgam sequer a vestimenta rústica, vingando célere como um acrobata as mais altas árvores, destramando, destro, o emaranhado dos cipoais.

Não há como persegui-lo no seio de uma natureza que o criou à sua imagem – bárbaro, impetuoso, abrupto.

Caindo inopinadamente numa emboscada, ao atravessarem uma garganta estreita ou um capão de mato, os batalhões sentem a morte rarear-lhes as fileiras e não vêem o inimigo – fulminando-os do recesso das brenhas ou abrigados pelos imensos blocos de granito que dão a certos trechos daquelas paragens uma feição pitoresca e bizarra, amontoados no alto dos cerros alcantilados, como formas evanescentes de antigas fortalezas derruídas...

Compreende-se as dificuldades da luta nesse solo impraticável quase.

A Espanha não o teve melhor para abalar o exército napoleônico que nela se exauriu depois de atravessar numa marcha triunfal quase que a Europa inteira; não o tem mais apropriado a ilha de Cuba, hoje, revivendo, um século depois, numa inversão completa de papéis, contra a Espanha, o mesmo processo de guerra perigosíssimo e formidável.

Ora, a estes obstáculos de ordem física aliam-se outros igualmente sérios.

O jagunço é uma tradução justalinear quase do iluminado da Idade Média. O mesmo desprendimento pela vida e a mesma indiferença pela morte, dão-lhe o mesmo heroísmo mórbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo.

Uma sobriedade extraordinária garante-lhe a existência no meio das maiores misérias.

Por outro lado, as próprias armas inferiores que usam, na maioria, constituem um recurso extraordinário: não lhes falta nunca a munição para os bacamartes grosseiros ou para as rudes espingardas de pederneira. A natureza que lhes alevantou trincheiras na movimentação irregular do solo – estranhos baluartes para cuja expugnação Vauban não traçou regras – fornece-lhes ainda a carga para as armas: as cavernas numerosas que se abrem nas camadas calcárias dão-lhes o salitre para a composição da pólvora e os leitos dos córregos, lastrados de grãos de quartzo duríssimos e rolados, são depósitos inexauríveis de balas.

A marcha do exército nacional, a partir de Jeremoabo e Monte Santo até Canudos, já constitui por isto um fato proeminente na nossa história militar.

É uma página vibrante de abnegação e heroísmo.

E se considerarmos que, a partir daqueles pontos, convergindo para o objetivo da campanha, as colunas, nesse investir impávido para o desconhecido, como se levassem a certeza de uma vitória infalível e pronta, não se ligaram por intermédio de pontos geográficos estratégicos à longínqua base de operações em Monte Santo, deixando, portanto, que entre elas e esta última se interpusesse extensa região crivada de inimigos, somos forçados a admitir que a arte, esta sombria arte da guerra que obedece a leis inexoráveis, foi ofuscada num admirável lance de coragem.

As suas regras, entretanto, devem prevalecer.

Um exército não pode dispensar uma linha de operações, segura e francamente praticável, ligando-o à base principal afastada, através de pontos de refúgio intermediários ou bases de operações secundárias, para as quais refluem as forças em caso de revés ou seguem facilmente os recursos que se tornam necessários.

A viagem recente de Canudos a Monte Santo das forças sob o comando do coronel Medeiros é um exemplo frisante.

Toda a campanha ficou em função daquela força expedicionária; a sorte de um exército ficou entregue a uma brigada diminuta. Entretanto, tal não sucederia se a linha de operações tivesse como pontos determinantes duas ou três posições estratégicas, onde forças em número relativamente diminuto se firmem, auxiliando eficazmente as comunicações entre a base de operações e o exército.

As forças auxiliares que partem hoje do Rio de Janeiro irão, certo, iniciar estas medidas urgentes, corrigindo uma situação anormalíssima.

Não basta garantir Monte Santo – é indispensável ligá-lo o mais estreitamente possível ao exército, cujo eixo de operações alevanta-se neste momento, em frente de Canudos.

Tomadas estas providências, a campanha que pode terminar amanhã repentinamente por um golpe de audácia, mas que pode também prolongar-se ainda, será inevitavelmente coroada de sucesso.

A morosidade das operações é inevitável, pelos motivos rapidamente expostos.

As tropas da República seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória. Fora um absurdo exigir-lhes mais presteza.

Quem, ainda hoje, observa essas monumentais estradas romanas, largas e sólidas, inacessíveis à ação do tempo, lembrando ainda a época gloriosa em que sobre elas ressoava a marcha das legiões invencíveis, irradiando pelos quatro pontos do horizonte, para a Gália, para a Ibéria, para a Germânia, compreende a tática fulminante de César...

Mas, amanhã, quando forem desbaratadas as hostes fanáticas do Conselheiro e descer a primitiva quietude sobre os sertões baianos, ninguém conseguirá perceber, talvez, através das matas impenetráveis, coleando pelo fundo dos vales, derivando pelas escarpas íngremes das serras, os trilhos, as veredas estreitas por onde passam, nesta hora, admiráveis de bravura e abnegação – os soldados da República.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 17 de julho de 1897.

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Zelo pela democracia não vacila

Por Walnice Nogueira Galvão

O desastre da 3ª. Expedição e a nova ofensiva sob responsabilidade da 4ª. Expedição, que viria a ser a última, renderiam um segundo artigo, já falando menos da natureza e mais da gente envolvida, inclusive de Antonio Conselheiro. Ardente de entusiasmo republicano, o texto dedica-se a analisar a campanha propriamente dita mais de perto, entregando-se a observações de estratégia e tática. A essa altura, passados quatro meses desde o primeiro artigo de mesmo título, a última expedição já se encontra nas imediações de Canudos. Recrutara um contingente inédito em nossa história, e tinha um caráter realmente nacional, porque as tropas constituíam uma amostragem da população brasileira do Oiapoque ao Chuí, o que aliás era enfatizado constantemente pela mídia e pelos militares.

Enredadas em dificuldades de toda sorte, desde a hostilidade do terreno até problemas primários de logística como o abastecimento, as forças não conseguiam avançar. As duas colunas em que se dividiam, uma proveniente de Aracaju e outra de Salvador, apesar de dotadas de uma superioridade bélica esmagadora, encontravam-se paralisadas nos arredores do arraial há perto de três meses. Seu comandante-em-chefe era o general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Por fim, haveria um total de cinco generais e o próprio ministro da Guerra deslocaria para lá seu gabinete.

Euclides registra várias críticas à maneira como a expedição está sendo gerenciada. E adverte para a dificuldade maior, que reside na condução de uma guerra convencional, desenvolvida por um exército organizado, contra hostes de guerrilha.

É intrigante ler o paralelo que estabelece com as invasões colonialistas das potências européias no território de outros povos, como os zulus e os afegãos - estes já então dando trabalho –, guerrilheiros desafiando o poderio da Inglaterra, à época o maior do mundo. Entre os vários exemplos que alinha, nunca lhe ocorre que esta não é propriamente uma guerra imperialista e que os canudenses também são compatriotas.

Entretanto, em seu ardor de militante, o zelo pela democracia que viera suplantar o Antigo Regime, bem como a fé que nela deposita como avanço da civilização e do progresso, não vacila um só momento.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1897. Clique para ver no acervo

Canudos
(Diário de uma Expedição)

Euclides da Cunha

Depois de quatro longos dias de verdadeira tortura subo pela última vez à tolda do vapor na entrada belíssima e arrebatadora da Bahia.

Não descreverei os incidentes da viagem, vistos todos por meio de inconcebível mal-estar, desde o momento emocionante da partida em que Bueno de Andrade e Teixeira de Sousa – um temperamento feliz, enérgico e bom, e uma alma austera de filósofo – representaram em dois abraços todos os meus amigos de São Paulo e do Rio, até o seu termo final, nas águas desta histórica paragem.

Escrevo rapidamente, direi mesmo vertiginosamente, acotovelado a todo o instante por passageiros que irradiam em todas as direções sobre o tombadilho, na azáfama ruidosa da chegada, por meio de um coro de interjeições festivas, no qual meia dúzia de línguas se amoldam ao mesmo entusiasmo. É a admiração perene e intensa pela nossa natureza olímpica e fulgurante, prefigurando na estranha majestade a grandeza da nossa nacionalidade futura.

E, realmente, o quadro é surpreendedor.

Afeito ao aspecto imponente do litoral do Sul onde as serras altíssimas e denteadas de gneiss recortam vivamente o espaço investindo de um modo soberano as alturas, é singular que o observador encontre aqui a mesma majestade e a mesma perspectiva sob aspectos mais brandos, as serras arredondando-se em linhas que recordam as voltas suavíssimas das volutas e afogando-se, perdendo-se no espaço, sem transições bruscas numa difusão longínqua de cores em que o verde-glauco das matas se esvai lentamente no azul puríssimo dos céus...

A Ilha de Itaparica, à nossa esquerda e na frente, ridente e envolta na onda iluminada e tonificadora da manhã, desdobra-se pelo seio da Bahia, revestida de vegetação opulenta e indistinta pela distância.

O mar tranquilo, como um lago, banha, à direita, o áspero promontório sobre o qual se alevanta o farol da Barra, cingindo-o de um sendal de espumas. Em frente avulta a cidade, derramando-se, compacta, sobre imensa colina, cujos pendores abruptos reveste, cobrindo a estreita cinta do litoral e desdobrando-se, imensa, do Forte da Gamboa a Itapagipe, no fundo da enseada.

Vendo-a deste ponto, com as suas casas ousadamente aprumadas, arrimando-se na montanha em certos pontos, vingando-a em outros e erguendo-se a extraordinária altura, com as suas numerosas igrejas de torres esguias e altas ou amplos e pesados zimbórios, que recordam basílicas de Bizâncio – vendo-a deste ponto, sob a irradiação claríssima do nascente que sobre ela se reflete dispersando-se em cintilações ofuscantes, tem-se a mais perfeita ilusão de vasta e opulentíssima cidade.

O Espírito Santo cinde vagarosamente as ondas e novos quadros aparecem. O Forte do Mar – velha testemunha histórica de extraordinários feitos – surge à direita, bruscamente, das águas, imponente ainda, mas inofensivo, desartilhado quase, mal recordando a quadra gloriosa em que rugiam nas suas canhoneiras, na repulsa do holandês, as longas colubrinas de bronze.

Corro os olhos pelo vapor.

Na proa os soldados que trazemos acumulam-se, saudando, entusiastas, os companheiros de São Paulo, vindos ontem, enchendo literalmente o Itupeva, já ancorado.

A um lado, alevanta-se, firmemente ligado ao reparo sólido, um sinistro companheiro de viagem – o morteiro Canet, um belo espécime da artilharia moderna. Destina-se a contraminar as minas traidoras que existem no solo de Canudos.

Embora sem a pólvora apropriada e levando apenas 69 projéteis (granadas de duplo efeito e schrapnells), o efeito dos seus tiros será eficacíssimo. Lança em alcance máximo útil 32 quilos de ferro, a seis quilômetros de distância. Acredito, entretanto, dificílimo o seu transporte pelas veredas quase impraticáveis dos sertões. São duas toneladas de aço que só atingirão as cercanias da Meca dos jagunços através de esforços inconcebíveis.

Maiores milagres, porém, têm realizado o Exército Nacional e a fé republicana.

A disposição entre os oficiais é a melhor possível.

A saudade, imensa e indefinível saudade dos entes queridos ausentes, desce, às vezes, profunda, dolorosíssima e esmagadora sobre os corações: as frontes anuviam-se; cessam bruscamente as palestras em que se procuram afugentar tristezas numa guerrilha adoidada de anedotas; um pesado silêncio paira repentinamente sobre os grupos esparsos; o coração, batendo febrilmente nos peitos, perturba o ritmo isócrono da vida – e os olhares, velados de lágrimas, dirigem-se ansiosamente para o Sul... Ao mesmo tempo, porém, como um antídoto enérgico, um reagente infalível, alevanta-se, ao Norte, o nosso grande ideal – a República – profundamente consolador e forte, amparando vigorosamente os que cedem às mágoas, impelindo-os à linha reta nobilitadora do dever.

E reagem.

Eu nunca pensei que esta noção abstrata da Pátria fosse tão ampla que, traduzindo em síntese admirável todas as nossas afeições, pudesse animar e consolar tanto aos que se afastam dos lares tranquilos demandando a agitação das lutas e dos perigos. Compreendo-o, agora. Em breve pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o último embate aos que a perturbam. Além, para as bandas do ocidente, em contraste com o dia brilhante que nos rodeia, erguem-se, agora, por uma coincidência bizarra, cúmulos pesados, como que traduzindo fisicamente uma situação social tempestuosa. Surgem, erguem-se, precisamente neste momento, do lado do sertão, pesados, lúgubres, ameaçadores...

Este fato ocasional e sugestivo prende a atenção de todos. E observando, como toda a gente, as grandes nuvens silenciosas que se desenrolam longínquas, os que se destinam àquelas paragens perigosas sentem com maior vigor o peso da saudade e com maior vigor a imposição austera do dever.

Nem uma fronte se perturba, porém.

Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além como a sombra de uma emboscada entre os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta. Rompê-lo-á, breve, a fulguração da metralha, de envolta num cintilar vivíssimo de espadas...

A República é imortal!

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 23 de agosto de 1897.

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No front, um correspondente engajado

Por Walnice Nogueira Galvão

Após ter publicado dois artigos sob o título de “A nossa Vendéia”, Euclides tornou-se candidato natural ao posto de enviado especial desta folha à guerra de Canudos. Graças a um telegrama de Júlio Mesquita ao presidente da República, Prudente de Morais, duplicaria suas credenciais como adido ao estado-maior do ministro da Guerra, marechal Machado Bittencourt, que viajava de navio para montar seu gabinete em Monte Santo, na região conflagrada. Embora tenente reformado do exército, Euclides segue junto, como membro da 4ª. Expedição; e um membro tardio, com as tropas já engajadas no assédio ao arraial.

Essa guerra foi a primeira em nosso país a ganhar uma tão vasta cobertura jornalística, novidade que fora inaugurada recentemente. Todos os maiores jornais do país trataram de dispor de enviados especiais ao palco dos acontecimentos. Quase todos os repórteres eram militares e alguns até combatentes. Como se verá, a imparcialidade que pretende ser apanágio da profissão já estava comprometida de saída.

Euclides não contém o entusiasmo ante a missão heróica em que está empenhado. Na tropa que lota o convés do navio, realça o sentimento de patriotismo. Em termos arrebatados, fala do dever coletivo que é defender a República a qualquer custo, estando, a exemplo de toda a opinião pública, convicto de que Canudos é o foco de um complô monarquista de intuito restaurador. Termina a correspondência com um voto de confiança na vitória da ofensiva progressista sobre as forças do atraso. De modo similar, encerrará os telegramas com a exclamação “Viva a República!”

Nesta correspondência, escrita no próprio dia do desembarque, não aflora a intenção de escrever um livro sobre a guerra, que levaria o título provisório de A nossa Vendéia. Mas contrasta com as declarações de Euclides aos jornais de Salvador, mostrando que abrigava esse projeto antes mesmo de chegar ao destino. Demora-se na descrição parnasiana da paisagem marinha e urbana do Recôncavo, com a silhueta da cidade do Salvador ao fundo. E opera a leitura alegórica das nuvens escuras que se acumulam no rumo de Canudos, anunciando o embate entre as trevas do atraso e a luz do progresso.

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Canudos
Um Episódio da Luta

Euclides da Cunha

Em dias de junho último um dos filhos de Macambira, adolescente de 15 anos, abeirou-se do rude chefe sertanejo:

- Pai, quero destruir a matadeira. (Sob tal denominação indicam os jagunços o canhão Krupp, 32, que tem feito entre eles estragos consideráveis.)

O sinistro cabecilha, espécie grosseira de Imanus acobreado e bronco, fitou-o impassível:

- Consulta o Conselheiro - e vai.

E o rapaz seguiu acompanhado de onze companheiros atrevidos.

Atravessaram o Vaza-Barris seco e fracionado em cacimbas, investiram contra a primeira encosta à margem direita, embrenharam-se, num deslizar macio e silencioso de cobras, pelas caatingas próximas.

Ia em meio o dia.

O sol, num firmamento sem nuvens, dardejava a pino sobre os largos tabuleiros, lançando, sem fazer sombra, até ao fundo das quebradas mais fundas, os raios verticais ardentes.

Naquelas paragens longínquas e ingratas, o meio-dia é mais silencioso e lúgubre do que as mais tardias horas da noite. Reverberando nas rochas expostas, largamente refletidos nas chapadas desnudadas, sem vegetação, ou absorvidos por um solo seco e áspero de gres, os raios solares aumentam de ardor; e o calor emitido para a terra reflui para o espaço nas colunas ascendentes do ar dilatado, morno, irrespirável quase.

A natureza queda-se silenciosa num aniquilamento absoluto; não sulca a viração mais leve os ares, cuja transparência perto do solo se perturba em ondulações rápidas, candentes; repousa dormitando a fauna resistente das caatingas; murcham as folhas, exsicadas, nas árvores crestadas.

O Exército repousava esmagado pela canícula.

Deitados e esparsos pelas encostas, bonés postos aos rostos para resguardá-los, dormitando, ou pensando nos lares distantes, os soldados aproveitavam alguns momentos de tréguas, restabelecendo forças para a afanosa lide.

Em frente, enorme, derramada sem ordem sobre a larga encosta em que se erige, com as suas exíguas habitações desordenadamente espalhadas, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casas, aparecia Canudos, deserta e muda, como uma tapera imensa, abandonada.

Circunvalando-a, em parte, como um fosso irregular e fundo, o Vaza-Barris prolonga-se à direita, sinuoso, desaparecendo, longe, entre as gargantas abruptas de Cocorobó. No fundo, fechando o horizonte, desdobra-se a lombada extensa da serra da Canabrava...

O Exército repousava... Nisto despontam, emergindo cautos, à borda do mato rasteiro e trançado de árvores baixas e esgalhadas, na clareira em que estaciona a artilharia, 12 rostos espantados – olhares rápidos perscrutando todos os pontos –, 12 rostos apenas de homens ainda mergulhados, de rastos, no seio trançado das macambiras.

E surgem lentamente; ninguém os vê; ninguém os pode ver; – dá-lhes as costas, numa indiferença soberana, o Exército que repousa.

Em frente, a 50 metros apenas, eles divisam o objetivo da empresa.

Como um animal fantástico e monstruoso, o canhão Krupp, a matadeira, assoma sobre o reparo resistente, voltada para Belo Monte a boca truculenta e flamívoma – ali – sobre a cidade sagrada, sobre as igrejas, prestes a rugir golfando as granadas formidáveis – silenciosa agora, isolada e imóvel – brilhante o dorso luzidio e escuro, onde os raios do sol caem, refletem, dispersam-se em cintilações ofuscantes.

Os fanáticos audazes aprumam-se à borda da clareira e arrojam-se impávidos sobre a peça odiada.

Vingam a distância de um salto e circundam o monstro de aço, silenciosos, terríveis – resfolegando surdamente.

Um dos mais robustos traz uma alavanca pesada; ergue-a e a pancada desce violentamente, retinindo.

E um brado de alarme altíssimo e viril, partindo bruscamente o silêncio universal das coisas, multiplicando-se nas quebradas, enchendo o espaço todo, desdobrado em ecos que ascendem de todos os vales, refluem rápidos nas montanhas, um brado de alarme alteia-se, numa vibração triunfal, estrugidor e imenso.

Formam-se rapidamente os batalhões; num momento os atacantes ousados veem-se, presos, num círculo intransponível de baionetas e caem sob os golpes e sob as balas.

Um apenas se salva, golpeado, baleado, saltando, correndo, rolando, intangível entre os soldados, atravessando uma rede de balas, vingando as pontas das baionetas, caindo em cheio nas caatingas que atravessa velozmente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores aprumados da montanha...

Estas e outras histórias, contam-nas, aqui, os soldados, colaboradores inconscientes das lendas que envolverão mais tarde esta campanha crudelíssima.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 26 de agosto de 1897.

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Relatos mostram reflexões e dúvidas

Por Walnice Nogueira Galvão

Enquanto aguardava ordens para seguir para o sertão, acompanhando o ministro da Guerra, Euclides preenchia de várias maneiras sua estada em Salvador. Comparecia à redação dos jornais para apresentar suas credenciais, costume da época que se perdeu. Visitava os feridos, evacuados do fronte, nos hospitais da cidade. Assistia ao desembarque das tropas veteranas que regressavam do interior, na estação da estrada-de-ferro. Vasculhava arquivos e bibliotecas para encontrar materiais que alicerçassem suas pesquisas. Até encontrou tempo para tratar de assuntos literários, visitando o poeta baiano de pseudônimo francês Pethion de Villar e com ele trocando escritos. Indagou dos mais versados suas impressões da contenda. Testemunhou depoimentos de prisioneiros. Enquanto isso, mal suportava a injustificada demora em Salvador, quando ansiava por chegar logo ao teatro da luta. E se desculpa por ficar disfarçando a falta de assunto.

A missão principal do ministro era organizar o abastecimento, anteriormente tão mal feito que os soldados em Canudos chegaram a passar fome. Por isso demorava-se em Salvador. Mais tarde, Euclides zombaria do caso e diria que a vitória dependera mais dos burros que dos homens, esses burros que arrastavam as carroças com mantimentos.

O estado-maior do marechal permaneceria na capital por três semanas, aumentando a impaciência de Euclides. Só então tomaria o trem que o deixaria mais perto de Canudos. A partir daí vai descrevendo a viagem e o percurso, datando correspondências de Alagoinhas e Queimadas. Neste último povoado apeou do trem, para seguir a cavalo via Tanquinho, Cansanção e Quirinquinquá até Monte Santo, onde o ministro instalaria seu gabinete.

