Questões políticas estão presentes na cena de São Paulo

 

Mas existe, entre membros de algumas bandas, a ideia que o conjunto está mais fragmentado; evento neste sábado, 15, reúne punk rock, straight edge e política

 

l Faça você mesmo: essas três palavras poderiam definir boa parte do punk rock “incondicional” (uma tradução ao pé da letra para hardcore) de qualquer lugar do mundo, e não é diferente no Brasil.

 

Neste sábado, 15, ocorre, no porão da SanFran (Rua Riachuelo, 194), a partir das 17h, mais uma edição da Verdurada, o principal evento ‘do it yourself’ do Brasil – existe desde 1996. O festival de hardcore straight edge reúne bandas, palestras e debates sobre política social e um jantar vegano. A entrada, R$12, serve apenas para cobrir os custos do evento, segundo os organizadores.

 

Verdurada, que existe desde 1996, é referência no 'do it yourself' brasileiro. Foto: Breno Carollo

 

 

 

O straight edge é uma ética popularizada pela cena de Washington D.C. que consiste, basicamente, em não consumir drogas, álcool e alimentos de origem animal. Essas poucas linhas fazem um retrato reducionista, mas o movimento envolve preocupações políticas frequentemente relacionadas ao combate à opressão e discriminação, e aprimoramento pessoal.

 

Esses dois princípios também regem outro evento que ocorre em SP, este desde o fim do ano passado: o Hardcore nas Ruas também funciona por um coletivo de autogestão, e entre os objetivos, segundo Veronica Amores, uma das organizadoras, está a ‘desgoumertização’ do veganismo. O evento, que tem o apoio da central de cooperativas Unisol, também reúne bandas de hardcore e debates políticos, além de um bazar vegano. O próximo está marcado para o dia 6 de setembro, na Praça Ouvidor Pacheco e Silva, no Largo do São Francisco.

 

O Hardcore nas Ruas ocorre desde o fim de 2014, de graça, na praça Ouvidor Pacheco e Silva, no centro de São Paulo.

Foto: Cleyton Clemente

 

 

 

 

“Penso o hardcore como um bom espaço de reflexão ”, diz um dos organizadores da Verdurada, André Mesquita, “e o evento serve para levar além, aplicar as reflexões na vida cotidiana”.

 

A reportagem ouviu membros de algumas bandas de hardcore que estão tocando e organizando eventos na capital paulista - o sentimento que prevalece é que a cena está atualmente um pouco fragmentada. Nada anormal para um grupo maleável por natureza e que só cresce, especialmente em São Paulo.

 

 

  “Muita coisa mudou”, diz Wellington Marcelo, vocalista da banda Days of Sunday. Marcelo já tem 10 anos de envolvimento com a cena, embora tenha apenas 25. “Acho que hoje essa política que envolve straightedge, vegetarianismo, machismo, racismo, entre outras, não é tão falada como antes”, afirma, mas reconhece que a condição dos shows, por exemplo, melhorou. “Precisamos de mais shows nas quebradas.”

 

 

 

 

 

  Edi Silva Prates, 33, frontman da banda Positive Youth, conta que foi uma Verdurada que mudou sua vida. “Um evento que tinha palestra, banda, comida vegan, pessoas de todo o Brasil e de outras partes do mundo”, relembra. Passou a organizar shows, ao melhor modelo faça você mesmo: recentemente, ele é um dos caras por trás do Veg Fest (cuja edição mais recente, em julho, recebeu o lançamento do livro ‘Dance of Days’).

 

Em 2011, a Positive Youth embarcou em uma turnê na Europa. O detalhe é que nenhum dos membros da banda tem o inglês afiado: a solução foi marcar os shows via email com ajuda do tradutor do Google.  “O hardcore/punk é uma plataforma de mudança, de questionar tudo o que está errado ao nosso redor, e também pode trazer coisas que nem sua familia ou escola trazem”, afirma. E garante: ‘o faça você mesmo está bem vivo por aqui’.

 

  “O ‘do it yourself’ é a nossa vida”, comenta o vocalista do Bullet Bane, Victor Franciscon. A banda começou em 2009 e hoje é um exemplo do chamado DIY Brasil afora. Na época, juntaram um dinheiro, alugaram um estúdio e produziram um EP, e a divulgação na internet via orkut e myspace foi tão positiva que possibilitou aos músicos se dedicarem 100% à banda.

 

“Mas até hoje fazemos tudo por conta própria, inclusive conseguimos comprar uma van”, conta Franciscon, hoje com 24 anos. O sentimento dele é que, aos poucos, os shows de punk rock e hardcore estão ganhando uma produção melhor, “o que é benéfico para todo mundo”. O Bullet Bane toca no próximo dia 23 de agosto com o Dead Fish, no Keep the Noise Festival, no Inferno Club da Rua Augusta.

