SÃO PAULO a cidade que acolhe
De longe, é a tal selva de pedra: concreto, cinza, arquitetura bruta, cara de poucos amigos e uma frieza que só esquenta por causa do sol. De perto, tem abraço, tem amor, tem carinho, tem um olhar ao próximo. Dentro, bate um coração. Um, não; milhares, milhões.
Como toda grande metrópole do mundo, São Paulo são seus moradores, os que diuturnamente tecem a teia social. Caso particular desta que é a mais importante cidade brasileira, São Paulo se tornou a gigantesca São Paulo de menos de 100 anos para cá. E toda sua história de enormidades, não por acaso, veio do acolhimento.
Vinculadas à Prefeitura de São Paulo, 379 organizações não-governamentais prestam algum tipo de assistência social. Atualmente, são 1.282 convênios em vigor, que atendem a 225.379 pessoas. Por mês, os repasses públicos municipais são da ordem de R$ 75 milhões. Também há o financiamento estadual: na cidade, são atualmente 1.324 serviços socioassistenciais distribuídos em 224 unidades com recursos do Fundo Estadual de Assistência Social. Um total de R$ 65 milhões para atender a 85.951 pessoas. Mas muitas outras entidades funcionam de forma independente, é claro.
De acordo com levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, o Estado de São Paulo concentra 20,5% do total das ONGs do País – 59.586 instituições do tipo. Cinquenta e sete por cento delas estão ligadas à área religiosa, 53% à saúde, 47% à assistência social e 43% à cultura e recreação – obviamente que uma mesma entidade tangencia mais de um ponto.
Histórico. Fundada por religiosos portugueses há exatos 463 anos, com uma pequena população indígena local, a cidade de São Paulo recebeu, dos fins do século 19 aos dias atuais, um total de 2,3 milhões de imigrantes de todas as partes do mundo. Não por coincidência, justamente no período em que experimentou seu maior crescimento, alcançando o posto de principal cidade do País e uma das mais importantes metrópoles do planeta. Atualmente, São Paulo é a cidade com as maiores populações de origens étnicas portuguesa, italiana, japonesa, espanhola e libanesa fora de seus países respectivos. E também a cidade com a maior população de origem nordestina.
A busca por emprego, a fuga da pobreza, a busca por um local sem guerras, a vontade de viver em um local com liberdade religiosa, o encantamento pelas possibilidades do caos urbano. Eis os motivos que trouxeram tanta gente para cá, muitas vezes com uma mão na frente e outra atrás, sem lenço e sem documento – são 120 mil estrangeiros que vivem hoje em São Paulo, 25% do total do País. De modo que ser paulistano, hoje, significa ser muitos, ser um coletivo étnico e cultural. Ser paulistano é ser acolhido. E acolher.
Da mesma maneira que os forasteiros de décadas passadas aqui encontraram redes de acolhimento – em geral organizadas por comunidades de estrangeiros aqui já instalados e instituições religiosas, já que o Estado sempre teve dificuldades em prover o mínimo –, os excluídos e marginalizados de hoje também são abraçados por benfeitores.
Um lar aos que não o têm
Irmã Rosina Azevedo tem 91 anos e carrega a boa vontade da São Paulo inteira – pelo menos da São Paulo das portas para fora, esta cidade em que 16 mil são moradores de rua. Diariamente, a religiosa dirige sua Saveiro da casa da congregação onde mora, na Vila Clementino, zona sul da cidade, para o Centro de Convivência São Vicente de Paulo, nos Campos Elíseos, no centro. Ali, se depara com uma rotina de cuidados a moradores de rua, preferencialmente os mais velhos – maiores de 57 anos têm prioridade em sua obra.
“Em geral, são pessoas que dormem na rua ou em albergues. Aqui, encontram assistência durante o dia”, conta ela, com uma vitalidade que impressiona. A boa vontade da São Paulo inteira é porque o local não depende de verbas públicas nem convênios governamentais para funcionar: parte das despesas é custeada pela congregação religiosa de irmã Rosina, as Irmãs Vicentinas de Gysegem; o restante, vem de doações.
“Os donativos resolvem. As pessoas estão mais solidárias: não nos falta nada”, diz ela. “Agora mesmo (no dia em que a primeira das duas entrevistas foi realizada, em 14 de dezembro) acabei de receber, de um dentista, um estoque enorme de massa de tomate, chocolate e pasta dentária. Se você perguntar quanto eu gasto por semana no Ceasa (nome antigo para a Ceagesp, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), é nada; tudo vem de doação, o equivalente a R$ 10 mil em produtos por semana.”