Ainda de Salvador, envia este texto, que evidencia precocemente seus poderes literários de evocação dramática de situações: não viu a cena, ouviu-a descrita, mas recriou-a como se a tivesse presenciado. Ela irá com poucos retoques para as páginas de Os sertões, e tem a honra de ser um de seus episódios mais marcantes. O escritor começa a duvidar daquilo que os políticos, os generais e os jornais apregoavam: podemos acompanhar a evolução de suas reflexões através destas reportagens.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1897. Clique para ver no acervo

Canudos

Euclides da Cunha

Finalmente chegamos, às nove horas da manhã, à nossa base de operações, depois de duas horas de marcha.

Ninguém pode imaginar o que é Monte Santo a três quilômetros de distância. Ereta num ligeiro socalco, ao pé da majestosa montanha, a povoação, poucos metros a cavaleiro sobre os tabuleiros extensos que se estendem ao norte, está numa situação admirável. Não conheço nenhuma de aspecto mais pitoresco que o deste arraial humilde, perdido no seio dos sertões. O viajante exausto, esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo imenso ao avistá-lo, depois de galgar a última ondulação do solo, com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até à planície vastíssima.

Na montanha, a um lado, ressalta logo à vista um quadro interessante e novo.

Galgando-a, primeiro numa direção, depois noutra, em zigue-zague, até vingar a encosta e subindo depois pelo espigão afora até a ponta culminante da serra, aprumam-se vinte e quatro capelas, alvíssimas, destacando-se nitidamente num fundo pardo e requeimado de terreno áspero e estéril.

Não me demorarei, porém, neste assunto, do qual tratarei com mais vagar.

Quando entramos, formavam na praça 1.900 homens sob o comando do coronel César Sampaio. À frente dos batalhões paraenses avultava o coronel Sotero de Menezes – um chefe e um soldado como há poucos. Divisei logo, à frente do Batalhão do Amazonas, um digno companheiro dos velhos tempos entusiastas da propaganda, Cândido Mariano, contemporâneo de escola.

Houve um entusiasmo sincero e ruidoso quando, num movimento único, as 1.900 baionetas, num cintilar vivíssimo, desceram rápidas dos ombros dos soldados, aprumando-se na continência aos generais – numa ondulação luminosa, imensa.

Atravessamos, a galope, pela frente das tropas e paramos afinal diante do único sobrado, nobilitado com o título pomposo de quartel-general.

Apeei-me imediatamente e achei-me entre antigos companheiros, de há muito ausentes. Que diferença extraordinária em todos!

Domingos Leite, um belo tipo de flâneur, folgazão nos bons tempos da escola, um devoto elegante da Rua do Ouvidor, abraçou-me e não o conheci. Vi um homem estranho, de barba inculta e crescida, rosto pálido e tostado, voz áspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapéu desabado. Está aqui desde a Expedição Moreira César, na faina perigosa e tremenda da engenharia militar, a traçar estradas no deserto, correndo linhas telegráficas, dirigindo comboios por veredas difíceis, nas quais o bacharel em matemática teve muitas vezes de empunhar o ferrão e transformar-se em carreiro.

Abracei comovido o antigo colega em quem as fadigas não destruíram a jovialidade antiga.

Como se muda nestas paragens!

Gustavo Guabiru, outro engenheiro militar, foi uma vez encontrado por um contingente da força policial da Bahia em tal estado que foi preso como jagunço E não teve meios de convencer aos soldados do engano em que haviam caído.

Encontrei, perto de Quirinquinquá, na estrada, quando vínhamos, Coriolano de Carvalho, ex-governador do Piauí, e correspondi-lhe ao cumprimento sem o conhecer absolutamente na ocasião.

O capitão Souza Franco, um dos nossos melhores oficiais de cavalaria, transmudou-se num velho inútil e combalido.

Parece que esta natureza selvagem vai em todos imprimindo uma feição diversa.

O major Martiniano, comandante da praça, um tipo desempenado de soldado que sempre vi, desde os tempos acadêmicos, no Rio, de boné atrevidamente inclinado “a três pancadas”, substituiu o antigo cavanhaque negro por uma barba branca. Está velho; está aqui há poucos meses.

A cor muda revestindo-se de tons ásperos de bronze velho; como que mirram as carnes e os ossos incham; rapazes elegantes transformam-se rapidamente em atletas desengonçados e rígidos...

Quase que se vai tornando indispensável a criação de um verbo para caracterizar o fenômeno. O verbo “ajagunçar-se”, por exemplo. Há transformações completas e rápidas.

O representante da Notícia, Alfredo Silva, assombrou-me: está num descambar irresistível para o tipo geral predominante – barba crescida, chapelão de palha, paletó de brim de cor inclassificável, bombachas monstruosas.

E cada um anda por aqui perfeitamente à vontade. Monte Santo é como uma única casa, imensa e mal dividida, com inúmeros cubículos, de uma só família de soldados.

Nada ainda poderei adiantar sobre a situação.

As informações que hoje obtive são pouco animadoras. Falo baseado no critério seguro de colegas que lá estão há meses, que de lá voltaram ontem, e que pela educação que possuem podem ajuizar com firmeza sobre os acontecimentos que presenciaram.

Imaginem que, enquanto o Exército lhes ocupa grande parte de casas e os fulmina cotidianamente, num bombardeio incessante, os fanáticos distribuem de um modo notável a atividade, revezando-se, da linha de fogo para o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho!

Fazem roças que devem ser colhidas no ano vindouro!

Ora, esse assédio platônico que fazemos parece que não perderá tal feição ainda quando cheguem a Canudos todas as forças com um efetivo de pouco mais de 8 mil homens. Os meus colegas que ali andam, há meses, de bússola e aneróide em punho, garantem-me que o cerco regular exige um mínimo de 25 mil homens. Porque o jagunço não tem apenas três ou quatro estradas para o acesso ao povoado, tem um número incalculável delas – qualquer ponto por mais escabroso é-lhe francamente praticável.

Resta o recurso de um assalto impetuoso, rápido e firmemente sustentado; não há outro.

O ataque será fatalmente mortífero. Basta examinar-se uma planta do imenso arraial. Canudos está militarmente construído e uma estampa que por aí anda nada traduz, absolutamente, da sua feição característica.

As casas, aparentemente em desordem, dispõem-se umas relativamente às outras, de modo tal que de qualquer das quatro esquinas de qualquer delas, o inimigo, sem mudar de lugar, rodando apenas sobre os calcanhares, atira para os quatro pontos do horizonte. É o que me afirmou um homem inteligente e engenheiro distinto – o coronel Campelo França.

E se aliarmos a essa disposição, adrede preparada, a conformação bizarra do solo, definida por ondulações ligeiras e numerosas, cruzando-se em todos os sentidos, compreenderemos bem todas as dificuldades do combate.

É absolutamente necessário, entretanto, que ele se realize, quanto antes. Eu estou firmemente convencido que as nossas tropas não podem permanecer por dois meses no máximo, nestas paragens ingratas, apesar do estoicismo e abnegação revelados pelos seus chefes.

As dificuldades de transportes de munições de guerra e de boca podem, em parte, ser debeladas. Há tropeços, porém, irremediáveis, absolutamente insanáveis, e entre estes, espantalho que aterra a todos que vêm ou seguem para Canudos, a sede; sede devoradora e inextinguível que tem torturado a todos os combatentes.

Os pequenos pântanos, que ainda existem nas estradas, além de quase exauridos têm no seio toda sorte de germes de infecção. Num deles, um dos melhores, perto de Juetê, contam companheiros recém-vindos que viram, estendido horizontalmente na borda, a boca mergulhada na água esverdeada, o cadáver de um varioloso que até ali se arrastara, impelido pela sede ardente da febre e morrera.

Outros guardam no fundo, traiçoeiramente ocultos pela perfídia assombrosa do jagunço, cadáveres de homens e cavalos, numa decomposição lenta e nefasta.

Se as chuvas sobrevierem, desaparecerão estes inconvenientes, mas surgirão outros.

Imaginemos um só.

O Vaza-Barris, avolumando-se desmedidamente, cortará de todo as comunicações entre o Exército sitiante e a base de operações. Só por um milagre da engenharia, num lugar em que escasseiam materiais e pessoal adestrado, podem ser elas restabelecidas por uma ponte que deve ser feita no prazo mínimo de oito dias, com todas as condições de resistência definida pela carga perigosa da tropa em marcha, sob as balas certeiras e constantes dos fanáticos!

Não exagero perigos; mas o otimismo seria um crime nesta quadra. Além disto a maioria republicana da nossa terra precisa conhecer toda a verdade desta situação dolorosa, pela voz ao menos sincera dos que aqui estão prontos para compartirem do sacrifício nobilitador pela República.

Não sabemos ainda se o marechal Bittencourt irá até Canudos; se esta resolução for tomada revestirei a minha incapacidade física com a minha capacidade moral e não abandonarei os dedicados companheiros.

Amanhã continuarei estas notas que, com certeza, aí vão chegar com grandes intervalos, porque o serviço de correios aqui é péssimo e moroso.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 6 de setembro de 1897.

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A chegada ao perímetro de hostilidades

Por Walnice Nogueira Galvão

A etapa preliminar da viagem foi vencida e eis Euclides penetrando no perímetro das hostilidades. O alívio daquele que permanecera a contragosto três semanas em Salvador é palpável. É na pequena cidade de Monte Santo, não atingida diretamente pela conflagração, que o ministro da Guerra, marechal Machado Bittencourt, planejara desde o início implantar sua base de operações. Ali funcionará seu quartel-general.

Em Monte Santo encontra-se o majestoso calvário de 3 km de extensão, com suas 24 capelinhas caiadas ladeira acima até a igreja do Nossa Senhora das Dores, erigido pela piedade da gente do sertão sob a liderança do capuchinho Frei Apolônio de Todi, em 1775. Antonio Conselheiro o galgara, Euclides da Cunha seguirá seus passos. Mais tarde Glauber Rocha ali filmaria um episódio de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que vemos os romeiros subindo de joelhos a escadaria, curvados ao peso das pedras que carregam na cabeça. Embora não corroborada, reza a tradição que o Conselheiro, entre suas numerosas obras, reforçara o muro de arrimo da via sacra.

A jornada seria longa. Após tomar o trem na estação da Calçada, em Salvador, a 30 de agosto, juntamente com a comitiva do ministro, de que era membro, Euclides enviara correspondências datadas de Alagoinhas (31 de agosto) e Queimadas (1º, 2, 3 e 4 de setembro). Neste último povoado apeou do trem, que prosseguia para oeste quando agora seu rumo era o norte, e cavalgou até Tanquinho (4 de setembro), Cansanção (5 de setembro) e Quirinquinquá (ainda no mesmo 5 de setembro). No dia seguinte chegaria a Monte Santo. Levaria ainda dez dias para finalmente pisar em Canudos.

Esta correspondência fala dos arredores e das características que o sertão ali assume. Detém-se mais nos prognósticos da campanha, alvitrando que uma tropa com efetivo bem maior viria a calhar. Dedica-se a sondar o que sabem os militares, e particularmente seus colegas engenheiros, cujas impressões e dúvidas compartilha.

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Monte Santo

Euclides da Cunha

O Coronel Carlos Teles trouxe de Canudos um jagunço adolescente.

Chama-se Agostinho - 14 anos, cor exatíssima de bronze; fragílimo e ágil; olhos pardos, sem brilho; cabeça chata e fronte deprimida; lábios finos, incolores, entreabertos num leve sorriso perene, deixando perceber os dentes pequeninos e alvos.

Responde com vivacidade e segurança a todas as perguntas.

Descreveu nitidamente as figuras preponderantes que rodeiam o Conselheiro e, tanto quanto o pode perceber a sua inteligência infantil, a vida em Canudos.

O braço direito do rude evangelista – já o sabíamos – é João Abade, mameluco quase negro – impetuoso, bravo e forte –, de voz retumbante e imperativa; bem vestido sempre. Comandou os fanáticos no combate de Uauá. É o executor supremo das ordens do chefe. Castiga a palmatoadas na praça, em frente às igrejas, aos que roubam ou vergasta as mulheres que procedem mal. Exerce estranho domínio sobre toda a população.

Substituía-o, em certas ocasiões, Pajeú, hoje morto, caboclo alto e reforçado, figura desempenada de atleta, incansável e sem par no vencer rapidamente as maiores distâncias, transmitindo ordens, aparecendo em todos os pontos, violento e terrível na batalha, tendo na mão direita a espingarda contra o soldado e na esquerda longo cacete para estimular vigorosamente os jagunços vacilantes na refrega. Bulhento, tempestuoso, mas de costumes simples, sem ambições.

Vilanova, comerciante, dono das melhores casas de negócio que constituíam o comércio, riquíssimo e procurando agora uma função predominante.

Pedrão, mestiço de porte gigantesco; atrevido e forte. Comandou os fanáticos na travessia admirável de Cocorobó.

Macambira, velho rebarbativo e feio; inteligentíssimo e ardiloso. Com surpresa ouvi: Macambira é de uma cobardia imensa; as próprias mulheres não o temem. Ninguém, porém, prepara melhor uma cilada; é o espírito infernal da guerra, sempre fértil no imaginar emboscadas súbitas, inesperadas.

O filho Joaquim Macambira era, pelo contrário, valente; morreu tentando, em assalto audacioso, inutilizar, acompanhado apenas de onze companheiros, o canhão Krupp-32.

Manuel Quadrado, homem tranquilo e inofensivo; curandeiro experimentado, debelando as moléstias mercê de uma farmacopéia rudimentar; conhecedor de todas as folhas e raízes benéficas, vivendo isolado num investigar perene, pelas drogarias inexauríveis e primitivas das matas.

José Félix, o Taramela, é o guarda do santuário e das igrejas; é quem abre as portas à passagem solene do Conselheiro ou introduz os que o procuram – o apelido sobreveio-lhe desta última função. Tem sob as suas ordens oito beatas, moças acabocladas, servas submissas do evangelizador, servindo-lhe em pires exíguos a refeição frugal, trazendo-lhe o banho diário, cuidando-lhe da roupa, acendendo cotidianamente no vasto alpendre das orações, as fogueiras que iluminam a multidão genuflexa, rezando o terço. Vestem roupas azuis, cingidas as cinturas por cordas de linho alvíssimo; não variam nunca este uniforme consagrado.

Quanto a Antônio Conselheiro, ao invés da sordidez imaginada, dá o exemplo de notável asseio nas vestes e no corpo. Ao invés de um rosto esquálido, agravado no aspecto repugnante por uma cabeleira mal tratada onde fervilham vermes, emolduram-lhe a face magra e macerada, longa barba branca, longos cabelos caídos sobre os ombros, corredios e cuidados.

Raro abandona o santuário; não faz visitas. Todos, inclusive o João Abade, de aspecto minaz, dirigem-se a ele, descobertos, olhos fixos no chão. Nas raras excursões que faz, envolto na túnica azul inseparável, cobre-se de amplo chapéu de abas largas e caídas, de fitas pretas.

O seu domínio é de fato absoluto; não penetra em Canudos um só viajante sem que ele o saiba e permita. As ordens dadas são cumpridas religiosamente. Algumas são crudelíssimas e patenteiam a feição bárbara do maníaco construtor de cemitérios e igrejas.

Depois do combate de Uaná, heroicamente sustentado pela primeira expedição do Tenente Pires Ferreira, propalou-se no arraial que um dos seus habitantes, um certo Mota, havia prevenido a força expedicionária do grande número de inimigos que a aguardavam mais adiante e que a dizimariam fatalmente. O Conselheiro murmurou uma ordem a Pajeú: no outro dia o traidor e toda a família eram mortos.

Tendo sucumbido muitos jagunços naquele combate, algumas viúvas esqueceram-se, cedo, escandalosamente, dos esposos mortos: amarradas firmemente em postes no largo, em frente a toda a população convocada, foram rudemente vergastadas por João Abade e, depois, expulsas do arraial.

É absolutamente interdito o uso da aguardente, a caninha, sócia amiga das horas desocupadas do sertanejo do Sul. Uma vez apareceu, inesperada, em Canudos, uma tropa pequena – seis cargueiros carregados de aguardente.

O tropeiro audaz, que ideava talvez altos lucros levando-a àquele recanto longínquo, teve, porém, a mais dolorosa decepção: os doze barris foram esvaziados na praça pública, derramando-se pelo solo o liquido condenado.

Por outro lado, uma tolerância inexplicável. Afirma o pequeno jagunço que o velho vigário de Cumbe, ali aparecia, de quinze em quinze dias dizendo missa nas igrejas diante do próprio Conselheiro que lhe permitia casar e batizar, obstando apenas os sermões.

Indaguei sobre a natureza dos trabalhos agrícolas – rudimentares, quase nulos. O trabalho sob a sua forma mais generalizada consiste em ganhar em Monte Santo, Jeremoabo e outras povoações circunjacentes. A criação mais numerosa é a de bodes, em número quase incalculável, enchendo, em torno, os planios dilatados das chapadas, quase sem donos, sem trato, ariscos, retrogradando pelo abandono ao estado selvagem primitivo.

Depois destas informações interroguei-o sobre questões mais sérias:

– De onde provém todo o armamento dos jagunços?

A resposta foi pronta. Antes da primeira expedição consistia em espingardas comuns, bacamartes e bestas, destinadas, estas últimas, em cujo meneio são incomparáveis, não perdendo uma seta, à caçada dos mocós velozes e esquivos. Seis ou sete espingardas mais pesadas, de bala – carabinas Comblain, talvez. Depois do encontro de Uaná e das expedições que o sucederam, é que apareceram novas armas, em grande número, no arraial.

Os canhões deixados pela coluna Moreira César, cujo manejo não puderam compreender, foram, depois de inutilizados a golpes de alavanca e malhos, atirados num esbarrondadeiro próximo.

Terminamos o longo interrogatório inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres. E, ao replicar um dos circunstantes que aquele declarava que o jagunço morto em combate ressuscitaria, negou ainda.

– Mas o que promete afinal ele aos que morrem?

A resposta foi absolutamente inesperada:

– Salvar a alma.

Estas revelações feitas diante de muitas testemunhas têm para mim um valor inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela cidade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 19 de setembro de 1897.

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Um incipiente “catálogo de heróis”

Por Walnice Nogueira Galvão

O repórter mal sofreia a impaciência ante a demora em seguir para Canudos, enquanto perde tempo em Salvador aguardando as ordens do ministro da Guerra, que tardam. Mostra-se cada vez mais interessado não tanto pela guerra quanto pelas pessoas que compõem as hostes inimigas.

Nesse sentido, entrega-se a duas tarefas. A primeira consta de elaborar um tosco e incipiente “catálogo dos heróis”, à maneira de Homero, e que depois, devidamente enriquecido, será uma parte inesquecível de Os sertões. Com isso, a silhueta dos adversários vai emergindo das trevas geradas pela propaganda negativa e eles começam a adquirir face humana. A segunda é o registro do interrogatório de um garoto guerrilheiro, que desmente as concepções correntes segundo as quais os canudenses acreditavam numa promessa atribuída ao Conselheiro: a de que os fiéis tombados em batalha seriam objeto de ressurreição.

Nada disso surge no interrogatório, muito pelo contrário, exibe-se ali a firmeza nas crenças religiosas e o fito de salvar a alma, respeitando a melhor tradição cristã. Tudo isso vai adensando a possibilidade de que os canudenses não sejam propriamente, como então eram chamados, “jagunços” e “fanáticos”, mas antes, como os denominaríamos hoje, freedom fighters.

As perguntas a respeito de Antonio Conselheiro deixam transparecer os preconceitos que as fundamentam. Ao afirmar que, ao invés de ser sujo e esquálido, ele era bem tratado e de aspecto respeitável, Euclides mostra como ele mesmo alimentara uma imagem pejorativa.

A notar, ainda, a insistência de Euclides em sondar elementos básicos que dizem respeito às refregas. Por exemplo, e nada desprezível, a natureza do equipamento bélico dos conselheiristas. A opinião corrente, verdadeiro fruto de lavagem cerebral, rezava que eles disporiam de armamento de última geração, juntamente com treinadores estrangeiros. Mais uma vez desmentindo-a, o menino responde que só vieram a municiar-se e aparelhar-se com aquilo que tomaram às expedições anteriores, e sobretudo com os despojos que a 3ª, ao bater em retirada, lançara pela caatinga afora.

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Canudos
(Diário de uma Expedição)

Euclides da Cunha

Monte Santo, 8 de setembro.

Quem sobe a longa via-sacra de três quilômetros de comprimento, ladeada de capelas desde a base até ao cimo, do Monte Santo, compreende bem a tenacidade incoercível do sertanejo fanatizado. É dificilmente concebível o esforço despendido para o levantamento dessa maravilha dos sertões.

Amparada aos dois lados por muros de alvenaria, capeados, de um metro de altura por um de largura, calçada em certos trechos, tendo noutros como leito a rocha viva, essa estrada notável, onde têm ressoado as ladainhas das grandes procissões da Quaresma e passado legiões incalculáveis de penitentes - é um milagre de engenharia rude e audaciosa.

Percorri-a toda, hoje.

Começa investindo francamente contra a montanha, seguindo a normal de máximo declive, com uma rampa de cerca de 20 graus; na quinta capela inflete à esquerda e progride com uma inclinação menor; volta depois, mais adiante, bruscamente para a direita, numa diminuição contínua de declive até ao seio mais baixo, espécie de ligeira garganta do espigão. Segue por este horizontalmente por cerca de duzentos metros até aprumar-se de novo - investindo afinal contra a última subida íngreme e dilatada até à Santa Cruz, no alto.

Uma coisa assombrosa. Tem 3 mil metros aproximadamente e, em certos segmentos, foi rasgada através da rocha duríssima e áspera - porque toda a serra de Monte Santo é constituída de um quartzito que irrompe através das formações graníticas, visíveis nos terrenos planos que a circundam. A serra tem uma feição altamente pitoresca, aprumada sobre a povoação - escalvada em muitos pontos, revestida noutros de uma vegetação enfezada.