 

O baixista Wash de Souza brinca que hoje é um dos caras mais velhos da cena de São Paulo. Aos 41, ele lamenta: “não tem mais uma cultura de clubes”.

 

  No último Veg Fest, no lançamento de ‘Dance of Days’, sua banda, Eu Serei a Hiena, tocou apenas músicas do Fugazi, e o ‘do it yourself’ também é uma constante. Ele é o único dos quatro membros fixos da banda que não adotou para si a ética straight edge. “Mas isso nunca prejudicou as relações”, diz, aos risos. Wash está inserido na cena hardcore de SP desde o início dos anos 1990, quando juntava um grupo de amigos para ensaiar em um apartamento vazio de Guarulhos.

 

“Está fragmentado mesmo, mas esporadicamente as coisas acontecem”, diz - ele, no entanto, diz ter ficado um pouco afastado da coisa toda nos últimos tempos.

 

ENTREVISTA

‘A sociedade hoje está mais careta do que na ditadura’

Ariel Uliana Jr., vocalista da banda Invasores de Cérebros

 

Inocentes, com o Ariel, tocando no lendário festival O Começo do Fim do Mundo (11/1982), no Sesc Pompeia, em São PauloO 1,90 m e a cabeça raspada de Ariel Uliana Jr. são incofundíveis e por bons motivos – Ariel é um dos pilares do punk rock brasileiro, fez parte das bandas Restos de Nada e Inocentes no início dos anos 1980, em 1988 criou o Invasores de Cérebros (que faz, amanhã, no Inferno Club na Augusta, seu último show), foi um dos primeiros filiados do PT (“uma decepção total”), mais recentemente interpretou Carlos Drummond de Andrade num curta-metragem e será tema de um documentário a ser lançado no ano que vem.

 

Ele se diz animado com João Brandão Adere ao Punk, curta dirigido por Ramiro Grosseiro baseado num texto de Drummond sobre o movimento. “O texto é uma compreensão fantástica do Drummond, que muita gente não tem. Com a visão dele de poeta ele viu a autenticidade do punk. Ele diz: ‘o punk é mais sério do que ousamos imaginar’”, afirma Ariel. O filme estreia no próximo dia 17 de setembro, em Brasília (onde foi produzido).

 

Um outro filme - documentário - sobre a história de Ariel está sendo produzido por Marcelo Appezzato. Até o fim do ano as captações devem se encerrar, e o filme já foi convidado para participar do próximo In Edit (festival de documentários de música) em São Paulo, em 2016.

 

Ariel gentilmente recebeu o Estado em sua casa na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, para falar desses e outros temas.

 

  Na época do surgimento do punk, a ditadura era um inimigo claro. Quem é o inimigo hoje?

A sociedade está mais careta ainda. As pessoas pedem. Antigamente havia a repressão, hoje em dia as pessoas pedem mais leis, pedem para serem controladas. Até nas redes sociais, no seu grupo de amigos, tem pessoas com ideias reacionárias de alguma forma: é machista, racista, xenófobo. Agora está embutido na democracia, mas a democracia também não serve para a gente. O punk é uma forma de luta. Se bem que hoje está meio confuso.

 

  Por quê?

Porque diluiu muito. Em São Paulo hoje em dia tem pouca banda de punk rock mesmo. Tem mais hardcore, crust, grind, até Oi! As bandas novas não estão mais fazendo punk rock. Gosto de hardcore, mas quando começa crust, grind…. gosto de som mais balançado, o hardcore que vem do inglês, finlandês, e americano. Adolescentes, Dead Kennedys, MDC, o Bad Brains de Washington, Minor Threat. Eu acho que não tem treta. São várias cenas, que se complementam. Não tem que entrar em choque. Isso ninguém entende. Teria que ser uma essência só, mas fica se dividindo, eu acho que isso atrapalha. Vai perdendo a característica rebelde do punk.

 

  Fala um pouco desse último show do Invasores de Cérebros, marcado para o próximo domingo (16).

Mudou muito de formação, é difícil segurar as pessoas. Antigamente o pessoal assumia mais a banda, se preocupava mais, não tinha problema para marcar ensaio, show. Recentemente fomos para Campo Grande, Floripa, então a coisa está acontecendo. Mas o pessoal sei lá, tem outros compromissos, faculdade, trampo, então atrapalha muito. Como já vinha mudando muitas vezes de formação, resolvi dar um tempo. Vamos ver o que rola. O guitarrista (Luiz Abbondanza) está saindo, aí já acaba um pouco com o estilo da banda, e como ele estava há muito tempo, tocava comigo no Restos de Nada. Era parceiro. Com ele saindo, desestruturou, aí resolvi dar um tempo.