Não é pouca coisa. Na casa são atendidas quase 700 pessoas por dia. Ali elas almoçam e recebem uma sopa no fim da tarde. Também podem tomar banho, cortar o cabelo – e ganham roupas novas de tempos em tempos. Por dia, são 45 quilos de carne, 50 quilos de arroz, 30 quilos de feijão, 60 quilos de batata, 40 quilos de legumes, 400 pães... “Faço questão de que toda refeição tenha arroz, feijão, carne, legumes e uma salada. E nunca falta sobremesa”, afirma Rosina.
Nascida Maria Aparecida Azevedo, a religiosa foi rebatizada quando ingressou na congregação, há 71 anos. Escolheu as vicentinas por causa da vocação: queria ajudar os mais necessitados e o lema da congregação é “serva dos pobres”. “Vem da família: minha avó já costumava deixar almoço para os menos favorecidos no peitoral da janela, em sua casa em Mogi das Cruzes”, recorda.
Foi um longo percurso dentro da congregação, na maior parte da vida dedicada ao magistério, até que conseguiu, finalmente, realizar seu sonho de atender aos moradores de rua. Em 1995, quando a casa das religiosas ficava no bairro de Santa Cecília, ela obteve autorização para construir um pequeno galpão em um corredor ocioso – e transformou o local em um centro de acolhimento, embrião do projeto atual. Dois anos mais tarde, as religiosas adquiriram o imóvel onde ela trabalha até hoje.
Mas – ninguém consegue resolver tudo na vida – ela percebeu um problema fora do seu alcance: boa parte dos moradores de rua têm cães de estimação. Estes ficam do lado de fora, pois a instituição não conta com estrutura para acolhê-los. “Já notei que alguns trazem uma lata e dão um jeito de levar um pouco da comida para o cachorro. Outros pedem para repetir – e na verdade a segunda pratada vai toda para o bicho”, relata. Na hora do almoço, a entrada do Centro de Convivência São Vicente de Paulo é um verdadeiro estacionamento de cães amarrados. /E.V.
O direito à ração
Desde que fundou o projeto Cão Sem Fome, há 6 anos, a escritora infantil, professora e contadora de histórias Glaucia Lombardi, de 46 anos, não sabe o que são férias. Todos os sábados são dedicados à causa que tomou para si como projeto de vida: garantir que 380 cães e 120 gatos paulistanos tenham ração no prato – e, sempre que necessário, vacinas e remédios.
Apaixonada por cães – atualmente, tem as cadelas Mônica, de 3 anos, Madre Teresa, de 10, e Clotilde, de 12, todas adotadas depois que foram abandonadas nas ruas –, Glaucia viveu a epifania de que ajudar animais que passam fome era sua missão de vida depois de uma viagem pelos interiores do Brasil, a trabalho. Há 12 anos, ela participou de um projeto de implantação de bibliotecas comunitárias populares, nos rincões mais ermos. “O que mais me chocou não foi a fome das pessoas, mas a fome dos bichos”, conta.
Voltou a São Paulo e decidiu que ela poderia, sim, arregaçar as mangas e ajudar a melhorar essa situação. “Conheci uma protetora (que é como são chamadas as pessoas que cuidam, em seus quintais, de muitos cães ou gatos abandonados) que mora em São Mateus, na zona leste, e tinha 45 cães em seu quintal. Decidi que eu iria bancar a ração daqueles animais”, conta.
Foram seis anos assim, custeando os bichos do próprio bolso. “Nesse meio tempo, eu procurava organizações que cuidavam de animais abandonados, ficava pensando em uma maneira de transformar o que eu fazia em um projeto maior”, diz. “Mas o que havia eram ONGs de resgate. E eu queria era cuidar da alimentação, garantir que os bichos abrigados em casas de protetores comessem bem.”
Então, Glaucia decidiu criar o Cão Sem Fome. “Comecei a pedir ração para outras pessoas e a procurar outros protetores para ajudar. Em pouco tempo, estava ajudando 100 animais, depois 200, 250, e atualmente são 500 – de cinco quintais diferentes, o de São Mateus, outro de Aricanduva, outro do Grajaú, um de Itaquaquecetuba e um de Ibiúna”, enumera. São 4 toneladas de ração por mês para essa bicharada toda.