Com o extraordinário luar destas últimas noites, o seu aspecto é verdadeiramente fantástico; destacam-se nitidamente as capelinhas brancas e à luz reflexa e dúbia da lua as vertentes, que se interrompem em paredões a prumo em virtude da própria estratificação da rocha, dão a ideia de muralhas imensas, sine calcus linimenti, recordando velhas trincheiras abandonadas de titãs.

Do alto descortina-se um horizonte de vinte léguas; toda a região como uma costa em relevo estende-se ante o olhar do observador, patenteando perspectivas belíssimas. Aproveitando convenientemente aquela altura aliada a mais dois ou três dos acidentes de terreno que apontam ao norte, poder-se-ia, de há muito, ter estabelecido um telégrafo óptico, de transmissão pronta, por meio de um jogo combinado de cores, com Canudos.

Infelizmente esta medida não foi tomada.

Monte Santo, 9 e 10 de setembro

Nada ainda de novo sobre a luta.

Partiu ontem mais um comboio que deve ser escoltado pelo 33º Batalhão de Jueté para cima, ao entrar na zona perigosa. Não partiu ainda o general Carlos Eugênio e é possível que se prolongue a sua demora.

A nossa situação, os destinos da guerra estão, agora, em função de mil e não sei quantos burros indispensáveis para o transporte de munições.

Esta circunstância bizarra caracteriza as condições especiais da campanha. Ainda quando houvéssemos aqui, em Monte Santo, cem mil homens, não melhoraríamos de sorte. Pode-se mesmo dizer pioraríamos consideravelmente. Não nos faltam homens que se disponham a morrer pela República varados pelas balas.

A República é que não lhes pode exigir o sacrifício da morte pela fome.

Todas estas dificuldades promanam em grande parte da base de operações adotada, encravada no deserto e já de si mesma de acesso penoso.

Os comboios que seguem são o pão de cada dia das nossas forças e são insuficientes. Os 2 mil homens prontos a partir, por uma inversão notável imposta pelos acontecimentos, ao invés de auxiliares serão concorrentes prejudiciais num combate surdo com a penúria.

Esse é o aspecto horroroso e dificilmente atenuado da luta. É por isto que entendo oportuna agora uma tática mais vertiginosa que a de César, chegar, lutar, vencer, voltar...

Nas longas investigações diariamente feitas pelos arredores, tenho estudado, com dificuldades embora, essa região ingrata que é idêntica, com ligeiras variantes, à que circunda o arraial conselheirista. É uma das partes mais modernas talvez do nosso continente e surgiu das águas provavelmente depois da lenta ascensão da cordilheira dos Andes, como um fenômeno complementar.

A falta de matas, de vegetação opulenta, além das causas que resultam da natureza geognóstica do solo e dos agentes meteorológicos, tem como motivo preponderante essa idade recente.

O líquen ainda está decompondo a rocha; a natureza inteira ainda se prepara para a organização superior da vida.

Tudo indica (e fora longo enumerar as razões em que me baseio) o fundo, descoberto por uma lenta sublevação, de um mar geologicamente moderno, terciário talvez, em cuja amplidão a ponta culminante de Monte Santo despontava como um cachopo de quartzito. E.C.

Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico. Foram preservadas, no entanto, a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo

Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 27 de setembro de 1897.

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Extraordinária capacidade de evocação visual

Por Walnice Nogueira Galvão

Euclides não resistiu ao impulso de galgar a escadaria de 3 km de extensão e 500 m de altura que constitui a via sacra de Monte Santo, essa 'maravilha dos sertões' em suas palavras. Após fornecer o histórico do local e um quadro minucioso, não resistiria tampouco a dar palpite na campanha, sugerindo que, para aproveitar a altura inédita da montanha, deveriam ter instalado um telégrafo ótico, que trocaria mensagens luminosas com Canudos. A descrição da via sacra é belíssima, exemplo da capacidade extraordinária de evocação visual do escritor.

Boa parte desta série dedica-se a criticar a estratégia do exército. A questão crucial continua sendo o abastecimento, tão mal feito que a tropa passa fome, devido à inépcia dos comandantes. Alude aqui aos mil burros destinados ao transporte da munição de guerra e de boca, que seriam a esta altura mais decisivos para a vitória do que um aumento do contingente de soldados. Outro ponto problemático é a excessiva distância, cerca de 100 km, entre Canudos e o quartel-general em Monte Santo. Estas críticas vêm e vão em sua pena, atravessando toda a série, e concluindo que uma campanha tão mal conduzida só poderia vencer pela rapidez fulminante.

Vemos nosso repórter utilizando o que aprendera na Escola Militar, ao debruçar-se sobre a geologia da região. O aspecto singular e até estranho do sertão, radicalmente diferente do que ele, homem do centro-sul, conhecera até então, instiga-o a pesquisar sua razão de ser. Inferindo a formação geológica a partir das aparências, vê no terreno uma prova de modernidade, quando, depois de ter sido fundo de mar, sofreu o esgotamento da água devido ao soerguimento dos Andes. Essa hipótese é, a seu ver, confirmada pela pobreza vegetal da caatinga e pela presença do líquen. Embora arrojada, a hipótese dá ensejo a um dos exercícios prediletos deste visionário, que é neste caso a recomposição da formação geológica vista como processo histórico.

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Canudos
(Diário de uma Expedição)

Euclides da Cunha

Não há manhãs que se comparem às de Canudos; nem as manhãs sul-mineiras, nem as manhãs douradas do planalto central de São Paulo se equiparam às que aqui se expandem num firmamento puríssimo, com irradiações fantásticas de apoteose. Douram-se primeiro as cristas altas de Cocorobó, Paço de Cima e Canabrava e a onda luminosa do dia sulca-lhes, lentamente ascendendo, os flancos abruptos e ásperos semelhando uma queimada longínqua, nas serras. A orla iluminada amplia-se, vagarosamente, descendo pelos contrafortes e gargantas das montanhas fimbradas de centelhas... Depois, a pouco e pouco, um raio de sol escapa-se, tangenciando as quebradas mais baixas, e sucedem-se rapidamente outros, e vingando logo após a barreira das montanhas o dia desdobra-se deslumbrante sobre a planície ondulada, iluminando-se repentinamente todas as vertentes das serras do Cambaio, Caipã e Calumbi, até então imersas na penumbra.

E há como que uma harmonia estranha nos ares de uma região da qual fugiram, de há muito, espavoridas todas as aves. Uma harmonia imperceptível quase e profunda, feita pela expansão íntima da terra ante o beijo ardentíssimo da luz, recordando o fato mitológico da estátua de Memnon, de Tebas.

Hoje, porém – coincidência bizarra! –, observei pela primeira vez uma manhã enevoada e úmida, persistentemente varada por uma garoa impertinente e fina; uma manhã de inverno paulista. E quando os primeiros tiros da artilharia ressoaram, dando começo a mais um encontro crudelíssimo com os nossos selvagens adversários, parece-me que mais lúgubre se tornou a manhã, agravada pela fumarada negra e espessa do bombardeio.

Este foi violento, desapiedado, formidável; assisti-o da sede da Comissão de Engenharia.

Uma a uma, com uma precisão matemática, as granadas estouravam dentro da área reduzida do inimigo, batendo-a em todos os pontos, casa por casa; ricochetando em certos lugares e abrindo um círculo amplíssimo de estragos, suspendendo além, bruscamente, numa explosão enorme, a poeira intensa dos escombros, alevantando mais longe a coma fulva e desgrenhada dos incêndios.

Durante quarenta e oito minutos os canhões da Sete de Setembro, do centro e da direita da linha fulminaram, reviraram, revolveram um trecho do povoado onde repugnava à razão admitir a existência de homens, sobre-humanamente bravos embora. E durante todo esse tempo, sob uma avalanche pesadíssima de ferro, nem uma voz se alteou da zona fulminada, imersa toda numa quietude pasmosa, inconceptível quase; nem um vulto correndo estonteado pelas vielas estreitas e tortuosas, nem a mais leve agitação patenteavam a existência de seres, ali dentro.

A artilharia fez estragos incalculáveis nas pequenas casas, repletas todas. Penetrando pelos tetos e pelas paredes as granadas explodiam nos quartos minúsculos despedaçando homens, mulheres e crianças sobre os quais descia, às vezes, o pesado teto de argila, pesadamente, como a laje de um túmulo, completando o estrago. Parece, porém, que os malferidos mesmo sofreavam os brados da agonia e os próprios tímidos evitavam a fuga, tal o silêncio, tal a quietude soberana e estranha, que pairavam sobre as ruínas fumegantes, quando, às 6 horas e 48 minutos, cessou o bombardeio.

Foi determinado o assalto. Dois batalhões de linha, o 4º e o 29°, atravessaram, de armas suspensas, aceleradamente, a marche-marche, o rio; galgaram, rápidos, o barranco empinado da margem esquerda e surgiram de baioneta calada em frente da Igreja Nova.

Um belo movimento heroico executado num minuto.

Nesse momento passou-se um fato extraordinário e inesperado em que pese aos numerosos exemplos de heroica selvatiqueza revelada pelo jagunço.

De todas as casas, há poucos minutos fulminadas, irrompendo de todas as frinchas das paredes e dos tetos, saindo de todos os pontos, explodiu uma fuzilaria imensa, retumbante, mortífera e formidável, de armas numerosas rápida e simultaneamente disparadas – e sobre os batalhões assaltantes refluiu a réplica tremenda de uma saraivada, impenetrável, de balas!

Isto logo após o bombardeio, logo depois da agitação de metralha terrível e demolidora que os trucidou, despedaçou e mutilou – mas não destruiu a formatura para o combate...

Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados, e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política.

Vi caírem as primeiras vítimas sobre o acervo informe das ruínas da igreja, sobre os grandes blocos de pedra da fachada disjungida e desmantelada pelas balas. Foram muitas; tantas que a princípio acreditei que, obedientes a um preceito rudimentar de tática, muitos soldados houvessem caído de bruços para atirar com mais segurança e melhor.

O combate prosseguiu vivamente. Ressoaram as cornetas reproduzindo o toque partido da Sete de Setembro, onde se achava o General Artur Oscar.

Ouvi nitidamente a ordem para que avançasse o 5º de Polícia da Bahia.

O 5º avançou. Não foi a investida militar, o avançar franco, numa larga exposição do peito aos tiros, do 4° e do 29º; mas um como que serpear rápido e heroico, um cintilar vivíssimo de baionetas ondulantes, traçando uma sinuosa fulgurante de lampejos desde o leito do rio até as ruínas da igreja.

O mesmo avançar dos jagunços – célere, serpeante, escapando à trajetória retilínea – num colear indescritível e fantástico quase, como se aqueles duzentos homens fossem as vértebras mobilíssimas de uma serpente enorme investindo num bote atrevido contra o povoado e envolvendo, numa constrição vigorosa, com a cauda de aço flexível e forte, o baluarte sagrado do inimigo.

O 5° de Policia é todo constituído por sertanejos do interior da Bahia e de outros Estados, e o seu desassombro no combate e a capacidade singular de adaptar-se às mais duras condições de uma campanha patenteiam admiravelmente o valor e a têmpera resistente dos nossos rudes patrícios dos sertões.

Momentos antes dessa investida caíra mortalmente ferido o Major Queirós, comandante do 29º. Vi-o, depois, no hospital de sangue. Emoldurado o rosto arroxeado pela barba branca maltratada, o aspecto do digno chefe comovia profundamente. Um ponto negro, de sangue coagulado, na raiz do nariz, indicava a entrada da bala. Um ponto negro, pequeníssimo, imperceptível a dez passos de distância; em compensação, porém, a fronte nobre e ampla, sulcada diagonalmente, mostrava o curso do projétil dentro do crânio.

Às 8 horas, era geral o combate em que se empenhavam outros corpos, além da 3ª e 6ª Brigadas.

Nessa ocasião uma nova absolutamente inesperada abalou a todos: morrera atravessado por uma bala, quando observava de binóculo, numa trincheira, o movimento da batalha, o tenente-coronel Tupi Caldas.

Era um oficial de carreira, um militar de raça, um esplêndido general do futuro.

Estatura pequena; magro, seco, nervoso, fisicamente frágil; olhar sem expressão animando-se, porém, repentinamente, nas discussões em que mal sofreava as expansões de um temperamento apaixonado e forte; a um tempo simples e ávido de renome; modesto, mas tendo, perene, n'alma, o sonho indefinido, a idealização suprema e absorvente da glória.

Ultimamente atravessava o acampamento arrimado em comprido bordão, com o andar titubeante e incerto dos beri-béricos.

Rodeava-o a simpatia de todos. Os seus comandados diretos, os soldados do 30ª, respeitavam-no como a um pai.

No dia 30, à tarde, quando me dirigia para o acampamento do Batalhão Paulista, encontrei-o.

Interpelou-me de longe:

- Então, seu doutor, já recebeu o trabuco que lhe mandei? Uma arma interessante; há de fazer um sucesso enorme em São Paulo.

Agradeci-lhe o presente na véspera enviado e, depois de breve troca de palavras, disse-lhe:

- Sabe que o general não concorda que entre amanhã no combate?

- Sei, sei, o Artur é muito meu camarada e teme pela minha moléstia... Mas não acha que é um contrasenso ficar na minha barraca, agora, no fim de tudo, eu, que suporto há tanto tempo este inferno? ... Ficar na cama no fim da festa, justamente quando vão servir os doces... Não! falta só um dia, vou até o fim.

E faltava-lhe só um dia e foi até o fim o bravo e dedicado lidador, uma magnífica existência heróica atravessada ao ritmo febril das cargas guerreiras, uma vida que foi um poema de bravura tendo como ponto final uma bala de Mannlicher.

Correu um frêmito, misto de pavor, de espanto e de cólera pelas fileiras do 30°. Houve um momento de vacilação e depois, como um só homem, mudo assombrado, terrível, o Batalhão rolou sobre a trincheira, transpô-la de um salto, caiu no solo violentamente batido pela fuzilaria e enfrentando a morte precipitou-se sobre o inimigo, a marche-marche, sem disparar um tiro, impetuosamente, varrendo-o a baioneta e a coice de armas!

E - fato que teve muitas testemunhas - o soldado ao voltar desta carga tremenda, ferido, mutilado ou chamuscado pelo incêndio, coberto pela poeira dos escombros, exausto e ofegante da luta, vestes despedaçadas nos pugilatos corpo-a-corpo, indiferente à dor, indiferente à vida que se lhe escapava lentamente pelas artérias rotas, vinha chorando, murmurando com uma veneração estranha o nome do denodado comandante.

Generalizado o combate às 9 horas era difícil conjeturar sequer para que lado propendia a vitória. O inimigo resistia indomável, dentro de um círculo de fogo.

Dissolveram-se nessa ocasião as névoas da manhã e um sol claríssimo iluminou a batalha.

Observei então que o incêndio lavrava a oeste do arraial, progredindo lentamente para a zona ocupada pelo inimigo.

Às 10 horas a vitória pairou um minuto sobre as nossas armas, mas desapareceu de pronto. Fora tomada a Igreja Nova e um cadete do 7º cravara audaciosamente, no alto da parede estruída do templo, a bandeira nacional.

As cornetas tocaram a marcha batida e um viva à República imenso e retumbante saiu de milhares de peitos.

Surpreendidos por esta manifestação estranha, os próprios jagunços cessaram, por momentos, o tiroteio.

Na larga praça das igrejas fervilhavam soldados, tumultuadamente, andando em todas as direções, trocando saudações entusiásticas.

Era a vitória, por certo.

Eu estava a cerca de 200 metros apenas da praça, no quartel-general do General Barbosa. Desci rapidamente a encosta e entrei na zona do combate. Não gastei dois minutos na travessia. Ao chegar, porém, ouvi surpreendido, sobre a cabeça, o sibilar incômodo das balas.

Tudo é incompreensível nesta campanha: a batalha continuava mais acesa e mortífera se é possível.

Abeirei-me de uma trincheira.

Estava ali um batalhão sob o comando do Capitão Raimundo Magno da Silva.

Nessa ocasião três estampidos mais fortes que a explosão das granadas fizeram-se ouvir, próximo à latada.

Tinham sido arremessadas três bombas de dinamite sobre os jagunços. Senti o solo estremecer numa vibração rápida e forte de terremoto.

Cessaram os tiros do inimigo e três colunas de fumo, precursoras do incêndio, determinaram os pontos flagelados.

Mas estas não se tinham ainda dissolvido nos ares e a fuzilaria inimiga, reatando a refrega, batia outra vez, violentamente, as nossas linhas.

Mais violenta, se é possível, prosseguia a batalha.

Voltei para o meu posto de observação, cautelosamente, desenfiando-me pelas casas e, ao atingir o alto da encosta, vi passar, numa rede, agonizante, o Capitão Aguiar, assistente do General Carlos Eugênio.

No extremo de um beco estreitíssimo, abrigado por uma casa a poucos passos das trincheiras, o malogrado oficial conversava com o tenente-coronel Dantas Barreto e o capitão Abílio, assistente do general Artur Oscar, quando, ao passar, um batalhão que avançava se afastou dos companheiros para observar, da esquina, a investida. E ao observá-la, vigorosa e impávida, o moço republicano, que era um oficial valente, jovial e bom, tirou o chapéu, agitando-o entusiasticamente, e ergueu – febricitante, - um viva fervoroso à República.

Essa saudação custou-lhe a vida; a vida fugiu-lhe do peito de envolta nas vibrações de um brado heroico, precisamente na ocasião em que a sua alma sincera ansiava pela existência eterna da República.

Morreu como sabem morrer os imortais, aquele digno, leal e esplêndido companheiro...

Às 10 horas e 52 minutos novos estampidos abalaram os ares e novamente estremeceu a terra em torno de um punhado de valentes transviados; novas bombas de dinamite derramaram a devastação e a morte na zona convulsionada em que lutavam os últimos jagunços. E despedaçados pelas explosões fortíssimas que dispartiam em todas as direções os restos das casas destruídas sob os escombros fumegantes, sob um chuveiro de balas, apertados num círculo de baionetas e de incêndios, aquela gente estranha não fraqueou sequer na resistência.

As nossas baixas avultavam. As padiolas e redes passavam, incessantemente, inúmeras, como uma procissão lutuosa e triste dos que seguiam a romaria trágica para o túmulo.

No hospital de sangue um quadro lancinante, indefinível.

Sem espaço mais dentro das amplas barracas, os feridos acumulavam-se, fora, no chão ensanguentado, sob o cáustico abrasado de um sol inclemente e fulgurante, atordoados pelos zumbidos agourentos e incômodos das moscas, fervilhando em número incalculável.

Quando à 1 hora da tarde contemplei o quadro emocionante e extraordinário, compreendi o gênio sombrio e prodigioso de Dante. Porque há uma coisa que só ele soube definir e que eu vi naquela sanga estreitíssima, abafada e ardente, mais lúgubre que o mais lúgubre vale do Inferno: a blasfêmia orvalhada de lágrimas, rugindo nas bocas simultaneamente com os gemidos da dor e os soluços extremos da morte.

Feridas de toda a sorte, em todos os lugares, dolorosas todas, gravíssimas muitas, progredindo numa continuidade perfeita dos pontos apenas perceptíveis das Mannlichers, aos círculos maiores impressos pelas Comblains, aos rombos largos e profundos abertos pelas pontas de chifre, pelos pregos, pelos projéteis grosseiros dos bacamartes e trabucos.

Vibrava no ar um coro sinistro de imprecações, queixas e gemidos. Quase todos contorciam-se sob o íntimo acúleo de dores cruciantes, arrastavam-se outros disputando um resto de sombra das barracas, quedavam-se muitos, as mãos cruzadas ou espalmadas sobre o rosto, resguardando-o do sol, imóveis, estóicos, numa indiferença mórbida pelo sofrimento e pela vida.

No fundo dos barracões, arrimados sobre os cotovelos ou sentados, os antigos doentes, os feridos dos combates anteriores, olhavam assustados para os novos companheiros de desdita, sócios das mesmas horas de desesperança e martírio.

A um lado, lançados sobre o chão duro, francamente batidos pelo sol, alinhavam-se três cadáveres - o tenente-coronel Tupi, o major Queirós e o alferes Raposo.

Felizes os que não presenciaram nunca um cenário igual...

Quando eu voltei, percorrendo, sob os ardores da canícula, o vale tortuoso e longo que leva ao acampamento, sentia um desapontamento doloroso e acreditei haver deixado muitos ideais, perdidos, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue...

A 1 hora e 45 minutos cheguei à sede da comissão de engenharia e observei o combate.

A situação não mudara.

Dentro de um cumulus enovelado e pardacento de fumaça agitava-se ainda, doidamente, o encontro. Cinco minutos depois partiu do comando-em-chefe um toque geral de Infantaria avançar! sobre as trincheiras. A infantaria avançou sem conseguir tomá-las. À estrada, os sulcos profundos abertos pela dinamite eram trancados tenazmente pela fuzilaria.

Impossível formar-se a mais leve ideia sobre a situação. Insistentes, imprimindo em todo aquele tumulto a nota singular de uma monotonia estranha, reproduziam-se em todas as linhas, de minuto em minuto, incessantes, sem variantes, as notas estrídulas das cornetas determinando a carga.

E as cargas realizavam-se, sucessivas, rápidas, constantes, vigorosas, inflexíveis; pelotões, batalhões e brigadas, ondas cintilantes de baionetas feridas pelo sol, rolavam, quebravam-se ruidosamente sobre as trincheiras intransponíveis.

