A última viagem

Aventura pela Amazônia foi parte final de odisseia


Leonencio Nossa Plano de mostrar mundo desconhecido nos grandes centros começou no sertão baiano; morte abrupta interrompeu sonho de escrever nova obra de fôlego

No final da vida, Euclides da Cunha era um homem angustiado, na faixa etária dos 40, que não conseguia mais conviver com as pessoas na cidade e se achava um peixe-elétrico. Sua sensação, uma cena de literatura fantástica, aprofundou-se após viagem de cerca de um ano pelas selvas do Brasil e do Peru. "Sinto-me admiravelmente com o desquerer de tal gente e agrada-me um isolamento, que é como o do 'poraquê', cheio de descarga elétrica entre moluscos amazônicos", escreveu.

A navegação pelos rios e as caminhadas pelos varadouros da floresta, entre dezembro de 1904 e novembro do ano seguinte, marcaram a alma e o físico do escritor. Ao voltar ao Rio de Janeiro, há exatos 110 anos, em janeiro de 1906, ele estava fragilizado pela malária. A experiência amazônica - a febre, os delírios e as vertigens - alterou não só o corpo, mas suas pretensões literárias. O projeto de um livro sobre a selva deixava de ser um sonho de um intelectual tímido para virar a certeza de uma grande obra. "Se o fizer como imagino, hei de ser (...) para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre os homens."

Euclides decidiu viajar para a Amazônia no momento em que a imprensa noticiava o clima de tensão entre Brasil, Bolívia e Peru pelos limites territoriais e as lutas sangrentas entre seringalistas. O escritor desfrutava o sucesso de Os Sertões, livro lançado em 1902, quando bateu na porta do ministro das Relações Exteriores, o barão de Rio Branco, para disputar a chefia de uma Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus. Esperou com aflição a vaga de trabalho que nem sempre escritores, jornalistas e engenheiros desejam. "Alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre, mas não vejo como realizá-lo", escreveu impaciente ao pesquisador Luiz Cruls.

Atacado pelo paludismo, pela fome e pela "tortura" de piuns e carapanãs, o escritor ultrapassou a fronteira brasileira e se embrenhou na selva peruana. Era a parada final de uma odisseia que começara bem antes, em 1897, no sertão baiano. O mundo desconhecido que Euclides pretendia relatar abrangia uma parte considerável da zona tropical do continente americano. Após escrever um clássico ambientado no semiárido, Os Sertões, ele pretendia escrever uma narrativa focada nos conflitos humanos, já na floresta do Peru.

A viagem chefiada por Euclides seria uma "batalha obscura e trágica com o deserto", escreveria ao crítico literário José Veríssimo. Um integrante do grupo morreu durante o percurso, outros, com beri-béri, ficaram para trás. Em relatório, Euclides destacou a relação conflituosa com Pedro Alexandre Buenaño, chefe da parte peruana da expedição. O "Sr. Buenaño" reclamaria que os brasileiros eram fracos e não aguentavam a empreitada. Euclides argumentava que tinha menos homens – começou com 14 e terminou com nove – e perdera comida num naufrágio de batelão.

À base de peixes, mingau e banana verde, Euclides foi em frente num universo de trabalho escravo e marcas de chacinas de índios e seringueiros por milícias patrocinadas pelos senhores dos barrancos. A relação entre o homem e a Amazônia era para o escritor a "guerra de mil anos contra o desconhecido". Entre os lugares visitados por ele está Santa Rosa do Purus, no Acre. Atualmente com 3,9 mil moradores, o município foi considerado o pior do Brasil para se viver, segundo estudo apresentado na semana passada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). A pesquisa leva em conta índices de saúde, educação, emprego e renda.

Quem percorre hoje o trajeto feito por Euclides em direção ao Peru e dentro do território do país vizinho encontra, além da pobreza extrema e a exploração de trabalhadores, a atuação clandestina de madeireiras e a polêmica presença de empresas de exploração de petróleo.