Ao decidir “patrocinar” os protetores que abrigam, em média, cada um 80 animais em seus quintais, Glaucia passou a suprir uma lacuna. “A ideia é ajudar quem já ajuda, fazer uma corrente do bem. Eu sou uma intermediária entre o pobre da periferia que não tem condição financeira nenhuma mas que faz um trabalho consciente e a pessoa que quer ajudar os cães e gatos mas não sabe onde, não sabe como”, explica. “É uma ponte do bem.”
Mas é claro que de tanto conviver com essas realidades, Glaucia passou a esbarrar em outros problemas. A vizinhança, por exemplo. “Fazemos um trabalho para que as relações sejam boas, afinal, convenhamos, não deve ser nada fácil ter um vizinho com 80 cachorros. É barulho, é cheiro, não tem jeito. Então o importante é que todos entendam a função social daquele protetor”, comenta.
Todos os animais são castrados e acompanhados por veterinários voluntários do projeto. Os protetores também são assistidos: recebem uma cesta básica mensal e ajudas pontuais em caso de necessidades específicas.
E o projeto não se encerra aí. Duas vezes por mês, Glaucia promove feiras de adoções desses animais em pet shops parceiros. A cada evento, são expostos de oito a 10 animais – metade costuma ser adotada. Algumas dessas histórias são contadas em um calendário de mesa produzido anualmente pelo projeto. Vendido a R$ 20, reverte na compra de vacinas para os bichos. /E.V.
Do WhatsApp para o que der e vier
Thor tem 3 anos e foi pisoteado logo que nasceu – o que lhe acarretou problemas na estrutura óssea, tratamento fisioterápico eterno. Luigi, 4 anos, manca muito, em decorrência de uma necrose na cabeça do fêmur. Paçoca, também de 4 anos, sofre com tosse crônica, resultado de um problema na traqueia. Os três cães foram abandonados e acabaram adotados pelo jornalista Sérgio Lapastina, de 51 anos.
“São animais que foram descartados. Adotamos e eles mudaram a nossa vida”, conta ele. “Meu filho Guilherme, por exemplo (o caçula de três irmãos, atualmente com 17 anos): ele era mais recluso, muito videogame, essas coisas normais de adolescente. Quando o Thor veio para casa, passou a interagir mais com a gente, a se envolver, a participar das ações.”
Ações estas que não são poucas. Sérgio está à frente do Grupo da Boa Vontade, um projeto que reúne 52 voluntários no WhatsApp – e outros 700 e tantos no Facebook – com o objetivo de ajudar. Ajudar no quê? “No que pudermos, de acordo com as aptidões de cada um”, resume ele.
Uma vez por mês eles preparam cachorros-quentes, 30 litros de suco, muito café, e saem às ruas do centro enchendo os estômagos dos que tentam dormir apinhados nas praças e calçadas. Nisto, honram a origem do Grupo da Boa Vontade - em sua versão original, criado muito antes do WhatsApp, em 1973, quando a mãe de Sérgio, Aidil Lapastina, decidiu reunir amigos e familiares para dar comida a quem não tem.
“Com a morte da minha mãe, em 2003, eu fiquei pensando como continuar esse trabalho. Aí lá por 2006, 2007, recomeçamos. Mas como reunimos um povo muito multidisciplinar, acabamos por expandir as ações”, conta ele.
Se é Grupo da Boa Vontade, não falta ímpeto nem ânimo para quebrar o galho em qualquer coisa. Aí o WhatsApp do Sérgio não para de apitar. “É isso mesmo. Reúno as boas vontades de cada um e vamos resolver”, anima-se. Quem tem algo para se desfazer, o procura. Todo dia é algum pacote na portaria do prédio, sua casa tem doações em tudo que é canto. Sérgio sempre sabe para onde direcionar aquilo, se é brinquedo vai para algum abrigo, se é roupa de adulto vai para alguma instituição, se é comida, para alguma campanha...
Em dezembro, por exemplo, eles levaram cestas básicas para uma comunidade indígena no Jaraguá, extremo oeste da cidade. E também garantiram o entretenimento em uma festa promovida por outra instituição para 120 crianças pobres do município de Embu, na Região Metropolitana. “Estava faltando a recreação e nós topamos. Um dos membros do grupo fez oficina de pipas. Minha mulher (a publicitária Gláucia Priosti) é especializada em pintura facial, se veste de palhaça e tal. A gente também organizou brincadeiras”, enumera.
Essa vertente, aliás, é cada vez mais o forte do Grupo da Boa Vontade. Tanto que eles têm se juntado a multirões de visitas em hospitais, por exemplo. E costumam ser requisitados para ações em parceria com projetos voltados para crianças. /E.V.