Vi, nessa ocasião, o coronel Sampaio atravessar lentamente, a pé, a praça, na direção do combate. Não tirara os galões; encarava serenamente os perigos dentro do alvo tremendo da própria farda, francamente exposto aos tiros do inimigo, que visava de preferência os chefes. Desapareceu com o mesmo andar tranquilo no seio dos combatentes.

À margem esquerda do Vaza-Barris uma linha de baionetas desdobrava-se, extensa, da igreja velha à nova. Era a ala direita do Batalhão Paulista, correto sempre, severamente subordinado ao dever e pronto a enfrentar os perigos à primeira voz.

A outra ala, dentro de Canudos, sustentava brilhantemente, no seio da refrega, as grandes tradições dos soldados do Sul.

As 2 e 20 uma nova vibração do solo chegou até o ponto em que eu estava - novas bombas de dinamite eram lançadas sobre o inimigo e um novo incêndio irrompeu, listrando a fumarada com as línguas vermelhas das chamas.

Mais violento e mortífero prosseguia o combate.

E pela encosta acima, defluindo da sanga profunda, dentro da qual se estendia a linha avançada do 25° Batalhão - longa, constante, subia sempre a trágica procissão dos mortos e feridos em direção ao hospital de sangue.

Em padiolas uns, carregados outros em redes, ascendiam lentamente a colina escavada pela longa estrada pontilhada de gotas de sangue.

Alguns subiram sós a pé, vagarosamente, titubeantes, parando de minuto em minuto, exaustos, resfolegando penosamente, arrimando-se às casas, numa exaustão contínua de forças, arrastando-se num esforço extraordinário, até ao alto.

A verdade é que ninguém poderia prever uma resistência de tal ordem.

O ataque foi lógico, imposto severamente pelas razões mais sólidas, e o seu plano, perfeitamente bem concebido, resistirá com vantagem à crítica mais robusta.

Tudo, porém, são surpresas nesta campanha original.

À tarde reconheceu-se definitivamente que a situação não mudaria.

Só havia uma providência a tomar - conservar as posições arduamente conquistadas, embora não se revestissem de importância que compensasse os sacrifícios feitos.

Reduzira-se, entretanto, de muito, a área ocupada pelo inimigo.

Esta redução de espaço, porém, parecia haver determinado a condensação de sua energia selvagem.

A noite desceu serenamente sobre a região perturbada do combate e rasgando o seio da noite, caindo, insistentes, sobre todos os pontos da linha do cerco, sibilando em todos os tons sobre o acampamento, inúmeras, constantes, da zona reduzida em que se encontravam os jagunços, irrompiam as balas.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 1º de Outubro de 1897.

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O último texto no teatro de hostilidades

Por Walnice Nogueira Galvão

O dia 1º de outubro assinala uma das mais renhidas batalhas da campanha, com numerosas baixas, entre mortos e feridos. O relato começa às 6 horas da manhã, quando repercute a primeira bala do tiroteio deflagrado pelo exército.

A partir daí, as tropas procederiam à ofensiva, em vagas sucessivas. A resistência do arraial cercado continua surpreendendo a todos. Tamanho bombardeio, incluindo canhonaços, deveria aniquilar o adversário: mas ao fim de quase uma hora, sem que se divise um só vulto, a fuzilaria revida do âmago do cerco. E, quando a noite cai, o resultado, indeciso, não pende nem para um lado nem para o outro.

Esta foi a última correspondência enviada por Euclides do teatro das hostilidades. Desse dia 1º até o dia 5 de outubro, quando a guerra finalmente acabou, desenrolou-se uma só e intermitente batalha. Para saber o que aconteceu depois, seremos obrigados a ler outros jornais e outras reportagens, ordens-do-dia dos militares, relatórios de governo, depoimentos posteriormente escritos.

Euclides deixaria Canudos no dia 3, dois dias antes da queda do arraial. Faltou mais uma e muito aguardada correspondência, que narraria a culminação da campanha, coroada pela vitória. Assim, a série ficaria em suspenso, sob o troar da metralha e o silvo dos projéteis. Ele escreveria depois uma crônica em louvor ao Batalhão de São Paulo, que costuma ser inadequadamente publicada como fecho da série.

Como é uma conclusão (ou falta de conclusão) insólita para uma missão de tal importância, deu ensejo a todo tipo de conjectura. Por que Euclides interrompeu as reportagens? Seria porque, como é provável, não tenha suportado a crueldade da guerra e tinha retirado seu apoio a ela? Envergonhava-se do desempenho do exército – do seu exército, com oficialato adestrado na Escola Militar ilustrada - contra um bando de sertanejos famintos e mal armados, porém inabaláveis em sua resistência, que ele aprendeu a admirar e que passou a considerar como compatriotas? É o que parece, como se verá nas páginas de Os sertões.

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Canudos, 10 de setembro

Euclides da Cunha

...E vingando a última encosta divisamos subitamente, adiante, o arraial imenso de Canudos.

Refreei o cavalo e olhei em torno.

É extraordinário que os que aqui têm estado e escrito ou prestado informações sobre esta campanha, nada tenham dito ainda acerca de um terreno cuja disposição topográfica e constituição geológica são simplesmente surpreendedoras.

As inúmeras colinas que se desdobram em torno da cidadela sertaneja, todas com a mesma altitude quase e dando, ao longe, a ilusão de uma campina unida e vasta, levantam-se dentro de uma elipse majestosa de montanhas. Olhando para a direita, avultam as cumeadas da Canabrava, Poço de Cima e Cocorobó ligando-se à esquerda com as do Calumbi, Cambaio e Caipã – infletindo a leste e a oeste uma curva amplíssima e fechada, com um eixo maior de doze léguas e um menor, de nove, traçando uma elipse perfeita.

Dentro dela estende-se a região caótica, irregularmente ondulada, em cujo centro, aproximadamente, se ergue Canudos.

O arraial não se distingue prontamente, ao olhar, como as demais povoações; falta-lhe a alvura das paredes caiadas e telhados encaliçados.

Tem a cor da própria terra em que se erige, confundindo-se com ela na mesma tinta de um vermelho carregado e pardo, de ferrugem velha, e, se não existissem as duas grandes igrejas à margem do Vaza-Barris, não seria percebida a 3 quilômetros de distância.

Levanta-se sobre oito ou nove colinas, suavemente arredondadas umas, terminando outras em rampas fortíssimas.

Visto de alguma distância, porém, parece uma cidade plana, mais abrigada, à direita, pelos acidentes um pouco mais fortes do solo, que, da Favela à Fazenda Velha, se ligam à última trincheira fechando a estrada do Cambaio, circumurando-o, em parte, a cavaleiro do vale profundo do Vaza-Barris que segue a mesma direção.

Do alto da trincheira Sete de Setembro, erguida num contraforte avançado do morro da Favela, quem observa tem a impressão inesperada de achar-se ante uma cidade extensa, dividida em cinco bairros distintos e grandes, revestindo inteiramente o dorso das colinas.

É um quadro surpreendente, o deste acervo incoerente de casas – todas com a mesma feição e a mesma cor, compactas e unidas no centro de cada um dos bairros distintos, esparsas e militarmente dispostas em xadrez nos intervalos entre eles.

Não há propriamente ruas, que tal nome não se pode dar às vielas tortuosas, cruzando-se num labirinto inextricável – e as duas únicas praças que existem, excetuada a das igrejas, são o avesso das que conhecemos: dão para elas os fundos de todas as casas; são um quintal em comum.

À esquerda da linha definida pelo observador e a parede anterior da igreja nova, acha-se a parte rica – casas de telhas avermelhadas e de aparência mais correta, um tanto maiores que as demais e mais ou menos alinhadas num arremedo de arruamento. Estendendo-se em torno destas, apresentam-se, numerosíssimas e como que feitas por um único modelo, as casinhas que constituem a maior parte do clã de Antônio Conselheiro.

Feitas de pau a pique e divididas em três compartimentos, no máximo, são como que uma paródia grosseira da antiga casa romana: um átrio que é a um tempo a cozinha, sala de jantar e de recepção, um vestíbulo estreito em algumas, e uma alcova. Cobertas de uma camada de cerca de quinze centímetros de barro, lembram neste ponto as casas dos gauleses de César. Os nossos rudes patrícios têm, porém, um material mais apropriado nas placas largas da rocha predominante da região, que ainda quando decomposta conserva a estratificação primitiva. Assentam-nas sobre as folhas resistentes de icó.

É uma cobertura eterna – e Canudos, como um vastíssimo Kraal africano, pode durar mil anos, se o bombardeio e os incêndios não o destruírem breve.

Tenho-a percorrido toda, de longe, cansado de acomodar a vista às lentes dos binóculos. Dois meses de bombardeio permanente não lhe destruíram a metade sequer das casas; somente uma análise mais demorada patenteia as ruínas que surgem num e noutro ponto, a própria construção rudimentar impedindo a irradiação eficaz das explosões das granadas. A bala atravessa violentamente, sem encontrar resistência, perfurando paredes estreitíssimas de argila, dez ou vinte casas e não as abala.

Deixa-as intactas quase, abertas apenas mais algumas seteiras para o espingardeamento traiçoeiro feito pelos jagunços.

As próprias igrejas, longos dias rudemente tratadas pela artilharia, conservam ainda as paredes mestras quase destruídas, como dois acervos monstruosos de pedras enormes. Os jagunços ainda se entrincheiram nelas, às vezes, travando tiroteios cerrados, à queima-roupa, com as linhas audaciosas dos tenentes-coronéis Tupi e Dantas Barreto.

E olha-se para a aldeia enorme e não se lobriga um único habitante. Lembra uma cidade bíblica fulminada pela maldição tremenda dos profetas. E quando os tiros dela partem, de todos os pontos, irradiando para todos os pontos da linha amplíssima do cerco, a fantasia apenas divisa ali dentro uma legião invisível e intangível de demônios...

Se, considerando esta aldeia sinistra, se avaliam todas as dificuldades de um combate travado em seu seio, observando os arredores vê-se que deve ter sido dificílima a investida feita contra ela pelas nossas tropas. Qualquer secção transversal, neste terreno caprichoso, determina, desenhada, uma sinuosa. A marcha realiza-se ou seguindo pelos meandros dos pequenos vales ou em sucessivas e inevitáveis subidas e descidas, numerosas e fatigantes, agrupando-se as colinas pouco elevadas numa ordem e feição tais que lembram grandes calotas esféricas dispostas num plano extenso, tangenciando-se no fundo das gargantas intermediárias.

Nada mais perigoso e difícil do que a marcha de um exército em tais lugares; é como se atravessasse o recinto complicado de uma fortaleza. Cada batalhão, cada brigada, o exército inteiro é fatalmente batido por todos os lados pelo inimigo invisível sempre, acobertado ora pelos valos que sulcam as encostas, cujas bordas mascaradas por enredados renques de macambiras não deixam perceber o atirador ousado, ora pelas trincheiras cavadas no alto, circulares ou elípticas, dentro das quais não caem as balas nem mesmo no ramo descendente das trajetórias.

Nos combates cruentos de 18 de julho ostentaram-se, de modo notável, estas condições táticas formidáveis.

Percorri o campo da batalha com o meu colega Gustavo Guabiru, e ele, que foi um dos protagonistas da luta, mostrou-me pontos em que meia dúzia de homens rarearam as fileiras de multas brigadas.

Violentamente batida pelos flancos e pela frente, as forças, ao vingarem as eminências sucessivas do solo, nelas não encontravam do inimigo outro indício além de uma trincheira tosca e cheia de cartuchos detonados. Em compensação, mais adiante continuava a fuzilaria inextinguível e tremenda, fulminando-as novamente por todos os lados – e o inimigo ressurgia nas três ou quatro colinas mais próximas. E não havia se abrigarem no fundo dos vales: os tiros mergulhantes desciam mais certeiros ainda.

Fazia-se um esforço indefinível, ordenavam-se as fileiras abaladas, os batalhões ascendiam, a passo de carga, para as novas fortificações e encontravam outra vez as trincheiras vazias, e, mais adiante, alevantado nos acidentes mais próximos, o mesmo inimigo, intangível e rápido como um demônio, fulminando-os sempre e escapando sempre para novas posições, inteiramente idênticas às anteriores!

Uma coisa fantástica. E nem um plaino sofrivelmente extenso, um ponto abrigado, insignificante embora, para a organização de uma resistência ou ataque mais bem orientado...

Numa das colinas, no alto, sob a ramada sem folhas de um umbuzeiro, o meu colega mostrou-me uma cavidade circular de pouco mais de meio metro de profundidade.

Ali esteve no dia da peleja um único homem; e esse homem torturou batalhões inteiros!

Ninguém o podia distinguir. Os tiros rápidos da Mannlicher que sopesava, dispensando a pontaria para um alvo enorme, caíam repetidos, numerosíssimos, em cheio, dentro das fileiras. Era uma fuzilaria tenaz, impetuosa, mortífera, formidável, jogando em terra pelotões inteiros e feita por um único homem. Os soldados, estonteados, atiravam ao acaso, na direção provável dos tiros do maldito: uma saraivada de balas passava rugindo pela galhada do umbuzeiro; o atirador sinistro e nunca percebido abaixava apenas a cabeça e passada a onda de balas, continuava de cócoras, no fundo da trincheira, a tarefa espantosa.

Os melhores binóculos não o distinguiam: agachado na cova, olhando segundo uma tangente à borda do fosso terrível e atirando, atirando, atirando sempre, despiedado, terrível, demoníaco, num duelo de morte contra mil homens!

Ainda lá estão as cápsulas detonadas. Contei 361.

361 tiros deu aquele ente fantástico e talvez perdesse muito poucas balas.

E não morreu. Por acaso uma fração das forças tomou em acelerado a direção da trincheira. Ele surgiu numa última explosão terrível e desapareceu prestes caindo pela encosta abrupta...

Ora, pelo alto de todas as tombadas que atravessei, apareciam as mesmas trincheiras cavadas com uma disposição inteligente umas relativamente às outras cruzando os fogos da maneira mais eficaz, e dentro de todas elas os cartuchos detonados patenteavam o mesmo açodamento na peleja.

Não será por isto difícil demonstrar – e fá-lo-ei muito breve – que a batalha de 18 de julho é um dos feitos de armas mais notáveis da nossa história militar.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 11 de outubro de 1897.

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Comentário a “Canudos, 10 de setembro”

Por Walnice Nogueira Galvão

Eis Euclides enfim no território tão ansiado e tantas vezes prefigurado. Um primeiro olhar, a partir da aproximação em lombo de montaria, dedica-se a aquilatar a topografia do arraial. A descrição é tão minuciosa e analítica, que ainda persiste como a melhor que Canudos viria a ter.

Desdobra-se a perder de vista, antes de mais nada, a monotonia do tecido urbano. Num labirinto sem projeto, o casario de pau-a-pique e o solo partilham a mesma cor, a do barro do chão. Afora poucas casas de telha, morada dos mais abastados, o restante constituía um aglomerado de construções feitas às pressas, sem arruamento. Euclides, ao deparar-se com algo inusitado, registra o choque das primeiras impressões. E certamente por indução da propaganda, afirma erroneamente que os casebres são militarmente dispostos em xadrez, visando ao fogo cruzado dos tiros.

O mais impressionante é que não se divisa vivalma. Para acentuar a fantasmagoria, só as intermitências da fuzilaria mostram que há gente lá dentro.

Ao vistoriar a pé a parte do arraial já ocupada pelo exército, Euclides examina algumas trincheiras, e fala de uma cova em que um canudense sozinho manteve o exército em cheque por horas seguidas, antes de escapar incólume. Ao contarem os cartuchos que ele utilizou, chegou-se ao espantoso número de 361.

Uma palavra sobre a datação: “10 de setembro” é erro do jornal, porque seria impossível publicar a matéria já no dia seguinte. Essa data levantou discussões e disputas através dos tempos. Euclides, conforme anotou em sua caderneta de campo, chegou a Canudos a 16 de setembro, e é provável que tenha escrito esta reportagem no mesmo dia, acampado à vista do arraial. Por não declarar neste texto em que dia apeou em Canudos, abriu a porta para toda sorte de conjecturas, e a demora de várias décadas até a publicação da caderneta só as alimentou.

Esta primeira correspondência não trata, portanto, de nenhuma batalha, que o repórter ainda não presenciou. Isso caberá às próximas correspondências enviadas do palco da guerra.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1898. Clique para ver no acervo

Excerto de um livro inédito

Euclides da Cunha

...Assim, o sertanejo é um forte, cuja energia contrasta o raquitismo exaustivo dos mestiços enervados do litoral. Surge naquelas paragens com a feição firmemente acentuada de um lidador enérgico.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Não tem a plástica impecável, o desempeno, as linhas elegantes dos lutadores antigos. É sem elegância e desengonçado. O andar sem firmeza, sem o aprumo dos organismos vigorosos, é quase gigante e sinuoso, aparentando a translação de membros desarticulados; e a postura, normalmente indolente, semi-curvada, manifesta uma displicência perene.

A pé, quando parado, recosta-se sempre ao primeiro móvel ou parede que encontra; a cavalo, quando sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo, novamente, sobre um dos estribos, descansando sobre a sela.

Marchando, ainda quando a passo acelerado, não traça nunca uma trajetória retilínea, avança vertiginosamente, num bambolear persistente; e se estaca, para enrolar um cigarro ou travar longa conversa com um amigo, põe-se de cócoras quase sempre, atravessado largo tempo numa posição de equilíbrio instável, suportado apenas pelos dedos dos pés, sentado por assim dizer sobre os calcanhares, numa simplicidade adorável e ridícula a um tempo.

Mas toda esta aparência de cansaço e todo esse achamboado, iludem.

Naquela organização, normalmente preguiçosa e como que combalida, opera-se, num segundo, uma transfiguração completa, ao sobrevir qualquer incidente que lhe exija o desencadear repentino da energia adormida apenas. O homem, de golpe, transmuda-se; empertiga-se soberano de força e de audácia; a cabeça firma-se enérgica sobre os ombros possantes, iluminada por um olhar atrevido; corrigem-se, prestes, todos os defeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e, da figura deprimida do tabaréu desgracioso, irrompe bruscamente a feição dominadora de um titã bronzeado e potente, num desdobramento surpreendedor de força e agilidade extraordinárias.

É impossível imaginar-se um cavaleiro mais descuidado e despretensioso - sem posição, pernas coladas ao bojo do animal, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Mas se uma rês alevantada envereda esquiva pela caatinga garranchenta ei-lo que se transmuda - violento e ágil - cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como uma flecha, atufando-se velozmente no seio trançado das juremas.

Não há contê-lo, então, no ímpeto... Que se lhe antolhem em frente os sulcos das quebradas, acervos monstruosos de pedras, moitas impenetráveis de espinhos ou os barrancos em caixão dos rios correntosos - nada lhe impede encalçar o caruara desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo...

Colado ao dorso do animal, confundindo-se com ele sob a pressão das pernas vigorosas, realiza então a criação bizarra de um centauro bronco e grosseiro - emergindo inopinadamente nas clareiras, mergulhando mais adiante nas macegas altas, saltando valados e ipueiras, vingando os cômoros desnudos, rompendo, célere, os mocambos trançados, precipitando-se a toda a brida nos planos dos tabuleiros... A sua compleição robusta ostenta-se então em toda a plenitude: como que é o cavaleiro resoluto quem empresta energia ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o vigorosamente nas esporas, arremessando-o para a frente, escanchado no rastro do novilho desgarrado, aqui curvando-se agilmente sob uma galhada que roça quase pela sela, além desmontando-se de golpe, sem largar as crinas do animal, para evitar o embate de um tronco apercebido no último momento e galgando logo depois o selim - galopando sempre através de todos os obstáculos, e sopesando à mão direita sem o perder nunca, sem o deixar no emaranhado dos cipoais, o longo ferrão de ponta de ferro, que por si só constituiria, noutras mãos, sério tropeço à travessia.

E terminada a refrega pela volta ao rebanho da rês tresmalhada, ei-lo de novo, acurvado sobre a sela, indolente e desgracioso, oscilando à feição do passo do animal, como que sob a pressão de um aniquilamento absoluto, numa aparência falsa de inválido fatigado.

O gaúcho do sul, ao vê-lo nesse momento não o olharia sequer.

O vaqueiro do norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos dificilmente se encontram pontos de contato entre os dois.

O primeiro, filho dos plainos dilatados, afeiçoado às correrias fáceis nos pampas, adaptado a uma natureza carinhosa que o deslumbra e encanta, reveste-se naturalmente de uma feição cavalheiresca e mais atraente. A luta pela existência não assume ante ele o caráter selvagem dos sertões do norte. Não conhece os horrores das secas e os combates cruentos com um solo árido e exsicado; não o entristecem as cenas quase anuais da devastação e da miséria, o quadro pavoroso da absoluta pobreza da terra calcinada, exaurida pela adustão dos sóis bravios do equador e não tem, por isto, no meio das horas remansadas da felicidade, a preocupação do futuro que é sempre uma ameaça, tornando instáveis sempre as fortunas mais sólidas ante a fatalidade incoercível dos elementos desencadeados. Desperta para a vida amparado pela natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida - aventureiro, jovial, valente e fanfarrão - despreocupado quase, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas domando distâncias no seio dilatado dos pampas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, o pala inseparável, como uma flâmula festivamente agitada.

As suas vestes são um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As largas bombachas, adrede dispostas para a fácil movimentação sobre o cavalo no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se dilaceram nos espinhos duríssimos das caatingas; o pala vistoso jamais lhe fica perdido, embaraçado na galhada caótica torturada e seca.

O cavalo, sócio inseparável de uma existência algo romanesca, é quase um objeto de luxo. O arreamento complicado e espetaculoso demonstra. O gaúcho andrajoso sobre um pingo perfeitamente equipado está decente, está corretíssimo, pode atravessar sem vexames os povoados em festa.

