Parceria com universidade garante alternativas para medicina

Makers desenvolvem soluções práticas e baratas em espaços diferentes dos laboratórios tradicionais; parte dos produtos é voltada para acessibilidade

Fábio Rossini e Jamylle Mol

O InovaLab@Poli, laboratório da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), não tem as dimensões de uma grande empresa: é um ambiente simples, onde impressoras 3D e computadores dividem o local com jovens makers. Quem vê a simplicidade do laboratório e a pouca idade dos seus integrantes não imagina a complexidade do que é desenvolvido nesse espaço.

O universitário Gustavo Benelli Marim tem apenas 18 anos e já trabalha na criação de dispositivos que tornam os aviões mais acessíveis aos passageiros com deficiência. A demanda surgiu da parceria entre o laboratório e uma fabricante de aeronaves. “Na tecnologia assistiva, o projeto deve ser pensado para que todas as pessoas possam utilizá-lo e para melhorar a vida de quem sofre tanto pela falta de acessibilidade diariamente”, explica o universitário.

Iniciativas como a de Gustavo têm se tornado cada dia mais comuns. A indústria médica, tradicionalmente restrita a um grupo de pesquisadores e cientistas, passou a fazer parte dos makerspaces. Hoje, as soluções criadas pelos makers já começam a ser incorporadas por instituições como a universidade e o governo, o que sinaliza uma nova tendência na criação de soluções para a saúde.

Anualmente, a Secretaria do Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, em parceria com o InovaLab@Poli, realiza o TOM - evento que reúne makers de diversas áreas em um “mutirão” de criação de aparatos e projetos relacionados à acessibilidade. Durante o TOM, são produzidos dispositivos, como muletas, aparelhos para surdez, campainhas residenciais para surdos e cadeiras de roda de baixo custo. Além disso, softwares e aplicativos são disponibilizados online para livre compartilhamento como código aberto.

As inovações criadas pelos makers barateiam os produtos e facilitam o acesso a tecnologias que simplificam o cotidiano de pessoas com deficiência. Para Cid Torquato, secretário-adjunto da Secretaria do Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a parceria entre makers, governo e universidade beneficia todas as áreas, especialmente a medicina. “A iniciativa é extremamente importante para fazer com que os portadores de deficiência tenham acesso a todos os bens”, diz. Eventos como o TOM fazem o diálogo entre quem tem habilidades tecnológicas e pessoas com necessidades, como a estudante Bruna Satie Yamazaki e o físico Paulo Duque.

Bruna, de 24 anos, sempre quis tirar fotos e fazer selfies. No entanto, não conseguia apertar o botão do celular porque nasceu com paralisia cerebral e dificuldades motoras. Durante o TOM, recebeu um dispositivo que permite tirar fotos no celular sem o auxílio de outras pessoas. “Antes eu tinha que pedir para a minha mãe pegar a câmera, agora eu tenho um aparelho e consigo disparar sozinha. Fiquei muito feliz e mais independente”, conta. Bruna se empolgou tanto com a novidade que até se inscreveu em um curso de fotografia.

Estudante Bruna Yamazaki recebeu dispositivo criado por makers no TOM SP Crédito: Arquivo Pessoal

O físico Paulo desenvolveu três projetos durante o TOM para permitir que pessoas com dificuldades motoras possam tirar fotos. Um deles é o dispositivo testado pela Bruna. “Quando o evento acabou, prometemos melhorar um dos produtos e doar para ela. Foi emocionante vê-la tirar fotos tocando apenas um botão. É bonito ver a Bruna manipulando o celular, tirando selfie e fotos das pessoas”, diz.

Conhecimento compartilhado

Todos os estudantes da USP têm livre acesso ao InovaLab@Poli. Os alunos podem propor e criar protótipos e, a partir deles, pensar em técnicas para um produto final. A elaboração das soluções para pessoas com deficiência vai da criação de novos aparatos à adaptação e modernização de produtos já existentes no mercado, como cadeiras de roda para aviões e celulares. “As tecnologias de produção atuais, que estão espelhadas nos laboratórios, possibilitam a elaboração de produtos mais individualizados. O movimento maker de criar soluções encaixa bem com necessidade de tecnologia assistiva”, diz Eduardo Zancul, professor do Departamento de Engenharia da USP e um dos criadores do InovaLab@Poli.

Estudante Matheus Morgado, de 20, desenvolve cadeira para facilitar embarque de pessoas com deficiência em aviões Crédito: Fábio Rossini

A grande diferença entre o que é produzido pelas grandes indústrias médicas e o que é desenvolvido em makerspaces é o grau de personalização. Nesses espaços, a criação de um protótipo nasce de uma demanda específica. “Aprendemos que o design universal não é um bom jeito de projetar. É melhor trabalhar com indivíduos, como um tetraplégico ou um paraplégico”, diz André Fleury, que também dá aulas no Departamento de Engenharia da USP. “O movimento maker tem muito sentido quando, inicialmente, se faz apenas uma peça”, completa.

O médico Sérgio Canabrava, do Centro de Referência de Catarata e Glaucoma de Belo Horizonte, também trabalhou a partir de demandas específicas para desenvolver o Anel de Canabrava, primeiro instrumento do mundo feito em impressora 3D na oftalmologia. O Anel é destinado às pessoas que têm pouca dilatação nos olhos, o que dificulta a cirurgia de catarata e exige quatro incisões extras durante os procedimentos clínicos.

Iniciativas como a de Canabrava fazem parte do cotidiano dos médicos do Medhacker, organização que reúne médicos e makers de São Paulo. De acordo com Milton Yogi, oftalmologista do grupo, a descentralização dos projetos tecnológicos na área da medicina pode trazer uma maior democratização de soluções. "Conseguimos experimentar projetos mais baratos ou acessíveis. Se um cirurgião não consegue acesso a uma determinada peça no fabricante, agora ele acessa um arquivo e consegue imprimir uma cópia. É uma democracia de acesso a soluções tecnológicas”, diz.

Para Yogi, a possibilidade de uma terceira Revolução Industrial, efeito do movimento, é uma verdade. “Revolução Industrial? Não tenho dúvida. Talvez seja um pouco mais lenta do que prevista há três anos, mas está em processo de maturação”, afirma.

Veja algumas fotos que a Bruna tirou com o auxílio do dispositivo maker