 

 

 

 

  E o documentário novo?

O Marcelo comçeou a captar imagens em janeiro e vai até dezembro. Ele já entrevistou bastante gente, e eu vou pegar o pessoal das gangues para entrevistar, da Carolina, do ABC, para falar além do que foi falado no Botinada (documentário de 2006, dirigido por Gastão Moreira, sobre as origens do punk no Brasil). E sem censura. Vamos falar de treta, de drogas, de tudo. Na real mesmo.

 

  O que você está achando do clima político no País, com o PT no governo e tal?

É previsível. Eu era de uma organização trotskista. A gente queria cooptar as massas para a revolução, e o PT surgiu. Eu era metalúrgico, estava nas greves do ABC. Aí a gente pensou que o partido que fez aquelas greves maravilhosas estava pronto para cooptar as massas e avançar. E a gente entrou no PT. Formei um núcleo no bairro do Limão, eu sou um dos primeiros filiados, tenho uma carteirinha de 1980. A gente aderiu, mas depois, conhecemos o ladro negro do trotskismo, e o poder corrompe mesmo. Depois de tudo, votamos sempre nulo. A gente não acredita mais em nenhuma forma de governo.

 

  Outro movimento que vocês viviam ali na origem do punk rock era a explosão urbana de SP (poluição, muita gente, deteriorização dos rios, violência, etc). Como que essa relação com a cidade funcionava para as músicas?

A gente convivia muito com a malandragem, nos botecos, campo de futebol. Então a gente cresceu nesses ambientes. Você tinha que ser esperto. Jogava snooker por dinheiro, dadinho, essas coisas, na periferia, do lado de cá do rio. O centro da cidade era onde a gente ia trabalhar, e buscar informação cultural. Onde a gente procurava as lojas de discos, que começavam a importar coisas. Eles nem sabiam o quê, porque importavam pacotes fechados e vinha um disco só de cada título. Um do Ramones, um do Sex PIstols. Então quem pegava esse disco, que custava um salário de office boy, 500, 600 cruzeiros, tinha que fazer uns truques, se virava para comprar. Todos os movimentos sobreviveram sempre com música. A gente viu nascer o metrô, tanto que assumimos a estação São Bento como ponto de encontro. Você podia passar qualquer hora ali na São Bento, no Natal, Ano Novo, tinha punk. Tinha quem dormia com os mendigos, bem urbano. A gente era tão podre quanto a cidade. A gente se integrava nisso, sabia os becos. Queria conquistar o direito de estar ali, era o que as gangues queriam. No centro estavam a informação e os pontos de encontro. A gente ocupou o centro. E os salões, que nem tinha show nessa época, era só som de fita, eram ali pelo centro. A gente sabia se virar, porque a gente aprendeu na quebrada.

 

  E você gosta de viver SP hoje?

Sim. Quando eu saio, quero voltar logo. É o que eu disse: a gente (os punks) é tão podre quanto a cidade. Apodreceu junto com ela.

SERVIÇO

DANCE OF DAYS – DUAS DÉCADAS DE PUNK NA CAPITAL DOS EUA

Autores: Mark Andersen e Mark Jenkins

Tradutores: Ana Carolina Odinique e Marcelo Viegas

Editora: Edições Ideal (520 págs.,  R$ 59,90)

 

VERDURADA

Porão da SanFran. Rua Riachuelo, 194, São Paulo (SP). R$12. 15/8, às 17h

 

INFERNO CLUB APRESENTA DISTÚRBIO MENTAL, INVASORES DE CÉREBROS E KAOS 64

Inferno Club. Rua Augusta, 501, São Paulo (SP). 3120-4140. R$15/R$20. 16/8, 17h

 

HARDCORE NAS RUAS

Praça Ouvidor Pacheco e Silva. Largo do São Francisco, São Paulo (SP). Grátis. 6/9, às 12h

Créditos

Textos: Guilherme Sobota

 

CRONOLOGIA

Ariel, na sua casa na Freguesia do Ó, zona norte de SP. O quadro, de André Araújo, foi pintado no palco do festival 'O Fim do Mundo', no Tendal da Lapa, enquanto o Invasores de Cérebros tocava.

 

Foto:  Gabriela Biló/Estadão

 

Livro ‘Dance of Days’ explora com detalhes a cena punk rock hardcore de Washington D.C.