O vaqueiro do norte criou-se em condições opostas, numa intercadência, raro perturbado de horas felizes e horas amarguradas, de abastança e misérias, tendo sobre a fronte, como uma ameaça perene, o sol, arrastando de envolta na sucessão periódica das estações períodos sucessivos de devastações e desgraças. Atravessou a mocidade numa intercadencia de catástrofes e fez-se homem repentinamente por assim dizer, quase sem ser criança. Assaltou-o logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas nos sertões candentes e cedo encarou a existência pela sua face tormentosa como um condenado à vida. E considerando-a assim, compreendeu-se envolvido num combate sem tréguas, exigindo imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, atilado, resignado e prático.

Aprestou-se cedo para a luta.

O seu aspecto recorda vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo.

As vestes são uma armadura.

Envolto no gibão de couro, de bode ou de vaqueta, curtido - apertado no colete impenetrável, calçando as perneiras de couro resistente muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas e resguardados os pés e as mãos pelos guarda-pés e luvas de pele de veado - é como que a forma evanescente de um campeador medieval, desgarrado nos tempos atuais.

Essa armadura, porém, não tem cintilações, não fulgura ferida pelo sol, - é fosca e poenta - envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele; são-lhe acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente cobrindo as ancas do animal, peitoral e joelheira de sola.

Esta vestidura rude do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Falta-lhes a amplitude dos planos extensos e, em troca, cabem-lhes todos os assaltos de uma natureza agressiva e bárbara. Vestidos de outro modo, não romperiam incólumes, as caatingas trançadas.

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que essa vestimenta de uma só cor, o pardo avermelhado do couro curtido, sem uma variante, sem uma lista sequer, diversamente colorida.

Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes das violas, o matuto olvida as horas fatigadas, surge uma novidade - um colete vistoso de pele de gato do mato ou suçuarana, com o pelo voltado para fora, ou uma bromélia rubra e alegre, fincada no chapéu de couro.

Isto, porém, é um incidente passageiro e raro.

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde logo o desgarre folgazão - largamente expandido nos sapateados céleres em que o som seco das alpercatas sobre o chão quebra-se no retinir argentino das esporas, acompanhando a cadência monótona das violas - e cai na postura habitual, achamboado, indolente, deselegante, anguloso e torto, num falso manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.

Ora, nada mais explicável do que este contraste permanente entre extremas manifestações de força e atividade e longos intervalos de apatia.

Pondo mesmo de lado a ação fisiológica dos agentes físicos que observamos, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem de reveses e afez-se cedo a encontrá-los de chofre e a reagir, de pronto. Atravessa a existência entre ciladas, surpresas bruscas de uma natureza incompreensível - e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando-se sempre para um combate que não vence e no qual não se deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação, da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas.

Reflete, nestas aparências exteriores, que se contrabatem duramente, a própria natureza que o rodeia, passiva ante o jogo desordenado dos elementos, passando, quase sem transição sensível, de uma estação a outra, da maior exuberância para a penúria dos desertos desnudos e ardentes, ao reverberar dos estios abrasados.

É inconstante como ela e é natural que o seja; viver é adaptar-se.

O gaúcho aventuroso e valente é, certo, admirável numa carga guerreira, precipitando-se, ao ressoar estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo - atufando-se loucamente nos entreveros, desaparecendo com um brado de entusiasmo na voragem do combate de onde espadanam cintilações de espadas, transmudando o cavalo num projétil, e rompendo quadrados e levando de rojo o adversário ou caindo prestes na luta, em que entra numa despreocupação soberana pela vida.

O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz, é mais resistente, é mais perigoso, é mais forte. Raro assume essa feição romanesca e gloriosa; procura o adversário com o propósito formado de o destruir, seja como for; está afeiçoado aos combates demorados, sem expansões entusiásticas; a vida é-lhe uma conquista arduamente realizada numa faina incessante, guarda-a como um capital precioso; não esperdiça a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a segurança do resultado; calcula friamente o pugilato e ao riscar da faca não dá um golpe em falso; ao apontar a lazarina longa ou o trabuco truculento, dorme na pontaria...

Se, abortado o choque impetuoso, o inimigo enterreirado não recua, o gaúcho é um vencido fragílimo nas aperturas de uma situação inferior. O jagunço jamais se considera vencido; cede o terreno, mas não a vitória...

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 19 de janeiro de 1898.

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O primeiro anúncio de ‘Os Sertões’

Por Walnice Nogueira Galvão

Mesmo inconclusa, a série de reportagens sobre a guerra de Canudos constituiria o embrião de Os sertões, anunciado neste artigo. Numerosos acréscimos e desenvolvimentos fariam o volume ultrapassar seiscentas páginas. Entre uma tarefa e outra de suas lides de engenheiro de obras públicas no interior de São Paulo, Euclides dedicou-se a extensos estudos que completariam aquilo que presenciou na campanha.

Ali, vira coisas crudelíssimas que não mencionou nas correspondências, como a degola sistemática dos prisioneiros válidos, apesar de manietados, à vista dos comandantes. Ou o assalto ao arraial, sobre o qual se jogou querosene e bombas de dinamite, incendiando-o e incinerando os habitantes dentro das casas, mulheres e crianças inclusive. Documentada na mais célebre foto de Flávio de Barros, a rendição no dia 3 de trezentos prisioneiros, velhos, feridos, mães com seus filhos, mostra um bando lamentável de gente esquelética e com a vida por um fio. E, culminando tudo, sem que o reduto se renda, no dia final tombam seus quatro últimos defensores, baleados numa cova no largo das igrejas: dois homens, um velho e um menino.

Tudo isso estará nas páginas do livro, que sairá 5 anos depois, em dezembro de 1902. Este excerto, que é matéria nova e não constava da série, aparecerá devidamente retocado.

No que concerne aos acréscimos, o currículo da Escola Militar já familiarizara Euclides com boa parte das ciências: geologia, zoologia, botânica, mineralogia, química, física, astronomia, ótica, matemática, etc. A historia da colonização e do povoamento contribui para responder a suas indagações quanto à origem e formação do sertanejo. Concorrem ainda noções de antropologia, de sociologia, de folclore, de religião e de psicologia social.

Assim, o livro vai resultar numa formidavel enciclopédia onde hipóteses sobre as causas das secas que assolam o Nordeste ombreiam com interpre¬tações psicocriminais da instabilidade nervosa dos mestiços, e a crítica às taticas desenvolvidas pelo exército com análises dos preceitos da ordem do sagrado.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1901. Clique para ver no acervo

Fazedores de Desertos

Euclides da Cunha

É natural que todos os dias chegue do interior um telegrama alarmante denunciando o recrudescer do verão bravio que se aproxima. Sem mais o antigo ritmo, tão propício às culturas, o clima de São Paulo vai mudando.

Não o conhecem mais os velhos sertanejos afeiçoados à passada harmonia de uma natureza exuberante, derivando na intercadência firme das estações, de modo a permitir-lhes fáceis previsões sobre o tempo.

As suas regras ingênuas enfeixadas em alguns ditados que tinham, às vezes, rigorismo de leis falham-lhes, hoje, em toda a linha: passam-lhe, estéreis, as luas novas trovejadas; diluem-se-lhes como fumaradas secas as nuvens que ao entardecer abarreiram os horizontes; varrem-lhes as ventanias súbitas a poeira líquida das neblinas que se adensam de manhã, pelo topo dos outeiros; e em plena primavera, agora, sob o alastramento das soalheiras fortes, o aspecto de suas plantações, esfoliadas e esfloradas, principia a ser desanimador, revelando, antes do estio franco, esse perigo máximo à vida vegetativa que, nos países quentes, está no desequilíbrio entre a evaporação intensa pelas folhas e a absorção escassa, e cada vez menor, pelas raízes.

Toda a vegetação estiva, e esgota-se, desfalecida, precisamente na quadra em que as primeiras chuvas e as primeiras descargas elétricas, já lhe deviam ter, do mesmo passo, dissolvido os princípios nutritivos do solo e desdobrado, na mais interessante das reações, os que se disseminam profusamente pelos ares.

Ao invés disto, exaurida dos sóis, cerra o ciclo vital: morrem-lhe improdutivas as primeiras flores; extingue-se-lhe a função assimiladora dos tecidos superficiais, exsicados; e a poeira, que lhe entope os estomas e reveste as folhas, asfixia-a e enfraquece-lhe a reação tonificante da luz.

Daí o quadro lastimável descortinado pelos que se aventuram, nestes dias, a uma viagem no interior – varando a monotonia dos campos mal debruados de estreitas faixas de matas, ou pelos carreadores longos dos cafezais requeimados, desatando-se indefinidos para todos os rumos – miríades de esgalhos estonados quase sem folhas ou em varas, dando em certos trechos, às paisagens, um tom pardacento e uniforme de estepe...

Mas é natural o fenômeno. Nem é admissível que ante ele se surpreendam os nossos lavradores, primeiras vítimas dessa anomalia climática.

Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outros empreendimentos, nós mesmos a criamos.

Temos sido um agente geológico nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia.

É o que nos revela a história. Foi a princípio um mau ensinamento do aborigene.

Na agricultura do selvagem era instrumento preeminente o fogo. Entalhadas as árvores pelos cortantes djis de diorito, e encoivarados os ramos, alastravam-lhes por cima as caitaras crepitantes e devastadoras. Inscreviam depois, em cercas de troncos carbonizados a área em cinzas onde fora a mata vicejante; e cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera, jazendo dali por diante para todo o sempre sempre estéril, porque as famílias vegetais, renovadas no terreno calcinado, eram sempre de tipos arbustivos diversos dos da selva primitiva.

O selvagem prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas e novos círculos de estragos; novas capoeiras maninhas, vegetando tolhiças, inaptas para reagir contra os elementos, agravando cada vez mais os rigores do próprio clima que as flagelava – e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas, espelhando, aqui, o facies adoentado da caatanduva sinistra, além da braveza convulsiva das caatingas.

Veio depois o colonizador e copiou o processo. Agravou-o ainda com se aliar ao sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro.

Afogada nos recessos de uma flora que lhe abreviava as vistas e sombreava as tocaias do tapuia, dilacerou-a, golpeando-a de chamas, para desvendar os horizontes e destacar, bem perceptiveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam balizando a rota das bandeiras.

Atacaram a terra nas explorações mineiras a céu aberto; esterilizaram-na com o lastro das grupiaras; retalharam-na a pontaços de alvião; degradaram-na com as torrentes revoltas; e deixaram, ao cabo, aqui, ali, por toda a banda, para sempre áridas, avermelhando nos ermos com o vivo colorido da argila revolvida, as catas vazias e tristonhas com o seu aspecto sugestivo de grandes cidades em ruínas...

Ora, tais selvatiquezas atravessaram toda a nossa história.

Mais violentos no norte, onde se firmou o regime pastoril nos sertões abusivamente sesmados, e desbravados a fogo – incêndios que duravam meses derramando-se pelas chapadas em fora – ali contribuíram para que se estabelecesse, em grandes tratos, o regime desértico e a fatalidade das secas.

O sul subtraiu-se em parte à faina destruidora, que o próprio governo da metrópole, em sucessivas cartas régias, procurou refrear, criando mesmo juízes conservadores das matas que impedissem a devastação.

O mesmo sistema de culturas largamente extensivas, porém, e as lavouras parasitárias arrancando todos os princípios vitais da terra, sem lhe restituir um único, foram, a pouco e pouco, remodelando-lhe as paragens mais férteis, transmudando-as e amaninhando-as.

Não precisamos acompanhar em todas as fases esse aspecto infeliz da nossa atividade.

Notemos apenas que pouco a alteraram as belas criações da indústria moderna, os progressos rápidos da biologia e da química, fornecendo-nos todos os recursos para que se multipliquem as energias do solo. Deixamo-los, de um modo geral, de parte. Persistimos na tendência primitiva e bárbara, plantando e talando. E prolongamos ao nosso tempo esse longo traço demolidor, que vimos no passado.

Demos-lhe mesmo novas feições, consoante novas exigências.

E o que observa quem segue, hoje, pelas estradas do oeste paulista. Depara, de momento em momento, perlongando as linhas férreas, com desmedidas rimas de madeira em achas ou em toros, aglomeradas em volumes consideráveis de centenares de estéreos, progredindo, intervaladas, desde Jundiaí ao extremo de todos os ramais.

São o combustível único das locomotivas. Iludimos a crise financeira e o preço alto do carvão de pedra atacando em cheio a economia da terra, e diluindo cada dia no fumo das caldeiras alguns hectares da nossa flora.

Deste modo – reincidentes no erro - a inconveniência provada das lavouras ultra-extensivas e ao cautério vivo das queimas, aditamos o desnudamento rápido das derrubadas em grande escala.

***

As consequências repontam, naturais.

A temperatura altera-se, agravada nesse expandir-se de áreas de insolação cada vez maiores pelo poder absorvente dos nossos terrenos desnudados, cuja ardência se transmite por contato aos ares, e determina dois resultados inevitáveis: a pressão que diminui tendendo para um mínimo capaz de perturbar o curso regular dos ventos, desorientando-os pelos quatro rumos do quadrante, e a umidade relativa que decresce, tornando cada vez mais problemáticas as precipitações aquosas.

De sorte que o sueste – regulador essencial do nosso clima – depois de transmontar a Serra do Mar, onde precipita grande cópia de vapores, ao estirar-se pelo planalto, vai encontrando atmosfera mais quente do que dantes, cujo efeito é aumentar-lhe a capacidade higrométrica, diminuindo na mesma relação as probabilidades de chuvas.

São fatos positivos, irrefragaveis, e bastam para que se explique a alteração de um clima.

Mas apontemos um outro.

Neste entrelaçamento de fatores climáticos, introduzimos um – artificial e de todo fora das indagações meteorológicas normais – a queimada.

É transitória, mas engravece os perigos.

De feito, a irradiação noturna contrabate a insolação: a terra devolve aos céus o excesso de calor acumulado; resfria; e o orvalho decorrente ilude de algum modo a carência das chuvas.

Ora, as queimadas impedem esse derivativo único.

As colunas de fumo, rompentes de vários lugares, a um tempo, adensam-se no espaço e interceptam a descarga do solo. Desaparece o sol e o termômetro permanece imóvel ou, de preferência, sobe. A noite sobrevem em fogo: a terra irradia como um sol obscuro, porque se sente uma impressão estranha de faúlhas invisíveis, mas toda a ardência reflui sobre ela recambiada pelo anteparo espesso da fumaça; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pelas soalheiras e pelos incêndios, se concentra numa hora única da noite.

***

Traçamos estas linhas numa dessas noites, certo, desconhecidas pelos nossos patrícios de há cem anos.

Então a energia solar, descendo, armazenava-se nos ares, criando o influxo moderador de uma atmosfera benigna, e transformava-se em trabalho no seio das grandes matas, impulsionando a dinâmica maravilhosa das células.

Esse tempo passou.

Hoje, Thomas Buckle não entenderia as páginas que escreveu sobre uma natureza que acreditou incomparável no estadear uma dissipação de forças, wantonness of power, com esplendor sem par.

Porque o homem, a quem o romântico historiador negou um lugar no meio de tantas grandezas, não as corrige, nem as domina nobremente, nem as encadeia num esforço consciente e sério.

Extingue-as.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 22 de outubro de 1901.

Leia o artigo na íntegra

'Filho da Terra' revela preocupação ambiental

Por Walnice Nogueira Galvão

Quando publica este artigo, Euclides continua trabalhando como engenheiro de Obras Públicas em São Paulo. Reside em pequenas cidades, enquanto, a cavalo e de trem, circula pelo interior para edificar ou reparar estradas, pontes, cadeias, calçadas.

Numa delas, São José do Rio Pardo, onde morou enquanto reconstruía a ponte local, levada de roldão pelas águas de uma enchente, escreveria a maior parte de Os sertões. Ali, encontrou bons companheiros, leu trechos para uma roda de ouvintes e firmou amizade pela vida afora com Francisco Escobar. Este, intendente (prefeito) do município, homem culto e possuidor de uma vasta biblioteca, emprestou-lhe livros e ajudou-o de todas as maneiras.

A cidade encampou a memória do autor, tombando sua residência, hoje Casa de Cultura Euclides da Cunha, com biblioteca e arquivos. Realiza anualmente a Semana Euclidiana, em que sua vida e obra são divulgadas, incluindo maratona de leituras para alunos do colegial, em meio a palestras especializadas. Trasladaram-se para lá seus restos mortais e os de um de seus filhos. Ambos repousam à beira do Rio Pardo e à vista da ponte, hoje igualmente tombada, num conjunto monumental integrado por uma herma do autor e a cabana de zinco, depois protegida por uma redoma de vidro, em que escrevia Os sertões e conduzia os trabalhos de engenharia.

Enquanto o livro não vinha à luz, após o hiato tomado pela redação, Euclides recomeçaria a escrever artigos porém de um cunho novo, não mais nascidos de incidentes políticos imediatos como aqueles que escreveu para este jornal, antes de ir para Canudos. Agora descortinaria horizontes mais amplos. Este que estampamos dá vazão a uma de suas constantes preocupações, o amor à natureza. Ambientalista e precursor da ecologia, a natureza é um de seus temas privilegiados. No discurso de recepção à Academia Brasileira de Letras, afirmaria: “eu, filho da terra e perdidamente enamorado dela...” Aqui, expressa seus receios sobre as catástrofes que são o desmatamento e seu corolário o aquecimento da atmosfera, atualmente na ordem do dia em escala planetária.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1904. Clique para ver no acervo

Um Velho Problema

Euclides da Cunha

Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito de roubo...

Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Tomás de Aquino; e com tal brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.

Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla – material e filosófica - pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações vitimadas, que na triste inópia de elementos da civilização para resolvê-lo.

E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título de posse a todos os bens – a fome.

O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a Vida.

Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a miséria – eloquentíssima expressão concreta do dogma do pecado original – era sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos céus...

Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental. Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Tomás Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma existência melhor, oriunda da riqueza equitativamente distribuída e dos privilégios extintos, irrompe: num fervor de ditirambos, aos quais não faltam, para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis...

As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco, esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.

Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos demolidores da metafísica triunfante.

Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução, inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida do império.

Os filósofos foram de pronto, suplantados, na agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão. À sólida estrutura mental de um d'Alembert antepôs-se o espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris a deusa da Razão...

De sorte que a última pancada do Antigo Regime – já longamente solapado e prestes a cair por si mesmo – se fez o excesso de energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos “direitos do homem”, um duro individualismo que na ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da Idade Média.

Os direitos do homem... No entanto, a fórmula superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana crescente, exatamente o contrário – os deveres do homem. Mas era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.

E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis...

Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico) ficou em seu lugar – intangível, absoluta e sacratíssima – a propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no texto que forneceu à Convenção.

Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um outro maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a compreender a missão social da propriedade, ávida por dominar na arena livre que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente na epopeia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade militar.

Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício, os princípios de uma distribuição mais equitativa da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade “não era um direito natural, era um direito social”; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint-Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembléias estas palavras singularmente austeras: “Le propriétarie n'est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement la proprieté n'est autre chose que le prix qui lui paye la société pour les distribuitions qu'il est chargé de faire aux autres individus par ses consommations et ses dépenses. Les propriétaires sont les agents, les économes du corps social”.

Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico do socialismo, ninguém as escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do século XIX – quando a filosofia natural já aparelhara o homem para transfigurar a terra - um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso direito: o direito de roubo.

Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou o ascendente industrial, era por si mesma – isolada no campo das suas investigações – inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Louis Blanc.

Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acarretavam antes novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de torná-la perpetuamente insolúvel.

Assim ela chegou até meados do último século – até Karl Marx – pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.

Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.

Não se pode negar a segurança do raciocínio.

De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que “cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução” – põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.

A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre – digamos assim – fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial – o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo – cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente – esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb – quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.

Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:

Socialização dos meios de produção e circulação;

Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio, unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista – de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emílio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda – os mais tranquilos e mais perigosos – como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.

Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas.

Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas – como a barragem contraposta a uma corrente tranquila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. Para consegui-la, basta-lhe erguer a consciência do proletário, e – conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em 1900 – aviventar a arregimentação política e econômica dos trabalhadores.

Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do Primeiro de Maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião à marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços...

Porque o seu triunfo é inevitável.

Garantem-nos as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranquilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração...

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 1º de maio de 1904.

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Defesa apaixonada dos trabalhadores

Por Walnice Nogueira Galvão

Quando publica este artigo, Euclides continua trabalhando como engenheiro de Obras Públicas em São Paulo. Reside em pequenas cidades, enquanto, a cavalo e de trem, circula pelo interior para edificar ou reparar estradas, pontes, cadeias, calçadas.

Em 1904, Euclides já abandonara a profissão de engenheiro de Obras Públicas no estado de São Paulo para trabalhar por alguns meses na Comissão de Saneamento, residindo no Guarujá. Em seguida, vai transferir-se para o Rio de Janeiro, onde doravante prestará serviços ao ministério das Relações Exteriores. Começaria por uma viagem de 18 meses ao Alto Purus, na Amazônia; e, já de volta, passaria a ocupar-se de cartografia. A gestão Rio Branco, tendo à frente o grande estadista, teria papel decisivo na definição do território da República, resolvendo questões de limites com fixação negociada de fronteiras.

A publicação de Os sertões cobrira de glória seu autor, que fora imediatamente eleito tanto para a Academia Brasileira de Letras quanto para o Instituto Histórico e Geográfico. Três edições seriam tiradas no curto período de três anos, algo de excepcional para a época e para tal tipo de livro. Afora sua relevância e beleza, as razões do sucesso emanam da função que o livro exerceu como denúncia da injustiça.