Um padrinho por dia
Foi em 2002, mas a coordenadora de sistemas Josy Santos, hoje com 38 anos, se lembra tão bem como se fosse ontem. Por telefone, sua irmã Augusta, 14 anos mais velha, lhe contou que estava com câncer de mama. “Minha reação foi de querer ajudar as pessoas, aquele sentimento de que é preciso ser útil na vida, fazer algo maior”, conta.
Então uma amiga comentou com Josy sobre uma instituição no bairro do Campo Limpo, na zona sul, que atendia a crianças e que precisava de ajuda. Ela não sabia muitos detalhes. Josy descobriu o número e ligou lá. “Quando a pessoa do outro lado da linha atendeu e disse ‘Centro de Apoio a Crianças Carentes com Câncer’, eu desliguei na cara. Fiquei assustada. Eu queria ajudar mas não estava preparada para lidar com o drama de crianças com câncer, ainda mais naquele momento, com a história da minha irmã”, diz.
Depois de repensar, Josy decidiu telefonar novamente, com mais calma. Viu que valia tentar entender como funcionava o local. Tratava-se da Sociedade Gota de Amor, uma casa com capacidade para acolher 22 crianças em tratamento de câncer. “Tudo é feito por voluntários, das doações dos insumos ao preparo da comida”, explica Josy. “Os ‘moradores’ são crianças que vêm de outras cidades, outros estados, em busca de tratamento de câncer aqui em São Paulo. Fui lá visitar em um sábado e foi paixão à primeira vista.”
Ainda sem nome, nascia ali o grupo Galera do Bem – SP. Desde então, a vida de Josy passou a se dividir entre o trabalho e os pedidos de doações ao longo da semana – e as visitas a instituições do tipo aos sábados e domingos. “Em minha primeira visita, levei um saquinho de bala para cada criança. Hoje temos uma rede de 365 padrinhos cadastrados, é engraçado porque dá um por dia do ano, e eles nos ajudam com doações de tudo. Com isso, conseguimos auxiliar seis casas: além das de crianças em tratamento, também há uma de adultos portadores de HIV, um asilo de idosos e um abrigo para crianças em vulnerabilidade social”, afirma.
Apesar de o estalo para ajudar ter sido após a primeira doença da irmã – no total, foram quatro cânceres que Augusta enfrentou desde 2002, mas atualmente ela passa bem –, Josy recorda-se que a vontade de fazer o bem surgiu ainda na infância. “Eu ‘roubava’ comida da despensa de casa para dar aos pobres”, lembra ela.
Com o passar dos anos, ela passou a envolver cada vez mais gente, de colegas de trabalho a amigos. “E aí, um tempo depois, quando estávamos em busca de um nome, alguém falou ‘vocês são uma galera do bem’. E acabou ficando”, diz. Essa animação toda para as boas ações acabou contagiando o analista de sistemas Nelson Arimitsu, de 58 anos. “De tanto ver, a gente acaba ficando com vontade de ajudar também, não é? Aí, sem querer, já estava junto”, resume ele.
“O Nelson começou quebrando galho, fazendo alguns favores... Sempre estava disponível para ajudar a pegar alguma doação, a tentar arrumar um padrinho para ajudar em alguma causa... Chegou a um ponto em que os demais integrantes da Galera do Bem começaram a falar: ‘traz o japa da Federal para a gente, vamos convidá-lo a fazer parte oficialmente’”, relata Josy. (O apelido foi dado em virtude de sua semelhança com o policial federal Newton Ishii, conhecido por aparecer em diversas ações da Operação Lava Jato.) /E.V.
Olhar materno
Histórias de crianças órfãs, vítimas de abusos ou em qualquer situação de vulnerabilidade costumam sensibilizar até os mais duros. No caso de mães, o inevitável é pensar que o menino ou a menina em questão poderia ser o próprio filho. Pois mães de uma escola de educação infantil e ensino fundamental bilíngue da Vila Pompeia, na zona oeste de São Paulo, decidiram não ficar só nos olhos marejados e botaram em prática um plano para ajudar crianças que vivem em abrigos: nascia a organização não-governamental Ciranda para o Amanhã.
Tudo começou no fim de 2015, quando elas decidiram fazer sacolinhas de Natal para presentear 24 menores que viviam em um abrigo da região. Aos poucos, entretanto, a ideia acabou se espalhando para outras mães, mais voluntárias apareceram, e as necessidades de outras casas também entraram na pauta. “Alguns tinham uma situação muito precária”, conta a advogada Paula Martinez Ramos, de 35 anos, uma das fundadoras. Atualmente, são atendidas 300 crianças de 15 abrigos diferentes.