 

Éticas consolidadas na capital dos EUA, como o straight edge e o ‘do it yourself’ se tornaram fundamentais para o punk rock brasileiro a partir dos anos 1990

 

Ao pisar em Washington D.C. pela primeira vez, em 1984 e aos 24 anos, Mark Andersen viu uma pichação num muro: ‘Nazi Punks No Comando! Oi Oi Oi’ – um primeiro encontro nada agradável com a cena punk que se desenvolvia com vigor invejável na capital dos EUA. Mas o ativista incorporou as ideias originais e, no melhor estilo ‘do it yourself’ (faça você mesmo), ajudou a construir a identidade da cidade que revelou bandas fundamentais do gênero como Bad Brains, Minor Threat, Rites of Spring e Fugazi – quase todos lançados pela mítica Dischord Records, gravadora de Ian McKaye.

 

A história é contada com riqueza de detalhes no livro Dance of Days: Duas Décadas de Punk na Capital dos EUA, publicado por aqui pela Edições Ideal. Andersen escreveu o livro (com o jornalista Mark Jenkins) na metade dos anos 1990, mas segurou a publicação até 2001, e, depois de algumas reedições, ele finalmente chega ao Brasil – onde as éticas straight-edge e ‘do it yourself’, criadas ou consolidadas em D.C., têm papel fundamental no desenvolvimento do punk rock nos anos 1990 e 2000.

“Minha intenção é fazer o negócio viver. Passar algo que está vivo, que pode mudar as pessoas, inspirá-las”, comenta Andersen, por telefone, de Washington, ao Estado.

 

Aos 56 anos, ele ressalta a permanente relevância do punk. “Quero desafiar os leitores a levantar esse cartaz, a receber a energia e as ideias e fazê-las ganhar vida. Eu não posso fazer sem as pessoas. Assim como uma banda punk não pode criar esses momentos incríveis, nos shows, por eles mesmos. É algo que as pessoas fazem juntas. E essa comunhão é o que tem poder. Um poder especial. De transformar, transcender.”

 

Andersen acredita que o punk – que nasceu, na sua parte americana, em meio a governos muito conservadores e segregação racial – está chegando perto do coração da questão toda. “Nossa sociedade acredita que sucesso material é o maior valor humano. Isso é um pecado fundamental. É contra isso que estamos lutando”, afirma – hoje em dia, ele se mantém no coletivo Positive Force D.C., fundamental nos anos 1980 e 1990 para a organização política da cena punk da cidade, e na ONG We Are Family, que trabalha por melhores condições de vida de idosos carentes. “O que o punk está dizendo é que há coisas mais importantes que dinheiro. Essa é nossa ideia revolucionária.”

 

A cena de D.C. passou por vitórias e derrotas, nas palavras de Andersen. O Bad Brains, que surgiu em 1977, explodiu nos anos seguintes e enfrentou diversas adversidades nos últimos 38 anos, é a banda mais importante da fase inicial – sua “atitude mental positiva”, propagada pelo vocalista H.R., passou a ser o pilar do punk rock de D.C., mais do que, inicialmente, a política social. Andersen detalha no livro como Ian McKaye, que fez parte do Minor Threat e do Fugazi, outras duas bandas muito importantes, começou sua vida no punk valorizando uma “política pessoal”. Em uma entrevista ao Washington Post em 1981, McKaye disse: “Não falamos f... o mundo, mas sim f... as pessoas ao nosso redor”. Essa postura levou ao estabelecimento, em D.C., das duas éticas já citadas, que até hoje são muito identificadas com o punk rock hardcore no mundo todo.

 

Embora o livro trate de acontecimentos de 20 anos atrás, os textos de Andersen mostram uma preocupação em estabelecer a perenidade do movimento – porque, afinal, ele mudou de verdade a vida de muita gente. “Eu pensava que aquilo (shows em grandes estádios) era o rock’n’roll”, diz o vocalista do Fugazi, Guy Picciotto, ao autor. “Mas então eu vi o Cramps tocando bem na minha frente, vomitando e atacando merda pelas janelas, quebrando tudo. E nunca mais voltei. Porque você não pode voltar.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Você tem que questionar tudo, realmente.

Mas não fica por aí, você não pode ficar apenas contra as coisas, você tem que estar num lugar em que você pode dizer pelo que você é a favor. Onde está sua visão positiva.
O que você está construindo. E isso parece para mim porque Washington DC, como uma cena punk, tem
sido tão importante. Porque não foi apenas
sobre destruir.
Foi e é sobre construir. Melhores pessoas e melhor mundo. E isso não é simples, não é fácil,
mas é absolutamente essencial.

 

 

MARK ANDERSEN

 

Livro explora a poderosa cena
de punk rock da capital
dos EUA – e como os ideias políticos pessoais e sociais de lá chegam
ao século 21 na cidade de SP