Antes da guerra, era com veemência que todos reivindicavam o extermínio dos conselheiristas, a quem chamavam de “jagunços” e “fanáticos”. Mas depois que a campanha terminou, os ânimos começaram a mudar. As revelações sobre atrocidades produziram uma reviravolta da opinião, que agora, com a mesma veemência, acusava os responsáveis pelo massacre. O termo “genocídio” certamente seria aplicado hoje em circunstâncias semelhantes. Munido das ferramentas da arte literária, Euclides encarregou-se de elaborar e dar forma artística a esse remorso generalizado.

No presente artigo, Euclides, como já fizera com os canudenses, vale-se da oportunidade do Dia do Trabalho (1º. de maio), para mais uma vez tomar o partido dos oprimidos, neste caso o proletariado. O artigo é de fôlego, pois, com vigor e com a costumeira paixão, passa em revista as principais teorias em favor dos trabalhadores, ao longo da História. Disposição semelhante ocuparia sua pena ao testemunhar a penúria em que vivem os seringueiros da Amazônia e a exploração que os subjuga.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1904. Clique para ver no acervo

Entre o Madeira e o Javari

Euclides da Cunha

Não há em todo o Brasil região alguma que tenha tido o vertiginoso progresso daquele remotíssimo trecho da Amazônia, onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas nem a absorvente atividade, meio evangelizadora, meio comercial, dos jesuítas. Ha pouco mais de trinta anos era o deserto. O que dele se conhecia bem pouco adiantava às linhas desanimadoras do padre João Daniel no seu imaginoso Tesouro Descoberto: "Entre o Madeira e o Javari, em distância de mais de 200 léguas, não há povoação alguma nem de brancos nem de tapuias mansos ou missões". O dizer é do século XVIII e podia repetir-se em 1866 na frase de Tavares Bastos: "O Amazonas é uma esperança; deixando as vizinhanças do Pará penetra-se no deserto".

Entretanto, nada explicava o olvido daquele território.

Compreende-se que os próprios norte-americanos tenham reprimido até 1868 a vaga povoadora impetuosíssima que assoberbou a barreira dos Alleghanies e a transmontou, espraiando-se no far west; sopeara-lhe o arremesso a maninhez desalentadora dos terrenos absolutamente estéreis que se desatam a partir das vertentes orientais das Rocky Mountains.

Entre nós, não. As nossas duas maiores linhas de penetração, a de S. Paulo e a do Pará, convergentes ambas em Cuiabá, nortearam-se desde o começo como à procura de empecilhos de toda a ordem.

Os sertanistas que abalaram de Porto Félix à feição do Tietê e do Paraná, para vencerem as águas torrenciais do Pardo até alcançarem pelo Taquari e pelo São Lourenço aquele longínquo objetivo depois de uma navegação de cerca de quatro mil quilômetros - e os que demandavam, a partir de Belém, sempre ao arrepio das águas do Amazonas, do Madeira e do Guaporé, numa travessia de mais de setecentas léguas, iam apostados à luta formidável com os baques das catadupas, com o acachoar das itaipavas, com a monotonia inaturável das varações remoradas, com o choque das correntes e com os torvelinhos dos peraus. Venceram-nos; e o planalto dos Parecis, expressivo divortium aquarum, de onde irradiam caudais para todos os quadrantes, teve, em pleno contraste com este caráter físico dispersivo, uma função histórica unificadora que só será compreendida quando o espírito nacional tiver robustez para escrever a epopéia maravilhosa das Monções.

Entretanto, demoravam-lhes no ocidente paragens que seriam facilmente percorridas sem aquela extraordinária dissipação de esforços.

A queda do maciço brasileiro, irregular e abrupta noutros pontos e originando regimes fluviais perturbadíssimos, que alguns rios, como o Tocantins e o S. Francisco, prolongam quase ao litoral, ali se desafoga na maior expansão em longitude da América do Sul, precisamente na zona em que a viva deflexão dos Andes para o ocidente propiciou uma área à maior bacia hidrográfica da terra. Daí o remansado e o desimpedido dos seus fartos tributários. O Purus e o Juruá são depois do Paraguai e do Amazonas, os rios mais navegáveis do continente. Descidas as vertentes orientais dos últimos contrafortes andinos, onde lhes abrolham as fontes, e repontam as suas únicas cachoeiras, volvem as águas num declive que o mais rigoroso aparelho às vezes não distingue. Ajustam-se à rara uniformidade dos terrenos tão eloquentemente exposta, à mais breve contemplação de um mapa, no paralelismo dos grandes cursos de água que correm entre o Madeira e o Javari, drenando lentamente a região desimpedida que prolonga os plainos bolivianos e onde a natureza equilibrada esconde as opulências de uma flora incomparável nos labirintos dos igarapés...

Mas ninguém a procurou. A metrópole que firmara a posse da terra nas cabeceiras do Rio Branco, do Rio Negro, no Solimões e no Guaporé com as paliçadas e os pedreiros de bronze dos velhos fortes de S. Joaquim, Marabitanas, Tabatinga e Príncipe da Beira – quatro enormes escudos desafiando a rivalidade tradicional da Espanha – evitara por completo (como se recuasse ante a ferocidade, tão fabulada pelos cronistas, dos muros irradios) aqueles longínquos tratos do território – até que no-las desvendassem, em 1851, Castelnau e o tenente da marinha norte-americana F. Maury.

Foi uma revelação. O descobrimento coincidia com uma renascença da atividade nacional. Na imprensa, o robusto espírito prático de Souza Franco aliara-se à inteligência fulgurante de Francisco Otaviano nessa propaganda irresistível pela franquia do Amazonas a todas as bandeiras, a que tanto ampararam o lúcido critério de Agassiz, as pesquisas de Bates, as observações de Brunet e os trabalhos de Souza Coutinho, Costa Azevedo (Ladário) e Soares Pinto, até que ela desfechasse no decreto civilizador de 6 de dezembro de 66.

Tavares Bastos, não lhe bastando, à alma varonil e romântica, o tê-la esclarecido com o fulgor das melhores páginas das Cartas de um solitário, transmudava-se num sertanista genial: perlustrou o grande rio trazendo-nos de lá um livro, O Vale do Amazonas, que é um reflexo virtual da Hylaea e portentosa e é ainda hoje o programa mais avantajado do nosso desenvolvimento. Ora, neste largo expandir de novos horizontes, um explorador tenaz, Chandless, traçou repentinamente a diretriz de um objetivo definido. Levara-o até lá, no trecho onde os grandes rios misturam as suas águas na anastomose das nascentes, o intento de descobrir uma passagem do Acre para o Madre-de-Dios - o velho problema da ligação das bacias do Amazonas e do Paraguai. Não o resolveu. Fez mais: sugestionado pelas maravilhas naturais, transformou-se num pioneiro salteado de ambições e fundou ali o primeiro estabelecimento que fixou o homem à terra; enquanto um mateiro destemeroso, Manoel Urbano da Conceição, um quase anônimo, como o é a grande maioria dos nossos verdadeiros heróis, batia longamente o reticulado inextricável dos furos e, desvendando as nascentes de todos os tributários do Purus, preparava a um outro dominador de desertos, o coronel Rodrigues Labre, grande parte do terreno para um rápido e intensíssimo povoamento.

De feito, foi uma transfiguração. Em pouco, sucessivas vagas de imigrantes reproduziam em nossos dias o tumulto das entradas do século XVIII.

O látex das seringueiras, o cacau, a salsa, a capaíba e toda a espécie de óleos vegetais, substituindo o ouro e os diamantes, alimentavam as mesmas ambições ensofregadas.

A terra, até então entregue às tribos erradias, teve em cerca de dez anos (1887) uma população de 60.000 almas, ligando-se as suas mais remotas paragens de Sepatini e Hyntanaam a Manaus, pela Companhia Fluvial de Amazonas, com um primeiro desenvolvimento de 1.014 milhas, logo depois de distendidas na navegação dos tributários superiores que vão do Ituxi ao Acre. E por fim uma cidade, uma verdadeira cidade, Lábrea, repontou daquela forte convergência de energias trazendo desde o nascer um caráter destoante do de nossos povoados sertanejos - com o requinte progressista de uma imprensa de dois jornais, o Purus e o Labrense, e o luxo suntuário de um teatro concorrido, e colégios, e as ruas calçadas e alinhadas: a molécula integrante da civilização aparecendo, repentinamente, nas vastas solidões selvagens...

Ora, estes sucessos, que formam um dos melhores capítulos da nossa história contemporânea, são, também, o exemplo mais empolgante da aplicação dos princípios transformistas às sociedades. Realmente, o que ali se realizou e está realizando-se, é a seleção natural dos fortes. Para esse investir com o desconhecido não basta o simples anelo das riquezas: requerem-se, sobretudo, uma vontade, uma pertinácia, um destemor estóico e até uma constituição física privilegiada. Aqueles lugares são hoje, no meio dos nossos desfalecimentos, o palco agitadíssimo de um episódio da concorrência vital entre os povos. Alfredo Marc encontrou, nas margens do Juruá, alguns parisienses, autênticos parisienses, trocando os encantos dos bulevares pela exploração trabalhosa de um seringal fartíssimo; e acredita-se que o viajante não exagerou. Lá estão todos os destemerosos convergentes de todos os quadrantes. Mas, sobrepujando-os pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação, e pelo garbo no se afoitarem com os perigos, os admiráveis caboclos do norte que os absorverão, que lhes poderão impor a nossa língua, os nossos usos e, ao cabo, os nossos destinos, estabelecendo naquela dispersão de forças a componente dominante da nossa nacionalidade.

E o que deve acontecer.

Volvendo ao paralelo que, pouco há, indicamos, ao notarmos a súbita parada da expansão norte-americana no far west, levemo-lo às últimas conseqüências.

Por uma circunstância realmente interessante, os ianques, depois de estacionarem largos anos diante das Rochosas, saltaram-nas, vivamente atraídos pelas minas descobertas na Califórnia, precisamente no momento em que nos avantajávamos até ao Acre. O paralelismo das datas é perfeito. No mesmo ano de 1869, em que nos prendíamos por uma companhia fluvial àquelas esquecidas fronteiras, eles se ligavam ao Pacifico pela linha férrea do Missouri, audaciosamente locada nas cordilheiras e nos desertos.

Emparelhamo-nos, neste episódio da vida nacional, com a grande república.

Aceitemos, por isto mesmo, uma lição de Bryce. Traçado magistralmente o quadro da expansão ianque, o historiador nos demonstra que, diante do exagerado afastamento da costa oriental, as gentes localizadas nas novas terras do Pacífico formariam inevitavelmente uma outra nacionalidade, se os recursos da engenharia atual lhes não houvessem permitido uma intimidade permanente com o resto do país.

O nosso caso é idêntico, ou mais sério.

As novas circunscrições do alto Purus, do alto Juruá e do Acre devem refletir a ação persistente do governo em um trabalho de incorporação que, na ordem prática, exige desde já a facilidade das comunicações e a aliança das idéias, de pronto transmitidas e traçadas na inervação vibrante dos telégrafos.

Sem este objetivo firme e permanente, aquela Amazônia onde se opera agora uma seleção natural de energias e diante da qual o espírito de Humboldt foi empolgado pela visão de um deslumbrante palco, onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo, a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa - pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 29 de maio de 1904.

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Um chamado pela ocupação da Amazônia

Por Walnice Nogueira Galvão

Eis Euclides de novo pondo o pé na estrada para uma última aventura: a jornada à Amazônia. Assestando as baterias sobre o objetivo, pediria o empenho de amigos prestigiosos, escreveria artigos e acabaria obtendo a chefia da comissão de exploração do Alto Purus.

Durante os 18 meses em que ficou ausente do Rio, ausentou-se também dos jornais, pois estava às voltas com relatórios constantes, prestando contas ao ministério das Relações Exteriores.

O périplo, contando com duas lanchas e um batelão de mantimentos, percorreria 3.210 quilômetros fluviais a montante, atingindo o Peru, em pouco mais de 6 meses. As peripécias foram inúmeras: os expedicionários sobreviveram a naufrágios, venceram trechos a pé, passaram fome, foram picados por mosquitos e contraíram malária. Mas a iniciativa coroou-se de êxito e a conclusão das negociações, em colaboração com uma contrapartida peruana, marcou um tento para o Brasil. O relatório final receberia do Itamaraty edição interna, com o título de O rio Purus.

Como parte de sua estratégia de candidatura ao posto, Euclides publicara nesta folha algumas matérias, depois recolhidas em livros, sobre os problemas implicados no tema. Contrastes e confrontos, À margem da História (póstumo) e Peru versus Bolívia dão provas de seu grande interesse pela Amazônia, sobre a qual se debruçou nos últimos anos de vida, deixando-nos páginas candentes.

No presente artigo, estabelecendo um paralelo entre os Estados Unidos e o Brasil, Euclides analisa como a marcha para oeste dos norte-americanos, atraídos pelo ouro, evitara a formação de duas nacionalidades. Aqui, as 200 léguas desabitadas entre o Madeira e o Javari tinham sido rapidamente povoadas, graças ao surto da borracha. Se nos Estados Unidos as ferrovias tiveram papel primordial, nas terras pátrias foi a pesquisa da capilaridade entre os vários rios que abriu caminho para as levas de povoadores. E termina conclamando à ocupação da Amazônia, para inclui-la no projeto republicano de integração nacional.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1907. Clique para ver no acervo

Castro Alves e o seu tempo

Euclides da Cunha

(Conferência realizada no “Centro Acadêmico Onze de Agosto”)

Meus jovens compatriotas - No cativante ofício que me dirigistes convidando-me a realizar esta conferência sobre Castro Alves, trai-se a feição preeminente do vosso culto pelo poeta.

"Insigne e extraordinário condoreiro da Bahia", dissestes; e transfigurastes, na fórmula gloriosa de uma consagração, um título não raro irônico, ou derivado dos escrúpulos assombradiços da crítica literária ante o misticismo anômalo do cantor. Por isso mesmo deliberei acompanhar-vos neste rumo; não já por ajustar-me ao vosso nobilíssimo entusiasmo, senão também por facilitar, simplificando-a, a tarefa que me cometestes. Mas observei para logo que a facilidade prefigurada, como efeito do restringimento da tese, era ilusória.

O sonhador, contemplado na fisionomia particular que lhe imprimiu o seu lirismo revolucionário de propagandista fervente das ideias e sentimentos de seu tempo, apareceu-me maior do que abrangido na universalidade dos motivos determinantes das emoções estéticas.

À restrição da sua figura literária correspondeu uma dilatação na história.

O fantasista imaginoso transmudou-se.

Revendo-a, vi o aparecimento, quase inesperado, de uma fase nova na evolução da nossa sociedade.

Mas, para isto, fechei os meus olhos modernos e evitei a traiçoeira ilusão da personalidade, que está no projetar-se o nosso critério atual sobre as tendências, por vezes tão outras, das gentes que passaram.

Fui, deste modo, muito ao arrepio das ideias correntes, fortalecidas ainda há pouco por Guilherme Ferrero, na sua tentativa de deslocar para o estudo da humanidade o princípio das causas atuais, que o gênio de Lyell instituiu para explicar-se a evolução da terra. E não me arrependo de o ter feito. Tenho por impossível conjugar-se a simplicidade das leis físicas com o intrincadíssimo dos fatos morais, submetendo-se à mesma norma de pesquisas o maior e mais simples dos inorganismos e o maior e mais complexo dos organismos. Isto pode determinar curiosas surpresas: por exemplo, a reabilitação de Tibério... Nada mais, porém, além deste triunfo literário; tão flagrantemente ilógico é o transplante de um método inspirado em causas que se eternizam na passividade da matéria, para o perpetuum mobile do sentimento, ou do espírito, sempre a mudar, ou a renascer, sempre mais novo à medida que avulta em séculos, e sempre a transformar-se, ao ponto de se inverterem os impulsos mais enérgicos que presidiram os seus diferentes estádios.

Não preciso mostrar-vo-lo. À parte o quadro do nosso regímen industrial, ou artístico, bastaria referir-me às mudanças profundas da própria ordem moral, que Th. Buckle supôs tão imutável no meio do desenvolvimento das inteligências. E recordar-vos, percorrendo a escala dos móveis de nossos atos, quão díspares eles são, hoje, do que foram: desde as manifestações mais gloriosas das nossas energias às mais tocantes da nossa bondade; - desde o nosso heroísmo, que era ontem a forma mais fácil da coragem a desprender-se da larva da atividade militar, e agora se aparelha a lutas menos ruidosas e mais sérias, até a nossa piedade, que nasceu do íntimo sentimento da nossa fraqueza e vai-se transformando no aspecto mais encantador da nossa força.

Não me delongarei, porém. Tenho um fim neste exórdio imperfeito: prevenir-vos que entre o avaliar os homens e as coisas do passado, como objetos artísticos, através do nosso temperamento, e o vê-los, tanto quanto possível, forros das nossas tendências diversas, prefiro o último caso. Entre o considerá-los, como um geólogo, aplicando as suas regrinhas estratigráficas, indiferentemente, a uma velhíssima camada siluriana e a uma formação recente, prefiro - já que está em moda a canhestra filosofia do adaptarem-se as normas das ciências inferiores às superiores - considerá-los como o astrônomo, respeitando todas as consequências da distância e dos meios interpostos. Assim, quando observamos o sol, sabemos que ele não está no ponto em que o vemos: deslocam-no-lo muitas circunstâncias intermédias. O próprio raio vertical de uma estrela no zênite, que as elimina, é falso: chega-nos no desvio em que se compõe a velocidade do grande observatório telúrico com a da luz. Destarte, a nossa própria visão material é errônea. Envolve-nos uma ilusão tangível. E todo o trabalho das observações mais simples está em eliminarem-se as aparências enganadoras da realidade, por maneira que, ao fim de longos cálculos, possamos ver o que os nossos olhos não mostraram.

Acontece o mesmo contemplando-se o passado. A nossa visão interior alongando-se no tempo, como a exterior ao desatar-se no espaço, é sempre falsa quando se atém só ao que divisa e não atende aos erros oriundos menos do objeto observado que da nossa posição e do meio que nos circula.

Ora, o grande poeta, motivo essencial desta reunião, apesar da diminuta distância que no-lo separa, mais do que nenhum outro retrata, na sua nomeada variável, o contraste dos dois critérios históricos rapidamente bosquejados.

De fato, o seu renome é excepcional e curiosíssimo: todos nós o admiramos até aos nossos vinte e poucos anos; depois o esquecemos. Esquecemo-lo, ou repudiamo-lo. É uma glória que intermite no ritmo das gerações sucessivas. Tem este traço expressivo: adormenta-se, ou restringe-se, no breve curso da nossa vida individual, e prolonga-se sem fim, restaurada de ano a ano, sempre maior, nascendo, ressurgindo e avultando, no nascer, no ressurgir e no avultar na própria sociedade. É como a luz, perpetuamente moça. Não dura a vida de um homem, e é eterna. Exige almas ardentes e a intrepidez varonil da quadra triunfal, em que andamos pela vida na garbosa atitude de quem oferece o molde de sua própria estátua, como obscuros e antecipados grandes homens, vivendo no futuro, para onde nos leva o arrebatamento de todas as esperanças. Não a comporta a alma esmorecida dos velhos, ou o juízo retilíneo do homem feito. Quando não a sentimos mais, imaginamos que ela se extinguiu, como se a noite fosse o apagamento do sol; e não fôramos nós que mergulhássemos, como a terra, na nossa própria sombra, inscientes dos resplendores que na mesma hora estão caindo sobre as outras zonas e sobre as novas gentes. Desta maneira ela vai passando, feita uma herança sagrada das juventudes que se acabam; e, perenemente imóvel no oriente da vida nacional, a refulgir nos mesmos cérebros juvenis, nos mesmos olhos recém-abertos à existência, na mesma idealização ardente dos homens de uma mesma idade, é, de fato, imortal, porque diante dela se verifica uma espécie de imobilidade no tempo...

São compreensíveis os contrastes. De um lado, na quadra em que toda a irreflexão desponta do muito refletirmos o que nos cerca - estão uma larga expansibilidade do sentimento e uma simpatia avassaladora, que corrigem em grande parte os desvios da nossa inexperiência, e nos ampliam a vida, ao ponto de podermos compreender, sem que careçamos discuti-las, as sínteses maravilhosas dos sonhadores. De outro, a nossa inteligência, mais e mais sobrecarregada das impressões que nos rodeiam de perto e chumbando-nos cada vez mais à base objetiva da vida. Turva-se-nos, então, a limpidez espiritual para espelharmos as figuras anômalas desses predestinados, que não podem ser como nós somos, na imensa complexidade que os transforma, por vezes, em índices abreviados de uma época. O nosso culto decai. Distinguimos-lhes defeitos que não notáramos. Vemo-los diminuídos, e temos a ilusão de que eles vão passando e desaparecendo... o vulgaríssimo engano de quem, num trem de ferro, sente-se parado e vê fugirem, disparadas, desaparecendo, as grandes árvores que se aprumam, enraizadas e imóveis, à margem do caminho. Porque não é o poeta que se apequena e passa; é a nossa vida que se desencanta. Estonteia-nos nessa quadra a pior das nossas ilusões: a ilusão de que somos melhores, mais lúcidos, mais práticos, mais sábios. Os quadros da existência não nos dominam mais. Dominamo-los nós. Submetemo-los a uma crítica permanente e cerrada, com as máximas exigências daquilo que chamamos, garbosamente, a nossa personalidade. Sentimo-nos emancipados. Principiamos a construir a ficção de um nome. E não percebemos que algumas vezes, nessa pletora da individualidade, se nos reduz o tipo social, até desaparecer encouchado e comprimido no âmbito estreitíssimo do nosso euzinho, que imaginamos enorme. E lá nos vamos, impando os nossos triunfos e as nossas convicções muito firmes, muito enrilhadas, muito duras, envaidando-se de calçarem os pobres coturnos rasos de uma meia ciência pretensiosa.

Então esse Castro Alves, o "condoreiro", que nos arrebatou aos maiores lances da nossa fantasia, surge-nos monstruoso, paradoxal, quimérico...