É nesse ponto final da viagem que Euclides registraria o drama dos "sipibos", como grafou o nome de uma tribo que estaria, para ele, condenada à extinção. Os shipibos, porém, ainda resistem em meio à contaminação dos rios por garimpos e petroleiras; são antes de tudo fortes como os sertanejos da Bahia. Eles podem ser vistos nos verões amazônicos, quando os rios baixam e praias brancas surgem no deserto verde.

O verão é tempo de colher ovos de tracajás, pescar, plantar banana, arroz, milho e mandioca nas margens do rio adubadas por sedimentos trazidos pelas águas e negociar couros de bichos com regatões. Em 2011, o Estado encontrou no Ucayali shipibos descendentes dos homens e mulheres descritos por Euclides. O grupo visto pela equipe do jornal era formado por adultos e crianças maltrapilhos, com problemas de saúde.

A etnia guardava até décadas passadas um costume registrado por viajantes europeus, no século 19, no Baixo Amazonas. Os pais de um recém-nascido colocavam uma tábua na testa e outra na nuca da criança, alongando a cabeça para ficar quase triangular, como uma mitra de bispo. Hilário Panduco, de 70 anos, um dos shipibos encontrados pelo jornal, é possivelmente da última geração que ainda passou pela prática. A chegada da Igreja Católica, de homens de governo e de outros forasteiros contribuiu para o fim dessa tradição.

Panduco mostrou, agora com orgulho, quatro longas cicatrizes na cabeça. Entre os shipibos, um marido traído tira uma lasca de pele da cabeça do rival para que tudo fique bem no grupo. No final do verão amazônico, em meados de dezembro, os shipibos colhem suas plantações e preparam a volta ao interior da floresta, onde passarão outros seis meses.

Ideal. De Manaus, Euclides justificou a aventura ao escrever, numa carta, que "a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior". "E eu tenho tanto que escrever ainda..." Ele não teria tempo para concluir o projeto de seu segundo grande livro. Três anos após o fim da expedição, morreu numa troca de tiros com o amante de sua mulher. Mas, como fizera antes no processo de criação de Os Sertões, escreveu artigos, notas e ensaios preparativos.

Num desses textos, ele ousou questionar a história oficial peruana. "O Peru tem duas histórias fundamentalmente distintas. Uma, a do comum dos livros, teatral e ruidosa, reduz-se ao romance rocambolesco dos marechais instantâneos dos pronunciamentos. A outra é obscura e profunda", avaliou no estudo Brasileiros, publicado pelo Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em 1907 – quase 50 anos antes de José María Arguedas publicar o romance Os Rios Profundos, um clássico peruano.

A viagem de Euclides deixaria uma contribuição à geografia. A expedição registrou um trecho ainda desconhecido do Purus. Em seu relatório, o escritor ponderou que se tratava de um trecho novo para a "ciência geográfica", mas não para os caucheiros que por ele trafegavam.

Euclides marcou a literatura ao registrar a vida do interior e estabelecer o contraste da civilização e da barbárie. Essa dicotomia havia aparecido em 1845 no romance Facundo, do argentino Domingo Sarmiento, que descreve as lutas sanguinárias no pampa. É possível que, em algum momento, o registro científico de um trecho do Purus e a pesquisa intelectual de Euclides, que abrangeu praticamente toda a extensão do Amazonas, dos Andes à foz, incluindo afluentes e subafluentes, sejam as marcas mais visíveis de seu pioneirismo.

Um Paraíso Perdido, nome do livro que não conseguiu publicar, demarcaria para sempre a "fronteira" da área do trópico que tornaria universal a prosa da América do Sul. O semiárido, o sopé dos Andes e a selva amazônica estariam nos romances do regionalismo de Guimarães Rosa e do realismo mágico de Gabriel García Márquez, Manuel Scorza e Mario Vargas Llosa. Possivelmente, a experiência amazônica, suas malárias e seus termos regionais atingiriam, nos últimos anos de Euclides, a veia profética do repórter. "Abri uma picada", avaliou ao saber que um conhecido escrevia também sobre o interior.

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