Mas não é só fome de comida. Além das necessidades básicas, a ONG também tem buscado cursos profissionalizantes para aqueles que estão prestes a completar 18 anos e, por lei, serão obrigados a deixar os abrigos. “Esses adolescentes, na maioria dos casos, não têm estrutura familiar para voltar para casa. Por isso, buscamos dar alguma estabilidade para esse jovem que está saindo do abrigo”, diz Paula.
Um dos casos que mais as emocionam é o de uma adolescente que já era mãe e, portanto, vivia no abrigo com a filha bebê. “Como ela não tinha condições de se manter fora da instituição, iria sair aos 18 anos e seria separada da filha, que permaneceria no abrigo”, conta a analista do Tribunal Regional do Trabalho Isabella Filippi Britto, de 39 anos, também fundadora da ONG. “Mas conseguimos um curso de cabeleireira para ela que, assim, pôde sair em condições de manter a filha”, diz Paula. Neste caso, como não houve apadrinhamento, as despesas foram custeadas do próprio bolso das fundadoras. “Graças a Deus, deu certo”, completa Paula.
Trata-se de um drama que tem se tornado rotina nos abrigos: as adolescentes grávidas que, quando completam 18 anos, precisam deixar seus bebês. “São jovens que não têm condições de se manter sozinhas e não contam com apoio da família. Buscamos ajuda de conhecidos e empresários para conseguir emprego e qualificação profissional para elas”, afirma Paula.
Até agora a ONG já pagou nove cursos profissionalizantes para os adolescentes – na maioria, manicure e cabeleireiro. Atualmente, 47 adolescentes aguardam a oportunidade de ingressar em um. “Estamos em busca de padrinhos que possam nos ajudar”, explica Paula.
A Ciranda para o Amanhã está cuidando até de crianças refugiadas. Em julho de 2014, durante a Copa do Mundo, um homem desembarcou no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos. Vinha do Congo com seus dois enteados, de 14 e 11 anos, com o suposto objetivo de assistir aos Jogos Olímpicos. Porém, ele abandonou os meninos e voltou para o país africano. As crianças foram acolhidas pelo Conselho Tutelar e estão em um abrigo na região da Lapa. “Elas não têm nem documentos e é muito difícil conseguir legalizar a situação delas. Para isso, estamos procurando advogados especializados na questão de refugiados", comenta Paula. /ALEXANDRE HISAYASU e E.V.
Refúgio dos estrangeiros
As estatísticas impressionam: por ano, são atendidos de alguma maneira pela Missão Paz 7 mil pessoas de 64 países diferentes – 56% deles, do Haiti; 15% da Bolívia; 6% do Peru; e pelo menos um representante de cada uma de quase todas as nações africanas. À frente de todo esse trabalho está o padre Antenor João Dalla Vecchia, 62 anos, gaúcho que vive em São Paulo desde 1977.
“Vejo que a cidade abriu caminhos para acolher bem quem vem de fora. Mas ainda sinto que é preciso fazer uma mobilização no sentido de melhorar a relação”, avalia o sacerdote. “Infelizmente, ainda ocorrem manifestações de rechaço, de xenofobia, de preconceito.”
A Missão Paz tem uma história longa em São Paulo. A Congregação dos Missionários de São Carlos, os scalabrinianos, foi fundada em 1887 na Itália pelo religioso João Batista Scalabrini (1839-1905). Em 1940, com a inauguração da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, a instituição passou a atuar diretamente na capital paulista. “No início, era um trabalho voltado aos imigrantes italianos”, conta Antenor.
Nas décadas seguintes, o foco foi ampliado – com auxílio não só aos imigrantes de outros países, como também aos migrantes, sobretudo nordestinos, que vieram ajudar a construir a metrópole. Em 1969, foi criado o Centro de Estudos Migratórios.
Estimulados pelo então arcebispo de São Paulo d. Paulo Evaristo Arns (1921-2016), os scalabrinianos fundaram em 1978 a Casa do Migrante, onde vivem 110 pessoas de outros lugares – todos em busca de uma adaptação à cidade. “O imigrante chega com a mala e o desejo de reorganizar sua vida, reconstruir seu futuro. É claro que necessita de um atendimento muito específico, muito particular. Oferecemos um local onde ele pode guardar suas coisas, iniciar sua trajetória e se regularizar do ponto de vista legal”, resume.