É que andamos tão jungidos às tendências adquiridas, que não logramos mais sequer balancear os efeitos das simples diferenças de datas para vermos a imagem do poeta corrigindo o nosso descortino das causas perturbadoras que no-la desviam. E, desdobrando o nosso critério atual sobre um tempo de que nos separam os quarenta anos mais intensos de nossa história, sobressalteiam-nos, por força, grandes despontamentos.

É compreensível. A sua idealização exagerada contrasta demais com o quadro da nossa vida. Na esteira infernal, que o Navio Negreiro abriu sobre o abismo, com a singradura fantástica, navegam hoje os pacíficos transatlânticos, onde se apinham os emigrantes tranquilos, que reclamamos para as lavouras do Oeste. O recife imenso de pedra, "que rasga o peito do mar", está em boa hora submetido aos cálculos e aos desenhos rigorosos de alguns provectos engenheiros a projetarem os melhoramentos do porto de Pernambuco...

E a própria cachoeira de Paulo Afonso

. . . a cachoeira! o abismo!

A briga colossal dos elementos!

. . . . . . . . . . . . . . . . .

Aguentando o ranger (espanto! assombro!)

O rio inteiro, que lhe cai ao ombro!

... a cachoeira de Paulo Afonso em breve terá a sua potência formidável aritmeticamente reduzida a não sei quantos milhões de cavalos vapor; e se transformará em luz para aclarar as cidades; em movimento, abreviando as distâncias, avizinhando os povos e acordando o deserto com os silvos das locomotivas; em fluxo vital para os territórios renascidos, transfundindo-se na inervação vibrátil dos telégrafos; em força inteligente, fazendo descansar um pouco mais o braço proletário; e fazendo-se sentir o espetáculo de uma mecânica ideal, de efeitos a se estenderem pelos mais íntimos recessos da sociedade, no másculo lirismo da humanização de uma cega energia da natureza...

Vede, por aí, como se contrabatem os estímulos modernos e aquele misticismo maravilhoso.

Além disto, o aparecimento de Castro Alves, certo oportuno, como o de todo grande homem, é, em grande parte, inexplicável. Ele não teve precursores na sua feição predominante. Os grandes pensamentos, sociais ou políticos, que agitou não lhe advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes nos agrupamentos que o rodearam. Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época. Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisto: ele os viu antes e melhor do que os seus contemporâneos. Compreende-se que o estranhassem. Sem dúvida, devera ser anômalo o vidente que surgia, de improviso, num estonteamento de miragens, e a proclamar uma regeneração ainda remota, ou a descrever a era nova, que poucos adivinhavam, numa linguagem onde, naturalmente, os mais belos lances de seu lirismo incomparável teriam de golpear-se do abstruso e do impressionismo transcende das profecias...

A este propósito lembram-me alguns conceitos que se exaram numa das conferências de Renan. Li-os cheio de espanto. O adorável pensador pareceu-me, ao primeiro lance, desviado do seu inalterável senso não comum, do seu ceticismo suavíssimo e da sua ironia tranquila. A seu parecer, dizia-o sem rodeios aos que o escutavam, uma raça dá os seus melhores frutos quando desperta de uma dilatada sonolência. As mais belas revelações intelectuais têm sempre um enorme lastro de inconsciência, ou, como acentuava, de vastos reservatórios de ignorância.

E ia por diante na aventurosa tese tão chocante, ou contravinda, às mais vulgares noções da continuidade do progresso, afirmando temer pela humanidade no dia em que a luz atravessasse todas as suas camadas. Por que - inquiria - de onde viriam, então, os sentimentos instintivos, o heroísmo, que é tão essencialmente hereditário, o amor nobre das coisas, que nada tem com as nossas reflexões, e todos esses pensamentos inconscientes de si próprios, que estão em nós sem nós e formam a melhor parte do apanágio de uma nação inteira? Por fim - rematava -, de onde nos viria o gênio, que é quase sempre o resultado de um longo sono anterior das raças?

É, como vedes, paradoxal e inaceitável.

Entretanto, defrontados o nosso poeta e a sociedade de seu tempo, e vendo-o aparecer quando ela, de feito, se afigura despertar de um demorado sono, afeiçoamo-nos, irresistivelmente, à metafísica imaginosa do notável pensador.

É o que nos demonstrará, de maneira evidente, um breve lance de vistas sobre o passado.

* * *

Com efeito, não sei de nenhuma raça que, como a nossa, despertasse nestes tempos, depois de um mais profundo sono, aparelhando-se, à carreira, para alcançar a marcha progressista de outros povos.

Baste-me lembrar-vos que somos o único fato de uma nacionalidade feita por uma teoria política.

Fora longo desviar-me patenteando os elementos originários da afirmativa. Não há prodígios de síntese que nos digam, em poucas palavras, o contraposto da nossa formação étnica, ainda incompleta e em pleno caldeamento de três fatores diversos, e a unidade política estendida em vastíssimas terras, numa inversão flagrante da ordem lógica dos fatos, fazendo que a nossa evolução social passasse adiante da nossa evolução biológica.

Aparecemos quando se cerrava o período medievo, lançando-se os fundamentos da reconstrução de outras sociedades; e nessa ocasião tínhamos três cores e falávamos três línguas, definíamos três estádios evolutivos. Neste estado, sem o mesmo tirocínio secular, prendemo-nos à rota de outras gentes mais experimentadas; e sofremos para logo as consequências da temeridade. Sem uma idade antiga, nem média, fomos compartir os primores da idade moderna; o efeito foi que as nossas idades antiga, média e moderna confundiram-se, interserindo-se dentro das mesmas datas. Há um livro que é simples capítulo desse drama obscuro. A luta de 1897, nos sertões baianos, a despeito de sua data recente, foi um refluxo do passado; o choque da nossa pré-história e da nossa modernidade; uma sociedade a abrir-se nas linhas de menor resistência, e mostrando, em plena luz, as suas camadas profundas irrompendo devastadoramente, a exemplo das massas candentes de piroxeno que irrompem e se derramam por vezes sobre os terrenos modernos, extinguindo a vida e incinerando os primores da flora exuberante.

E foi em nossos dias... Calcule-se como estariam ainda mais desquitados entre si, em 1822, os três grandes agrupamentos...

No entanto, fizemos uma constituição política; isto é, fizemos o que é sempre uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no evoluir das ideias e dos costumes; o que é um passo para o futuro, garantido pela força conservadora do passado; o que é essencialmente tradicional; e o que menos se faz do que se descobre na conciliação de novas aspirações e novas necessidades com os esforços, nunca perdidos, das gerações que nos precedem. Tanto importa dizer que fizemos uma teoria com materiais estranhos, a ressaltar do esforço artístico, ou subjetivo, de uma minoria de eruditos. E assim nascemos sob o hibridismo da monarquia constitucional representativa - quase abstratamente, ou patenteando, pelo menos, o maior exemplo de política experimental tateante que se conhece.

No entanto, realizamos duas conquistas capazes por si sós de constituírem o programa de uma nacionalidade. Fizemos a Abolição e a República. Mas, ainda neste lance, o historiador futuro não encontrará pontos determinantes que lhe bastem ao diagrama de uma evolução.

Realmente, o ideal democrático, bem que o favorecesse a falta de tradições dinásticas, jazeu largo tempo com o único e longínquo ponto de referência da conspiração mineira, alimentando-se da lembrança dolorosa do heroísmo inútil de meia dúzia de poetas e de um soldado. Em 1822 suplantou-o, assim como à ideia abolicionista, apesar da lucidez genial de José Bonifácio, o pensamento preponderante da autonomia política; e no decênio que vai até 1831, nos tumultos que o sulcaram, nota-se mais o antagonismo nativista que o entrebater das correntes republicana e monárquica contrapostas.

Como quer que fosse, o liberalismo triunfante no 7 de abril perdeu as honras da vitória. Entre ele e os reacionários absolutistas, vencidos e desnorteados pela renúncia do primeiro Imperador, interpôs-se um partido que não lutara e chamava-se, curiosamente, liberal-monarquista. Fortalecia-o o caráter neutral entre adversários ainda combalidos do recontro; e harmonizando as conquistas dos triunfadores da véspera com as tendências conservadoras dos vencidos, pôde repelir-lhes por igual os objetivos extremados, anulando, do mesmo passo, com a república prematura o absolutismo revivente. E institui-se a Regência. Não a condenemos. Ela foi o único regulador capaz de uniformizar tantas energias revoltas de tendências disparatadas. A figura de Diogo Feijó, que a domina, domina todo o nosso passado. Tem linhas esculturais, que nunca mais se reproduziram em nossos homens públicos. Que outros admirem os marechais dominadores de rebeldias dentro do círculo de aço dos batalhões fiéis; eu prefiro admirar aquele padre estupendo que com as mãos inermes quebrava as espadas dos regimentos sublevados. Ninguém mais do que ele nobilitou a lei, restaurou a autoridade e dignificou o governo. Mas, diante da sua alma antiga, quebrou-se, totalmente, a vaga de uma revolução. E ele fez o remanso largo do segundo Império...

Com efeito, daí por diante, num período de trinta anos, é escusado perquirir-se o curso da corrente republicana, ou da abolicionista, nas agitações que houve: no extremo sul, a luta separatista desenrolou-se durante dez anos, toda ela local, diante da impassibilidade do resto do país; no extremo norte, as selvatiquezas da "cabanagem" nada mais foram que um sintoma da heterogeneidade étnica há pouco referida. Um outro refluxo do passado. Ao "cabano" sucederiam, no correr dos anos: o "balaio" no Maranhão; o "cangaceiro" em Pernambuco; o "chimango" no Ceará; nomes diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje projetando nas claridades da República o perfil apavorante do "jagunço".

Nas demais agitações, a pesquisa torna-se até contraproducente: na de 42, em S. Paulo e Minas, e na de 48, em Pernambuco, os rebeldes, timbrosos em conclamar a adesão ao trono, arremetem com as tropas imperiais saudando a realeza.

Assim fomos, até que se infiltrasse de todo em nosso organismo político o marasmo monárquico, desenhando-se a época "sem fisionomia", sem emoções e sem crenças" a que se referiu Salles Torres-Homem, na qual esteve tão adormecido o sentimento nacional que não o despertou o próprio brio apisoado quando a civilização nos atirou o insolente ultimatum do bill de Aberdeen e nos rodeou de um verdadeiro cordão sanitário, mandando que os cruzeiros ingleses rondassem as nossas costas, numa azáfama inquieta de patrulhas à roda de um ajuntamento ilícito.

Por fim, se conciliaram as únicas tendências políticas definidas, que agiram em tão largo período, resumindo-se nas divergências desvaliosas dos dois partidos constitucionais - ocupando todo o nosso horizonte político o Marquês do Paraná, simbolizando a plenitude do Império...

Mas o grande estadista separou duas épocas. A própria data, 1859, da sua saída do Governo é expressiva. É a média entre 1831 e 1888-1889. O império e a oligarquia escravocrata, em que ele se esteara, imprudentemente, iriam gastar, apeando-se de seu fastígio, o mesmo número de anos que haviam gastado para adquiri-lo.

Porque em 1860 houve o grande primeiro estalo naquela estrutura artificial. O ideal democrático apareceu, de golpe rejuvenescido, depois de um curso subterrâneo e misterioso. Nas eleições daquele ano o partido liberal levantou três nomes, que se completavam na variação de seus destinos: Francisco Otaviano, um mulato ateniense, romântico e idealista, cantava a volta triunfal das utopias; Teófilo Otoni, impulsivo e rude, seria o detonador das expansões populares adormidas; e, maior do que ambos, Saldanha Marinho destinava-se a um longo itinerário. Eram os batedores da era nova que chegava. O ideal irradiava. Nas Câmaras, um novo partido, com o nome sugestivo de "progressista", entalhava a ortodoxia monárquica, a despeito do caráter sacratíssimo que lhe dava a santíssima trindade conservadora de Eusébio de Queiróz, Itaboraí e Uruguai. Na imprensa, a Actualidade, de Pedro Luís, Flávio Farnese e desse Lafaiete Rodrigues Pereira, que ainda refulge no cimo de uma velhice majestosa, agitava um ultraliberalismo visando conclusões extremas. No próprio Senado, Nabuco - um nome que é um patrimônio nacional - aproveitava o incidente da inauguração da estátua de D. Pedro I para afirmar que ela traduzia antes a paga de serviços prestados do que a glorificação de um reinado. E na própria ordem estética, até então ocupada pela grandeza castiça e impecável de Gonçalves Dias, ou pela musa espartilhada de Maciel Monteiro, passaram, abalando-a, num longo ruído de terremoto longínquo, os alexandrinos da Mentira de bronze... Por fim, nas praças, o espírito público desatava-se em rebeldias desde muito deslembradas, a propósito dos mínimos incidentes.

Foi o que sucedeu em 1863, por ocasião dos salvados da barca Prince of Wales, e subsecutivas represálias da fragata inglesa Forth.

Amotinou-se a multidão no Rio. Tomou-lhe a frente Teófilo Otoni. Um protesto violento arrebentou junto do trono: e o Ministério daquele Marquês de Olinda, que era, de fato, uma espécie de vice-imperador, o "ministério dos velhos", num triste apagamento de sombras, as últimas sombras do passado, extinguiu-se, sulcado pela palavra de fogo de um tribuno...

* * *

Ora, por aquele mesmo tempo, no mesmo ano, uma voz mais alta, mais nova e mais dominadora se alevantou ao norte. E tinha um ritmo, como o têm todas as forças criadoras da natureza. As energias sociais renascentes, nos vários aspectos que iam da ideia republicana ao sentimento abolicionista, apareciam, afinal, como soem sempre aparecer as grandes aspirações sociais: imaginosas e vastas, a nascerem do vago e do impreciso das utopias - que recordam na ordem espiritual o vago e o amorfo das nebulosas de onde nascem os mundos - vibrando nas rimas soberanas de um poeta. A ressurreição do espírito nacional completava-se, consoante a norma lobrigada pela intuição do filósofo: depois de um longo, de um profundo sono. Aparecia o homem que mais que todos lhe imprimiria a energia inicial das emoções estéticas, sempre indispensáveis aos grandes acometimentos. Porque naquela palavra nova, por um milagre de síntese que a nossa afetividade às vezes efetua, suplantando as maiores generalizações científicas, conchavaram-se, de chofre, as grandes esperanças do futuro e os graves compromissos do passado. Refundiram-se os elos partidos e esparsos das nossas tradições: o cantor do Livro e a América seria o mesmo idealista das Vozes d'África, que eram a própria voz de uma raça inteira condenada, ressurgindo e ressoando nestes tempos, depois de três longos séculos silenciosos...

Não nos retardemos em palavras armadas a mostrarem que nenhum dos nossos poetas foi, tanto quanto Castro Alves, ainda mais oportuno, nascendo com o renascimento da sua terra. Os sucessos sumariados dizem-no-lo por si mesmos. Está nesta circunstância a sua maior grandeza.

O que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com as energias misteriosas da humanidade; e não sei de quem, como ele, entre nós, naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo, revivente, estimulando-o e aformoseando-o.

Se prolongássemos a pálida resenha histórica anteriormente delineada, veríamos que aquele decênio de 1860-1870, em que tivemos até o diversivo espetaculoso de uma guerra externa, foi, entre todos, o mais decisivo para os nossos destinos. E quando chegássemos ao ministério do Visconde do Rio Branco, que lhe prolongou as novas tendências renascidas até 1875 e, virtualmente, até quase aos nossos dias, constituindo-se o mais longo e fecundo dos governos parciais do império, não nos admiraríamos que o lúcido estadista houvesse de ser, a um tempo, demolidor e reconstrutor: de um lado, dirigindo o primeiro assalto contra a escravidão; entalhando, fundo, a ortodoxia católica e eliminando a justiça reacionária do código russo de 1841; de outro lado, normalizando as atividades; aviventando o desenvolvimento econômico; nivelando-nos à ciência contemporânea com a reforma das escolas; golpeando o deserto com as estradas de ferro de penetração e dando à unificação de nossas ideias, tão enfraquecida pelo espalharem-se em território vastíssimo, a base prática dos telégrafos, que irradiaram pelas províncias, enfeixando-se no Rio de Janeiro, onde, em 1874, o primeiro cabo submarino, atravessando o Atlântico, nos permitiu contar os mesmos minutos que a civilização.

Porém, desviar-nos-íamos sobremaneira firmando o travamento complicado, que prende às fantasias, tão na aparência subjetivas, de um poeta a essas admiráveis transformações, que se lhe figuram tão estranhas ou contrapostas.

Nem direi de sua influência na geração de moços, seus contemporâneos, que ele transfigurou e dirigiu, libertando-a das prosaicas epopeias caboclas de Magalhães, ou Porto Alegre, do cândido erotismo do Amor e medo, ou do esplêndido romantismo exótico de Álvares de Azevedo e seus epígonos.

Prefiro, adstrinto à observação pessoal, apontar-vos a sua influência na minha geração, que está envelhecendo, já pelos anos, já porque nenhuma mocidade foi, como ela, tão brutalmente jogada de uma academia para os planos de fogo das trincheiras, sofrendo as consequências das loucuras de alguns velhos.

Falo por mim. Eu fui um obscuro e pertinaz estudante de matemática. Quer dizer: precisamente quando mais adorável se nos mostra o quadro desta vida, e o seu vigor desponta da mesma ansiedade de viver, tive que contemplar o universo vazio e parado - apagadas todas as luzes, extintos todos os ruídos, desaparecidas todas as coisas, desaparecida a própria matéria - de sorte que nessa abstração, a aproximar-nos do caos, permaneçam, como atrativos únicos, a forma, nos seus aspectos irredutíveis, e o número e sinais completamente inexpressivos. Pois bem; folheando, há pouco, os meus velhos cadernos de cálculo transcendente, onde se traçam as integrais secas e recurvas ao modo de caricaturas malfeitas, de esfinges, e onde o infinito, tão arrebatador no seu significado imaginoso, ou metafísico, se desenha, secamente, com um oito deitado, um número que se abate, desenhando, de uma maneira visível, a fraqueza da nossa inteligência, a girar e a regirar numa tortura de encarcerada, pelas voltas sem princípio e sem fim daquele triste símbolo decaído - deletreando aquelas páginas, salteiam-me singularíssimas surpresas.

Aqui, num breve espaço em branco, na trama dos riscos de uma coisa que se chama equações binômias, e nunca mais vemos na vida prática, fulgura, iluminando a folha toda:

República! voo ousado

Do homem feito condor...

além, enleada de sinais, de alfas e de gamas cabalísticos, divisa-se

A catapulta humana - a voz de Mirabeau!

mais longe, seguindo um ramo de parábola, no seu arremesso eterno para o infinito, estira-se

O trilho que Colombo abriu nas águas

Como um íris no pélago profundo!

Assim nos andávamos nós naqueles bons tempos: pela positividade em fora, e a tatear no sonho...

É que Castro Alves não era apenas o batedor avantajado dos pensamentos de seu tempo. Há no seu gênio muita coisa do gênio obscuro da nossa raça.

Aos que lhe denunciam nos versos a influcácia preponderante de Victor Hugo esquece-lhes sempre que ela existiu sobretudo por uma identidade de estímulos. Não foi o velho genial quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem, entre nós, uma impulsividade e um desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos.

Somos uma raça em ser. Estamos ainda na instabilidade característica das combinações incompletas.

E nesses desequilíbrios inevitáveis, o que desponta na nossa palavra - irresistivelmente ampliada - parece-me, às vezes, ser o instinto, ou a intuição subconsciente, de uma grandeza futura incomparável.

Eu poderia recitar-vos um sem número de trovas sertanejas, onde as metáforas e as alegorias, e até as antíteses, se acumulam, alguma vez belíssimas, e detonam e fulguram, sempre a delatarem uma amplificação, o eterno aspirar por um engrandecimento e uma afetividade indefinidamente avassaladora e crescente.

E não só nas quadras, em que os bardos roceiros têm o estimulante dos desafios recíprocos, senão na trivialidade do falar comum, exprimindo os atos mais vulgares, desde o nosso “caipira”, que, ao procurar em qualquer cômodo exíguo um objeto, nos diz, num largo gesto, que está campeando, como se o rodeassem os sem-fins dos horizontes vastos; até ao cabra desbocado do norte, que, ao relatar o incidente costumeiro da dispersão de uma ponta de gado na caatinga, brada, estrepitosamente, que “o boiadão estourou num despotismo ribombando no mundo...”

A par disto, a reação natural das apatias, inventando-se a modinha para embalar a tristeza e a preguiça dos matutos. Não vo-las descreverei, redizendo-me. Fora enlearmo-nos todos, sem efeito compensador, na trama inextricável das raízes gregas dos presunçosos neologismos etnológicos. Exponho-vos o que coligi de observações diretas. Por uma felicidade rara, calcei, há muito, umas velozes "botas de sete léguas" que me tornaram arredio das cidades, perdido e errante no meio dos nossos simples patrícios ignorados. Conheço-os de perto. Vi-os na quietude de suas vidas primitivas. Vi-os na batalha. Atravessei com eles belos dias de lutas heroicas e sem glória nas campanhas formidáveis e obscuras do deserto. E sempre os vi num oscilar enorme, entre as suas tendências contrapostas, exageradas todas.

E quando releio o lírico suavíssimo da Volta da Primavera, da Adormecida, desse surpreendente poema de duas páginas, O Hóspede, e dos Murmúrios da tarde, ou do Gondoleiro do Amor - que é o próprio vidente arrebatado da Ode ao Dois de Julho, das décimas que imortalizaram Pedro Ivo, da Deusa Incruenta, ou do Coup d'étrier, e vou, de um salto, das páginas por onde os versos vão derivando, docemente,

como as plantas que arrasta a correnteza,

para as rimas furiosas, que se entrebatem e estalam e estrepitam

com o estampido estupendo das queimadas!

Penso que Castro Alves foi também altamente representativo da nossa raça.

Por isso mesmo não teve medida, conforme nos ensinaria qualquer crítico reportado e sabedor...

E não podia tê-la, porque nunca se isolou de seu meio. De ordinário, quando se trata da vida exterior de Castro Alves, episodiam-se, longamente, os seus triunfos nos salões, ou nos teatros da época, onde lhe brilhava a beleza varonil realçada pela glória nascente. Ou então a rivalidade boêmia com aquele extraordinário Tobias Barreto, que, sendo mestiço, se tornaria mais brasileiro do que o poeta baiano se a sua magnífica alma tropical não resfriasse sob as duchas enregeladas de quatro ou cinco filosofias da Alemanha.

E agitam-se, então, algumas anedotas inexpressivas e graciosas, em que se entrouxam as saias de Eugênia Câmara e a túnica da mulher de Putifar. Não nos percamos por aí.

Há outras mais acomodadas ao nosso intento. Conta-no-las o Dr. Regueira Costa - que para felicidade minha acertei de encontrar numa das escalas desta vida errante, quando passei em Recife, e cujo belíssimo coração é todo ele um relicário guardando a memória saudosa do poeta, de quem foi extremosíssimo amigo. Dele só colho que Castro Alves não engenhava o melhor de suas apóstrofes revolucionárias na placidez de um gabinete de trabalho. Agia com todo o ardor de que é capaz um propagandista. Assim, foi o fundador de uma das primeiras sociedades abolicionistas que houve no Brasil, reunindo, em 1866, na cidade do Recife, em torno do programa libertador, a maioria dos estudantes da Faculdade de Direito, onde se destacavam Augusto Guimarães, Plínio de Lima e um predestinado, Rui Barbosa.

As décimas fulminantes nem sempre as concebia no cauteloso encerro de certos demiurgos, que abalam tronos, desconjuntam sólios, aluem instituições, viram sociedades pelo avesso, alarmam a polícia e põem o Universo em polvorosa, manipulando os raios de seus pontos de admiração e suas tempestades de sílabas, muito pacificamente engrimponados num tamborete alto, de bruços na secretária bem arrumada. Saltaram-lhe, muita vez, de improviso, num ângulo de esquina, num centro de praça, num camarote de teatro, ou no balcão de uma janela repentinamente aberta, enquadrando-lhe de improviso a formosa figura de girondino diante da multidão revolta e fascinada. E na grande maioria se perderam. Apaziguado o tumulto, os que lhas haviam escutado e aplaudido mal conservavam raros versos, os mais impressionantes, longamente esparsos com estilhas de granadas.

Mas, nota-se a circunstância: recolhiam-se e rememoravam-se os mais vivos, digamos melhor, os mais gongóricos, ou "condoreiros", vibrados com energia tal que os estampasse para sempre na própria rudeza do espírito popular. Assim, no final de uma conferência republicana que houve, por volta de 1867, na capital de Pernambuco, quando o povo se espalhava, desparzido a patas de cavalo, o poeta procurou sobrestar as cargas policiais vibrando rimas violentas, que principiavam:

A praça, a praça é do povo

Como o céu é do condor!

.............................................

Vede como aí o revolucionário sacrificou o lírico. Tais versos fá-los-ia um qualquer improvisador sertanejo, qualquer dos nossos caipiras, ou piraquara do litoral, ou capixaba espírito-santense, ou tabaréu baiano, ou guasca largado do Rio Grande, com o só excluir-se daquele condor, que nenhum deles viu, nem verá.

Entretanto, embora não se encontrem nos livros do poeta, ficaram.

Porque a ele não lhe bastava o haver deslocado para a sua pátria os elevados pensamentos políticos do tempo; senão que os apresentava com um fino tato de propagandista, de modo a gravá-los, incisivamente, para sempre, na alma da multidão.

E aquele abnegar-se a si próprio, aquele abdicar de si todas as vantagens de um cômodo isolamento para ir sofrer de perto o contágio da índole ainda revolta, ou desequilibrada, da sua raça; aquele tornar-se, porque assim o digamos, intérprete, entre os maiores ideais de toda a cultura humana e a consciência nascente de seu país - contribuíram, notavelmente, a que se criasse a nota exagerativa dos versos que determinaram o seu maior renome, apagando-se, ou empalidecendo, a maioria de outras criações, porventura mais valiosas, do seu lirismo admirável.

É que somos, ainda, sobre todos os outros, o povo das esplêndidas frases golpeantes, das imagens e dos símbolos.

Não indaguemos se isto é um bem ou um mal. Talvez um mal.

Há um lance que se irmanam o espírito apercebido para as maiores generalizações e o senso mais comum e terra-a-terra. Nele se dão os braços o filósofo complicado e o burguês simplesmente cauteloso e solerte: Augusto Comte e Simão de Nântua. É o que nos diz que, nesta vida, em qualquer dos rumos percorridos, quer nas investigações da ciência, quer na contemplação artística, quer nos inumeráveis aspectos da ordem prática, devemos submeter a nossa imaginação à nossa observação, porém de modo que esta não anule aquela: isto é, que os fatos, reunidos pela ciência, não se agreguem numa pesada e árida erudição, e só nos tenham a valia que se derive de suas leis; que os modelos ou objetos do nosso descortino artístico não se submetam em tanta maneira à ordem material que nos extingam o sentimento profundo da natureza, apequenando-nos num raso realismo; e que as exigências utilitárias da vida prática, o vencer com os recursos que vão, a subir, desde a riqueza até ao talento, não rematem fechando-nos o coração e exsicando-nos o espírito, deixando-no-los sem as fontes inspiradoras da nossa afetividade e das nossas fantasias.

Nem místicos, nem empíricos.

Ora, das palavras anteriores pode inferir-se o conceito de que nos andamos ainda muito abeirados do misticismo, fora da mediana norteadora entre a existência especulativa e a existência ativa. A emoção espontânea ainda nos suplanta o juízo refletido. Somos uma raça romântica. Mas romântica no melhor sentido desta palavra proteiforme, que é definida de mil modos e ajusta-se às incontáveis nuanças do sentir humano, de sorte a passar-se dos lenços encharcados de lágrimas, de não sei quantos deliqüescentes prantivos, para a ironia lampejante das páginas de Henrique Heine.

Romântica no significado heroico de uma crença exagerada em nossas faculdades criadoras, a despontar da consciência instintiva de nosso gênio, que nos arrebata sobre as barreiras da razão teórica, fazendo que falsifiquemos a realidade para torná-la maior, glorificando-a.

E, sendo assim, o que seria um mal, como feição definitiva de nosso caráter, pode ser um bem na fase transitória que estamos ultimando.

Porque assim nasceram e se embalaram nos primeiros dias todas as nações estáveis, com uma missão definida no destino geral da humanidade.

Ora, o romantismo, no sentido superiormente filosófico, traduzindo as máximas temeridades dos espíritos no afeiçoarem o próprio mundo exterior a um vasto subjetivismo - nasceu na Alemanha. Ora, a Alemanha é hoje o modelo impecável de uma nação prática e fecunda, utilitária e mais que todas aparelhada de lúcida compreensão dos melhores recursos que nos oferece a ordem objetiva: o seu comércio bate nesta hora nos mares o primado tradicional do comércio inglês; e a sua indústria, desde a rude indústria das minas à indústria química e às maravilhas da eletricidade, abriu à força, arrombando-as, as portas de todos os mercados.

Pois bem, esta Alemanha, que nos assusta mais com as suas usinas que com as suas casernas, nasceu de um sonho.

Há na história um homem que reduz Bismarck: é Fichte.

O rígido e ríspido chanceler, irrompendo, nestes dias, feito um retardatário; com o seu tremendo tradicionalismo feudal e as suas formas governamentais curtas, secas e rijas como pranchadas; e a sua irritante glorificação da força física; e a sua pasmosa curteza intelectual, tão restrita que nunca logrou resolver um só dos árduos problemas que se lhe antolharam sem o confiar à fortuna traiçoeira das batalhas - era diminuto demais para construir um povo.

Acima da unidade política germânica, desenhada, nas cartas do estado-maior prussiano, existe uma coisa mais alta - a unidade moral da Alemanha. E esta, certo, não a encontrareis nas sangueiras de Sadowa e de Sedan. Vem de mais longe. Desponta toda ela de uma expressão dúbia, cheia de mistérios, que se chamou "idealismo transcendente", e era a elaboração imaginosa e estranha de uma filosofia natural sem a natureza, a harmonia do consciente e do inconsciente, o desatar-se indefinido dos espíritos ante a emoção vaga e maravilhosa do infinito...

Por aqueles tempos aparecia um homem a propagar um exagero que faria sorrir o mais acanhado crítico de agora: a soberania absoluta da arte. Era Frederico Schlegel. Para ele, a inspiração romântica era sem termos: nada poderia existir acima da fantasia arbitrária do poeta.

E foi à luz desse idealizar incomparável que se eliminou o pernicioso cosmopolitismo de um país até aquela quadra sem fisionomia, feito um acervo incoerente de ducados - orientando-se a correntes tradicionalistas e erigindo-se, com o patriotismo, um espírito nacional.

Não vo-lo direi como. Nem há quem no-lo explique bem.

Na própria matéria, tão mais simples, tão passiva às nossas experiências, tão a toda hora sujeita aos nossos arbítrios, por maneira que até no bronze podemos estampar para sempre um pouco da nossa alma, ou um traço imperecível dos nossos erros, na própria matéria nos sobressalteia o mistério. O mais frio, o mais arguto, o químico mais pertinaz, ao cabo de cinquenta anos de laboratório, entre reativos e retortas, não nos explica o que ele chama força catalítica; nem nos diz por que motivo vários corpos, que permanecem sempre indiferentes uns aos outros, por mais que se misturem e sobre eles reajam todos os agentes físicos mais demorados e fixos - só se combinam, de pancada, numa explosão, à passagem instantânea de um simples raio de luz...

Assim vai passando, talvez, pelas camadas humanas a irradiação miraculosa da alma dos poetas; assim passou, talvez, pelas camadas profundas da nossa “gens” complexa a idealização transfiguradora do nosso extraordinário sonhador.

* * *

Senhores. Temos mudado muito. Partiu-se nos últimos tempos o sequestro secular, que nos tornava apenas espectadores da civilização. A nossa política exterior conjugou-se com a internacional. O descortino dilatado de um estadista, depois de engrandecer-nos no espaço, engrandeceu-nos no tempo. Na última conferência de Haia o Velho Mundo escutou, surpreendido, uma palavra de excepcional altitude.

Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da humanidade.

E, se isto suceder, se não for uma miragem esta visão do futuro; se chegarem, de fato, os novos tempos que se anunciam, em que nos tornaremos mais solidários com a evolução geral, dando-lhe o melhor da nossa afetividade originária e a fortaleza vivificante do nosso idealismo nativo - então a modestíssima "herma", alevantada ao mais intrépido dos nossos pioneiros do ideal, germinará estátuas. porque há de avultar, maior, no rejuvenescimento da nossa terra, como avulta nas nossas almas de moços a figura escultural do poeta, que deveis admirar sempre, como hoje o admirais, quaisquer que sejam os vossos desapontamentos futuros inevitáveis, ou os rigorismos da vossa existência prática, porque esta admiração exige que se conservem despertos todos os elementos que, em geral, se nos vão a pouco e pouco amortecendo no fundo do nosso espírito trabalhado; e é quase um meio de enganar-se o tempo e manter-se, longamente, a mocidade.

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 03 de dezembro de 1907.

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Afinidades eletivas no plano literário

Por Walnice Nogueira Galvão

Os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, acertaram em cheio nas afinidades literárias quando convidaram Euclides da Cunha para proferir uma conferência sobre o “Poeta dos Escravos”. O preito a uma de suas maiores admirações redobraria quando nosso escritor tomasse posse na Academia Brasileira de Letras, e justamente na cadeira que tinha o baiano por patrono.

Sobre Euclides e Castro Alves projeta-se a sombra daquele que foi o poeta romântico por excelência, Victor Hugo. Os dois brasileiros miravam-se no exemplo de sua trajetória de bardo heróico e libertário, campeão dos oprimidos, que olha a História nos olhos e não se acovarda. Desafiando os poderosos, o francês seria banido por suas convicções em favor da plebe e viveria no exílio durante 20 anos.

Na esteira do historiador Michelet, primeiro a postular o povo como agente da história - e não mais os indivíduos, sejam eles reis, líderes, heróis -, Victor Hugo dera primazia à personagem coletiva popular. Seria venerado e imitado entre nós, inspirando o “condoreirismo”, versão americana da águia européia formulada como emblema de elevação.

Se a grande causa humanitária de Victor Hugo foi a dos revolucionários de 1848 e da Comuna de Paris, a de Castro Alves seria a dos escravos, enquanto Euclides se voltaria para os sertanejos e os seringueiros. Os três assemelham-se na concepção do artista como vate inspirado, arauto e profeta, anunciador do futuro e cantor da liberdade.

Convergiriam em oratória grandiloquente e metáforas titânicas, bem como no uso de antíteses, apóstrofes e invectivas. A imaginação cósmica fez de Castro Alves uma testemunha da “marcha dos séculos”, com visões dos “oceanos em tropa” e de protagonistas que “tropeçam na eternidade”. Tanto nele quanto em Euclides ressaltam o gosto da antítese e de seus contrastes, valendo-se dos valores simbólicos da oposição entre luz (liberdade, emancipação, idealismo) e trevas (servidão, ignorância, opressão). Hugoano e castroalvino, Euclides amiúde receberia o sinete do primeiro já afeiçoado pelo segundo.

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Fac-símile do artigo de Euclides da Cunha em página publicada em 1909. Clique para ver no acervo

O valor de um símbolo

Euclides da Cunha

Há dois anos, num entardecer de julho, eu chegava, com os restos de uma comissão exploradora, à foz do Cavaljani, último esgalho do Purus, distante 3.200 quilômetros da confluência deste último no Amazonas; e tão perdido naquelas solidões empantanadas que nenhuma carta o revelava.

Éramos nove apenas: eu, um auxiliar dedicadíssimo, o dr. Arnaldo da Cunha, um sargento, um soldado e cinco representantes de todas as cores reunidos, ao acaso em Manaus.

E ali chegáramos absolutamente sucumbidos. A nossa comissão dispersara-se, coagida pelas circunstâncias: naufragáramos em caminho; e os salvados da catástrofe mal bastariam àquele reduzido grupo de temerários. De sorte que ao atingirmos aquela estância remota já nos íamos, há dias, num terrível quarto de ração, de restos de carne-seca e restos de farinha que eram o nosso desespero e a nossa única salvação, sem nenhum outro gênero atenuando-nos a dieta inaturável.

Para maior desdita os empecilhos à marcha cresciam com o avançamento; maiores à medida que diminuíam os recursos. O rio, cada vez mais raso, quase estagnado nos estirões areentos, ou acachoando em corredeiras intermináveis, requeria trabalhos crescentes e verdadeiros sacrifícios.

Já não se navegava, as duas pesadas canoas de itauba iam num arrastamento a pulso, como se fossem por terra; e os remos, ou os varejões transformavam-se em alavancas, numerosíssimas vezes, para a travessia dos trechos mais difíceis. Ao descer das noites, os homens, que labutavam todo o dia, metidos na água, sem um trago de aguardente, ou de café, que lhes mitigasse aquele regime bruto, acampavam soturnamente. Mal se armavam as barracas. Na antemanhã seguinte, cambaleantes e trôpegos – porque as areias do rio navalhando-lhes a epiderme punham-lhes os pés em chagas – retravavam, desesperadamente, a luta da subida do rio que não se acabava mais, tão extenso, tão monótono, tão sempre mesmo, na invariabilidade de suas margens, que tínhamos a ilusão de nos andarmos numa viagem circular; abarracávamos; descampávamos; e ao fim de dez horas de castigo parecíamos voltar à mesma praia, de onde partíramos, numa penitência interminável e rude...

Contrastando com esta desventura, a comissão peruana, que acompanhávamos, estava íntegra, bem abastecida, robusta. Não sofrera o transe de um naufrágio, eram vinte e três homens válidos, dirigidos por um chefe de excepcional valor.

Assim todas as noites, naquelas praias longínquas, havia este contraste: de um lado, um abarracamento minúsculo e mudo, todo afogado na treva; de outro, afastado apenas cinquenta metros, um acampamento iluminado e ruidoso, onde ressoavam os cantos dos desempenados cholos loretanos.

A separação entre os dois era completa. As relações quase nulas: a altaneria castelhana, herdada pelos nossos galhardos vizinhos, surpreendia-se ante uma outra, mais heroica, do exíguo acampamento miserando, altivamente retraído na sua penúria e tenebroso em ultimar a sua empresa, como a efetuou, sem dever o mínimo, ou mais justificável auxílio, ao estrangeiro que se lhe associara.

Mas ao chegar naquela tarde à foz do Cavaljani, considerei a empresa perdida. Palavras soltas, de irreprimível desânimo, e até apóstrofes mal contidas, de desesperados, fizeram-me compreender que ao outro dia só haveria um movimento, o da volta vertiginosa, rolando pelos estirões e cachoeiras que tanto nos custaram vencer, acabando-se os nossos esforços numa fuga.

Os meus bravos companheiros rendiam-se aos reveses. Atravessei, em claro, a noite.

Na manhã seguinte procurei-os na tentativa impossível de os convencer de mais um sacrifício.

Acocoravam-se à roda de uma fogueira meio extinta; e receberam-me sem se levantarem, com a imunidade de seu próprio infortúnio.

Dois tiritavam de febre.

Falei-lhes. A honra, o dever, a pátria e outras magníficas palavras ressoaram longamente, monotonamente.

Inúteis. Permaneceram impassíveis.

Quedei-me, inerte, em uma tristeza exasperada.

E como a aumentá-la, notei, dali mesmo, voltando-me para a direita, que os peruanos se aprestavam à partida.

Desarmavam-se as barracas; reconduziam-se para as ubás ligeiras os fardos retirados na véspera. Em pouco, os remos e as tanganas compridas, alteados pelos remeiros, fisgavam vivamente os ares...

E atravessando pelos grupos agitados, um sargento – passo grave e solene, como se estivesse em uma praça pública, à frente de uma formatura – cortou perpendicularmente a praia, em rumo à canoa do chefe, tendo ao braço direito, perfilada, a bandeira peruana, que deveria içar-se à popa da embarcação.

De fato, em chegando, hasteou-a. Passava um sudoeste rijo. O belo pavilhão vermelho e branco desenrolou-se logo, todo estirado, ruflando...

E acudiu-me a ideia de apontar aquele contraste aos companheiros abatidos. Mas ao voltar-me não os reconheci. Todos de pé. A simples imagem do estandarte estrangeiro, erguido triunfal, como a desafiá-los, galvanizara-os. Num lance, sem uma ordem, precipitaram-se os aprestos da partida. Em segundos, a nossa bandeira, que jazia, enrolada, em terra, aprumou-se por seu turno em uma das canoas, patenteando-nos aos olhos as promessas divinas da esperança!

E partimos, retravando, desesperadamente, o duelo formidável com o deserto...

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Publicado originalmente no jornal “O Estado de S.Paulo” em 16 de agosto de 1909.

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No último artigo, os percalços amazônicos

Por Walnice Nogueira Galvão

Os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, acertaram em cheio nas afinidades literárias quando convidaram Euclides da Cunha para proferir uma conferência sobre o “Poeta dos Escravos”. O preito a uma de suas maiores admirações redobraria quando nosso escritor tomasse posse na Academia Brasileira de Letras, e justamente na cadeira que tinha o baiano por patrono.

Em 15 agosto de 1909, na véspera deste artigo, Euclides tombava morto, aos 43 anos.

Ao regressar ao Rio de Janeiro depois dos 13 meses de ausência absorvidos pela expedição ao Alto Purus, encontrara sua esposa grávida do cadete Dilermando de Assis. Entre marchas e contramarchas, a intriga se arrastaria por bom tempo. Até que, reagindo ao abandono em que D. Saninha o deixara, Euclides, com um revólver na mão, decide buscá-la. Entrou na casa de Dilermando disparando, antes de cair baleado. Seu adversário, preso e mais tarde julgado, seria absolvido por legítima defesa.

A consternação do país foi geral, ante a perda de um de seus mais ilustres cidadãos.

O jornal que o considerava prata da casa prestou-lhe a homenagem de estampar este último artigo, entremeado ao necrológio e às notícias das circunstâncias que presidiram a seu inesperado falecimento.

Mas não se restringiria a uma única homenagem. Ao longo do século que decorreria a seguir, de muitas maneiras esta folha honraria a memória daquele que era um dos seus, procedendo a análises e solicitando testemunhos. Entre estes, ressalta a transcrição da longa conferência pronunciada por Oliveira Lima em 1911, recheada de fragmentos epistolares da maior relevância, em que o diplomata celebrava a amizade que os unira. Volta e meia, o jornal divulgaria cartas e reimprimiria artigos de Euclides. Assinalam-se comemorações mais amplas, com estudos de intelectuais de peso e figuras públicas, especialmente nos jubileus de 25, 50, 75 e agora 100 anos. Foi-se constituindo um acervo de vulto, o qual, agregando-se às numerosas colaborações do escritor desde que estreara aos 22 anos, veio a erigir o arquivo deste jornal em etapa iniciática para qualquer pesquisador.

O presente artigo é uma reminiscência daquilo que fora uma das maiores aventuras de Euclides, que aqui passa em revista os percalços da jornada à Amazônia. Como tudo o que vem de sua pena, a lembrança revela o vigor da evocação literária. Neste último texto, temos um vislumbre em primeira mão daquilo que foi um dos lances cruciais tanto de sua existência quanto de suas andanças.

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