Também há ajuda na procura pelo emprego. “Temos contato com empresas interessadas em contratar essa mão de obra e nos preocupamos em tentar colocá-los no mercado de trabalho”, exemplifica o padre.
“O importante é passarmos a mensagem de que as migrações vêm para acrescentar. Não podem ser entendidas como algo ruim para a cidade”, comenta. “Elas vêm para formar a nossa cultura, somam de forma positiva.”
A Missão Paz oferece ainda um curso intercultural – as palestras são ministradas em espanhol, francês e inglês –, uma verdadeira aula do que é o Brasil. Nas palavras do padre Antenor, são “informações para que ele possa iniciar sua trajetória nesta nova realidade sabendo do que se trata”.
Quatro anos atrás, uma das alunas foi uma mulher que acabou se apaixonando pelo Brasil: a francesa Alexandra Baldeh Loras. /E.V.
Ela quer empoderar as minorias
Depois de morar em oito países diferentes, a parisiense Alexandra Baldeh Loras acabou fincando o pé mesmo na capital paulista. Criou raízes. Isso apenas quatro anos depois de vir para cá, com filho recém-nascido, por causa do trabalho do marido, o diplomata Damien Loras – então nomeado cônsul francês em São Paulo.
“Vou ser sincera, quando cheguei tinha uma imagem muito negativa de São Paulo, eu não queria vir para o Brasil, não queria criar meu filho aqui”, comenta ela. “Mas o País acabou me seduzindo e colonizando meu coração completamente. Não consigo me ver morando em outro lugar.”
Tanto que, no ano passado, Damien deixou a carreira diplomática. Ele não queria mais ser transferido, pois agora é a vez de Alexandra investir em sua carreira. Aos 40 anos, ideias, fôlego e projetos não faltam, sempre com um discurso de empoderamento das minorias – as mulheres, os negros, os jovens pobres de periferia e, muitas vezes, as pessoas que se enquadram em todas essas categorias ao mesmo tempo.
Filha de um morador de rua de Paris, Alexandra tem uma sensibilidade especial para os que passam por situações vulneráveis. Recentemente, tornou-se embaixadora do Plano de Menina – projeto criado pela jornalista Viviane Duarte. Trata-se de uma série de palestras e oficinas de empoderamento, realizadas semanalmente em duas escolas, uma no Grajaú e outra no Capão Redondo, voltadas a meninas adolescentes. A formatura da turma de 2016 ocorreu no último sábado (21).
“São meninas que, no começo, mal conseguiam contar suas histórias. Meninas que poderiam engravidar ainda muito jovens, ou que tinham como único horizonte trabalhar como faxineira em vez de estudar”, comenta. “Damos a elas as perspectivas de focar no futuro, planejar suas carreiras, ter um alvo.”
Alexandra também é uma das criadoras do grupo Negras Empoderadas. Com conhecimento profundo da causa, é claro. “O Brasil me ajudou a abrir um diálogo sobre algo muito íntimo de minha história: o fato de ser negra dentro de uma elite”, teoriza. “A frase é que ‘não tem racismo no Brasil’. Uma farsa. Mesmo eu com poder econômico sofro racismo dentro da elite.”
Ela conta que, pela primeira vez, vive em um país de maioria negra. “Temos a maior população negra do mundo depois da Nigéria, e não encontramos bonecos de brinquedo negros para crianças negras se verem representadas e as crianças brancas aprenderem a interagir com as diferenças, sem nos ver apenas no papel da diarista, da babá e do criminoso”, pontua.
A ativista mira nos números para apresentar sua luta. Sonha com uma representatividade proporcional nos altos escalões. “Quando o Brasil vai ter, em cargos de protagonismo e liderança, 54% de negros? Quando o Brasil vai ter, em cargos de protagonismo e liderança, 52% de mulheres?”, provoca. Utopia ou não, Alexandra não parece querer descansar. /E.V.
-
EdiçãoMarcelo Godoy
-
Edição de VídeoCecilia Cussioli
-
Produção, Reportagem e TextoEdison Veiga
-
Fotografia e VídeoDaniel Teixeira
-
WebdesignRenan Kikuche
-
ColaboraçãoAlexandre Hisayasu (reportagem), Everton Oliveira (vídeo), Gabriela Biló (fotografia e vídeo), Sergio Castro (fotografia), Mouco Fya (vídeo), Filipe Araújo (vídeo) e Cesar Cunninghant (vídeo)